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ToggleComunidades quilombolas e ribeirinhas celebram acordo que limita aumento da tarifa, mas cobram investigação sobre violência policial e fim do monopólio no transporte. A imagem acima mostra passageiros desembarcando no terminal hidroviário de Soure (Foto: Alex Ribeiro/Agência Pará).
Belém (PA) – Um reajuste de 23% nas tarifas de transporte hidroviário no arquipélago do Marajó, no Pará, deflagrou uma mobilização que durou três dias, marcada por tensão e confrontos policiais. Após intensa pressão de quilombolas e ribeirinhos, os principais prejudicados, a empresa Henvil Transportes Ltda recuou e limitou o aumento a 10%, mediante um acordo que prevê a realização de uma licitação para o serviço.
Na região do Marajó, a mobilidade depende essencialmente de embarcações. Lanchas exclusivas para passageiros e balsas (ou ferry boat) que também transportam veículos, inclusive caminhões de carga, são fundamentais para o abastecimento das comunidades locais. As tarifas variam conforme a categoria: passageiros podem escolher entre classe econômica e executiva, enquanto veículos pagam taxas proporcionais ao seu porte.
Líbia Pantoja, liderança da comunidade quilombola de Vila União Campinas, explica a gravidade da situação. “Tudo o que vem pra cá pro Marajó é marítimo. Tudo, tudo vem por Belém. Gás vem de Belém, alimentação vem de Belém, hortifruti vem de Belém, material de construção… Se um caminhoneiro pagava 1.800 reais em um caminhão carregado, ele iria passar a pagar 2.400 reais, 2.500 reais”, afirma. Os efeitos do aumento seriam devastadores para uma região onde agricultura e pesca são as principais fontes de renda.
Os protestos, iniciados de forma pacífica no dia 16 de março no Porto Camará, em Salvaterra, rapidamente ganharam força. A Associação dos Transportadores do Marajó (Atransmar) liderou o movimento, recebendo apoio de outras associações, empresários e da população local. As passagens de lancha para o Marajó saltaram de 45 para 52 reais, enquanto os valores nas balsas tiveram um aumento de 23% e a sala executiva dobrou, chegando a 20 reais.
Em 18 de março, em uma reunião na Câmara de Vereadores com o Ministério Público Federal (MPF), a Agência de Regulação e Controle de Serviços Públicos do Pará (Artran) e representantes das associações de caminhoneiros, de vans, da rede hoteleira e vereadores, ficaram evidentes as críticas dos usuários em relação ao serviço prestado pela empresa Henvil.
Na ocasião, a Promotoria de Salvaterra pediu que o protesto fosse encerrado, liberando o porto da Foz do Rio Camará. “Essas comunidades entendem que serão as mais afetadas pelo aumento dos preços, uma vez que os custos de transporte de materiais e produtos essenciais sofrerão acréscimos adicionais”, argumenta Ettiene Angelim, presidente do Conselho Municipal de Turismo de Salvaterra, sobre a negativa da população. Muitas comunidades quilombolas estão localizadas em estradas vicinais de difícil acesso na região do Marajó. Os quilombolas de Salvá e Mangueiras, por exemplo, só podem transitar por meio de embarcações.
A resposta do governo estadual em relação ao pleito legítimo, contudo, foi truculenta. No dia 19, o Batalhão de Choque da Polícia Militar do Pará foi acionado para conter os manifestantes. Segundo Líbia Pantoja, não houve sequer condição de negociar. “O policial, major, olhou pra gente e disse: ‘não tem conversa, vamos dar apenas cinco minutos’“, lembra. Segundo relatos, os policiais utilizaram gás lacrimogêneo, balas de borracha e spray de pimenta contra um grupo de populares majoritariamente composto por mulheres.
