O Parque Municipal Américo Renné Giannetti, no coração de Belo Horizonte, Minas Gerais, abriga aves, morcegos e gambás. É outro animal, entretanto, que tem “roubado a cena” por lá: os gatos domésticos. Abandonados, fizeram do parque sua casa e, das espécies verdadeiramente nativas, seu cardápio de presas. O impacto da sua presença na biodiversidade não impediu, entretanto, que fosse apresentado um projeto de lei que busca reconhecer e valorizar os gatos do parque como animais comunitários, “incentivando a convivência harmoniosa com a fauna urbana”.
O que o projeto de lei nº 184/2025, do vereador Osvaldo Lopes (Republicanos) esquece é que essa harmonia não faz parte do instinto dos felinos. De acordo com um levantamento feito pela veterinária Ana Luiza Almeida Carmo, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), os cerca de 300 gatos domésticos que vivem atualmente no parque mineiro matam 13,9 mil animais silvestres por ano e impactam pelo menos 29 espécies.
São 9,4 mil invertebrados, principalmente borboletas, gafanhotos e grilos; 2,5 mil mamíferos, como o gambá-de-orelha-branca (Didelphis albiventris), morcegos e roedores; e outras 1,9 mil aves, entre elas o sabiá-poca (Turdus amaurochalinus), um dos mais predados, e o beija-flor besourinho-de-bico-vermelho (Chlorostilbon lucidus).
O cálculo foi feito com base na quantidade de vestígios encontrados nas fezes, considerando uma evacuação por gato por dia, e multiplicando pelo número de gatos existentes no parque.
“Nosso estudo realizado no parque municipal encontrou dados robustos que mostram que esses gatos impactam a fauna silvestre e comprometem o papel do parque como um conector e refúgio para fauna no meio urbano”, pontua Ana Luiza.
Mesmo sendo alimentados pela prefeitura, ONGs e voluntários, os gatos do parque continuam caçando. “Em gatos domésticos, o instinto de predação está dissociado da saciedade. Ele vai predar mesmo que ele esteja satisfeito”, alerta a pós-graduanda da UFMG, responsável pelo levantamento.

O pesquisador Flávio Rodrigues, professor do Departamento de Genética, Ecologia e Evolução da UFMG, destaca ainda o trágico destino do esquilo nativo conhecido como caxinguelê (Guerlinguetus aestuans), extinto no parque desde o início dos anos 2000.
“Eu propus colocar uma placa educativa no parque que dissesse: ‘cadê o esquilo que estava aqui? O gato comeu.’ Porque foram os gatos que extinguiram os esquilos lá. Então já tem danos pra biodiversidade, e a tendência é que existam outras espécies desaparecendo e outras que já podem ter desaparecido que nós nem sabemos”, pontua o ecólogo, orientador de Ana Luiza na pós-graduação.
Um problema antigo
Estima-se que os gatos vêm sendo abandonados ilegalmente no parque desde 1985. A mais recente estimativa populacional, feita em 2018, contou 283 indivíduos e registrou uma população em crescimento.
“Esse não é um problema novo e já existe um trabalho da prefeitura para cuidar dos gatos, mas o problema do projeto de lei é que ele vai institucionalizar isso, de que essa é a função do parque”, afirma Flávio. O pesquisador teme ainda que a medida incentive o abandono de gatos no local.
O PL reconhece “a importância dos gatos residentes no Parque Municipal Américo Renné Giannetti” e garante “sua proteção e bem-estar, visando à promoção da saúde pública e ao respeito aos direitos dos animais”.
A proposta prevê ainda a implementação de um programa permanente destinado à proteção, castração, vacinação e assistência veterinária, com campanhas educativas para “conscientização sobre a importância dos gatos” do parque.
Em sua justificativa, o vereador alega ainda que “esses animais desempenham papel fundamental no controle biológico e ecológico do ambiente, contribuindo significativamente para o equilíbrio natural do ecossistema urbano”. ((o))eco procurou o parlamentar para comentar a afirmação e explicar como será garantida a harmonia entre os gatos e os outros animais do parque, mas não obteve resposta até o fechamento do texto. O espaço segue aberto.