Os manifestantes até tentaram resistir com uma corrente humana, mas não restou outra alternativa a não ser correr para o muro da Escola Municipal de Ensino Fundamental Quilombola de Vila União. Funcionários e manifestantes ficaram feridos. “Só não aconteceu algo pior com a diretora da escola, porque a gente conseguiu quebrar o cadeado da sala para ela sair. Ela estava quase desmaiando”, descreve Líbia. “Eles jogaram bombas dentro de uma casa, com uma criança de um ano dormindo”.
Houve confrontos também na Passagem Grande, no Jubim, em Condeixa e Maruacá. “A gente é uma comunidade quilombola [zona rural de Salvaterra], porém, da PA até chegar em Salvaterra [centro urbano], existem outras comunidades e vilas. Chegaram até Jubim. Lá, houve um confronto de moradores com a polícia”, afirma Líbia, referindo-se à PA-154, que ficou totalmente interditada durante os protestos.
Pará é questionado pelo MPF
O Ministério Público Federal (MPF) requisitou, no último dia 20, investigações sobre a ação da Polícia Militar, classificando-a como “violenta, abusiva e desproporcional”. O órgão destacou ainda que o Batalhão de Rondas Ostensivas Táticas Motorizadas (Rotam) agiu sem ordem judicial para a intervenção na Rodovia PA-154.
Os procuradores da República enfatizaram que o protesto era pacífico e “alinhado ao direito constitucional de reunião e livre manifestação, previsto na Constituição Federal e na Declaração Universal dos Direitos Humanos”. O MPF se reportou ao governador do Pará, Helder Barbalho, ao procurador-geral do estado, Ricardo Nasser Sefer, ao secretário de Segurança Pública, Ualame Fialho Machado, e ao comandante-geral da Polícia Militar, José Dilson Melo de Souza Junior, solicitando “abertura de investigações administrativas para apurar a responsabilidade pela operação; envio de manifestações e documentos sobre os fatos ocorridos; fornecimento, em 24 horas, dos nomes e matrículas das autoridades que autorizaram a intervenção, do responsável pela operação e dos policiais envolvidos”.
O documento do MPF destaca que o Marajó possui mais de 40 comunidades quilombolas, das quais 18 estão localizadas em Salvaterra. O transporte fluvial é apontado como um direito fundamental relacionado à locomoção dos povos marajoaras. O uso da força policial, segundo os procuradores, “contraria princípios como legalidade, necessidade, razoabilidade e proporcionalidade, previstos na Lei nº 13.060/2014, que regula o uso de instrumentos de menor potencial ofensivo por agentes de segurança pública”. Além disso, “a Resolução nº 06/2013 do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana estabelece que armas de baixa letalidade não devem ser usadas contra crianças, adolescentes, gestantes, pessoas com deficiências e idosos”, reforçando a ilegitimidade da ação.
Procurada, a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (Segup) não respondeu à reportagem, tampouco participou da reunião do dia 24, na Secretaria de Estado de Igualdade Racial e Direitos Humanos (Seirdh), onde foi costurado o acordo.
Acordo selado


Lideranças de Salvaterra acordam reajuste de 10% e licitação para novas empresas (Foto: @nomarajo).
Após dias de tensão, um acordo foi finalmente assinado na segunda-feira, 24 de março, em reunião na Seirdh. Além do titular da pasta, Jarbas Vasconcelos, estiveram presentes dirigentes da Artran; representantes da empresa Henvil Transportes; lideranças de comunidades marajoaras; e os prefeitos de Soure, Paulo Victor, e de Cachoeira do Arari, Jaime Barbosa, ambos do mesmo partido do governador Helder Barbalho, o MDB.
O acordo reverteu o anúncio emitido pela Henvil Transportes Ltda, que, em comunicado nas suas redes sociais, no último dia 20, informava que o reajuste nas tarifas das travessias de ferry boat já não seria mais de 23% e, sim, de 11% de forma escalonada. “A decisão final foi 10% para todo tipo de (veículo, incluindo) carro, moto e (passageiros da) área vip (classe executiva). E o congelamento dos 10% até abrir uma licitação para novas empresas. Ou seja, se não tiver novas empresas, eles (a empresa) vão ter de ficar em 10%”, argumenta a liderança Líbia Pantoja, reiterando que essa decisão atende, ao menos parcialmente, os interesses da população.