Na opinião do ecólogo Flávio Rodrigues, da UFMG, a presença dos gatos representa ainda um risco à saúde pública. “Esses gatos consomem ratazanas e morcegos, estão em contato com doenças como leptospirose, raiva… e eventualmente são contaminados. E quando os visitantes vão fazer carinho, pode passar doença pras pessoas também. Sem falar no risco pros próprios gatos”, acrescenta.
A comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Vereadores de Belo Horizonte não apreciou a matéria, pois perdeu o prazo para relatoria. O PL pode ir à votação no plenário a qualquer momento.
O gato-doméstico (Felis catus) é uma espécie exótica invasora do país, ou seja, não pertence a nenhum dos biomas brasileiros. Domesticados e transformados em pets, os gatos se espalharam por todos os cantos do mundo. Junto com seu crescimento, aumentou também o número de felinos abandonados, principalmente em cidades.
Desde 2022, a prefeitura de Belo Horizonte possui um ambulatório e uma equipe de veterinários, biólogos e tratadores dedicada ao manejo e alimentação dos gatos no parque, com ações como a castração, identificação e o controle de doenças. Entre 2023 e 2025, a Fundação de Parques e Zoobotânica destinou R$ 226.713,99 para esse manejo – fora os salários dos servidores alocados nesse trabalho.
Ao todo, são 101 pontos de alimentação da prefeitura distribuídos por todo parque. “Além disso, eles também são alimentados por organizações da sociedade civil e por voluntários autônomos”, conta a veterinária.
A oferta de ração, porém, não impede a caça dos felinos e, pior, gera abatedouros perfeitos. “Isso não diminui a vontade de caçar, e um dos nossos resultados indica que a predação é maior perto dos comedouros porque alguns animais, inclusive aves, são atraídos pela ração. Então vira uma armadilha”, explica Flávio.
Em sua dissertação, Ana Luiza lista recomendações ao poder público. Entre as principais sugestões estão a criação de Centros de Acolhimento Transitório e Adoção (CATA) ou Centros de Referência em Bem-Estar Animal, como já existem em outros municípios brasileiros, para destinação socioambientalmente responsável dos animais. E executar a retirada gradual e contínua dos gatos do parque, “com reconhecimento do status de predadores exóticos invasores”.
A pesquisadora destaca ainda a necessidade de direcionar esforços na desconstrução da percepção do parque como “santuário de gatos”, ressaltando sua vocação primordial como área de conservação da biodiversidade, lazer público e promoção da saúde ambiental.
“Os gatos não são animais selvagens. São animais exóticos introduzidos que causam impactos e extinções à nível global. Essa desinformação precisa ser combatida”, destaca Ana Luiza.

O Parque Municipal Américo Renné Giannetti está localizado no centro da capital mineira. Inaugurado em 1897, o parque urbano possui cerca de 18 hectares de área arborizada – entre árvores nativas e exóticas –, lagos e oferece um respiro de verde em meio aos prédios da cidade. No local já foram registradas mais de 60 espécies de aves.
“Esse parque é um dos principais para circulação de aves na cidade. É claro que o ambiente urbano não vai ter as mesmas espécies que uma floresta nativa, mas esses parques urbanos conseguem ainda conservar uma parcela significativa da biodiversidade. Além disso, esses parques são importantes como pontos de parada para espécies migratórias e outras que podem usar esses parques para se locomover na paisagem urbana”, explica o ecólogo.
“Para a biodiversidade como um todo, isso diminui a barreira que é uma cidade”, acrescenta Flávio.
O professor da UFMG alerta ainda que a eventual aprovação do “PL dos gatos” no Parque Municipal Américo Renné Giannetti pode abrir um precedente perigoso para outros parques municipais na cidade.
O vereador Osvaldo Lopes apresentou ainda o projeto de lei nº 185/2025, em que propõe a instituição da Política Municipal de Manejo Populacional Ético dos Felinos Urbanos em Parques e Espaços Públicos no Município de Belo Horizonte. A proposta visa a combater o abandono e maus-tratos contra gatos em espaços públicos, prevenir zoonoses, fazer o controle populacional ético, por meio de ações como castração e microchipagem; e promover o bem-estar e qualidade de vida dos felinos em parques e espaços públicos.
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