Principal exigência dos moradores, a abertura da nova licitação de empresas que operam o transporte não tem previsão para ocorrer. Na sexta-feira (21), a reportagem da Amazônia Real enviou email à agência, destacando denúncias da comunidade sobre o encerramento da concessão à empresa Henvil, que teria ocorrido em 2019, e sua atuação por meio de autorização até os dias de hoje, o que acumularia 25 anos de monopólio no serviço.
Foi na edição de 1º de outubro de 2020 que o Diário Oficial do Estado publicou tais autorizações. Questionada sobre quando o governo realizou a última licitação e, em sendo verdade, quais as razões de o governo sustentar autorizações em vez de lançar o edital de licitação, o órgão se limitou a responder que “a Henvil Transportes Marítimos operou no Marajó em regime de concessão até 2020. Após essa data, para assegurar a manutenção do transporte para o Camará, a empresa passou a operar em regime de autorização. A agência destaca que estuda um processo licitatório para a concessão das linhas”.
Histórico de precariedades

Este não é um episódio isolado. Em 2022, a embarcação Dona Lourdes II, que partiu de porto clandestino da vila de Camará, em Cachoeira do Arari, vizinha de Salvaterra, e naufragou nas imediações de Belém, resultou em 22 mortes. Na ocasião, os moradores das comunidades também protestaram. “A gente pediu novas empresas. O governo fez a mesma coisa: mandou a Tropa de Choque, mandou a gente se calar. E a gente fez isso, a gente se calou. O governo tentou fazer isso novamente [no protesto contra o aumento de tarifas]”, lembra Líbia.
Ettiene Angelim fica indignada ao enumerar a série de desrespeitos à população. O próprio naufrágio ocorreu depois de um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) firmado, em 2019, junto ao Ministério Público do Estado do Pará (MPPA), assinado pelas empresas Rodofluvial Banav, Arapari Navegação Ltda e a mesma Henvil Transporte. “O Ministério Público abordou essa questão do monopólio, porque era e ainda é uma das reivindicações da população”, ressalta.
Líbia Pantoja critica a falta de transparência da empresa Henvil e a autonomia que o governo do Pará dá para o setor privado estabelecer os valores que lhes pareçam convenientes. “A tabela de custo que a gente já tinha pedido, ela [a empresa] não passou para a comunidade. Eles disseram que tinham passado para o Ministério Público. A Henvil levou uma tabela de gastos. A gente pediu a tabela de lucros e eles não levaram também”, reclama a liderança.
Com o atual acordo que fixou o reajuste em 10%, a resposta oficial foi a mesma. A gestão de Helder Barbalho (MDB) diz apenas que “o reajuste nas tarifas é de responsabilidade da empresa que opera na região e não é determinado pelo Governo do Estado”.
A luta continua

“As empresas que estão aqui não respeitam a população. Querem prestar serviço de qualquer jeito”, afirma Líbia Pantoja. Com cerca de 7 mil quilombolas em Salvaterra, além das populações da cidade e de municípios vizinhos, como Soure e Cachoeira do Arari, o Marajó segue lutando. Ettiene Angelim lembra que, no último dia 14 de março, portanto, antes mesmo dos protestos, foi protocolada uma representação junto à Promotoria de Justiça de Salvaterra, solicitando a suspensão do aumento e a abertura de licitação. O conselho foi uma das entidades que subscreveram a representação.
“As 19 comunidades quilombolas e o restante das comunidades (são) extrativistas, pesqueiras. As cidades de Soure e Cachoeira seriam afetadas, pois nós somos consumidores finais, até chegar na gente, aumenta tudo. As comunidades mais de longe – como Mangueira, Salvar, Deus Me Ajude – lá o preço chega além do que chega aqui onde foi a manifestação (comunidade União Campinas)”, acrescenta Líbia Pantoja.

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