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homunculo como os trabalhos de penfield contribuiram para a neurociencia 0

A Terapia das Caretas – Estratégias de promoção da saúde

A Terapia das Caretas – Estratégias de promoção da saúde
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Durante o processo de pesquisa com pessoas que realizavam procedimentos de curas não convencionais em Manaus, Amazonas, uma das pessoas entrevistadas era uma freira católica, Irmã Amábili Cigolini, que coordenava uma casa da Pastoral da Saúde num bairro da periferia, com a produção de remédios de plantas naturais. Ela pediu meu apoio para o atendimento terapêutico voluntário para pessoas daquela comunidade, pois estava preocupada com o aumento dos casos de crianças e adolescentes com problemas de aprendizagem e comportamento social: reprovação e evasão escolar, agressividade, e uso de substâncias (álcool, tabaco e outras drogas). Isso estava aumentando os casos de violência doméstica, e alguns adolescentes já haviam se envolvido com as ações policiais. A religiosa queria ajudar as famílias com um trabalho especializado, mas não tinha recursos financeiros para tal. Assim, o pedido foi aceito para atendimento voluntário semanal, sendo beneficiadas, inicialmente, 60 pessoas, que foram incluídas na pesquisa. Com isso, foi possível realizar uma análise comparativa entre quem promovia a saúde e quem estava necessitado de ajuda para ter saúde física, mental e social.

Nos resultados do mapeamento das pessoas que promoviam a saúde, ficou evidenciado que cada um dos entrevistados tinha um modo próprio de fazer a representação mental do seu processo de curar. Contudo, chamou a atenção o fato de que as pessoas que realizavam procedimentos com as mãos, fazendo pressões no corpo das pessoas com massagem, desmentidura dos ossos, e aliviando a rasgadura dos músculos, eram as mais bem-humoradas e criativas. Elas também tinham o pensamento sequenciado e melhor organizado, típico das pessoas mais escolarizadas, mesmo quando tinham baixa escolaridade ou nenhuma. Quando elas moviam as mãos para falar, pareciam estar tocando piano ou digitando letras rapidamente no ar.

Para o grupo de entrevistados promotores da saúde como um todo, os movimentos da face eram ricos e intensos nos momentos dos relatos sobre sua excelência no atendimento das pessoas da comunidade. Os olhos se elevavam com a testa, apresentando um brilho especial, que caracterizava o estado do êxtase espiritual, na obtenção dos resultados pretendidos. Esse momento também era caracterizado pela expressão de gratidão aos seres espirituais que diziam estar colaborando com a realização dos seus procedimentos.

No estudo que realizei sobre as áreas cerebrais envolvidas nos movimentos da face e das mãos das pessoas que promoviam a saúde, identifiquei duas áreas importantes para essas partes do corpo: o córtex parietal, responsável pelas funções sensórias do tato e da dor; e o córtex frontal, responsável pelas funções motoras. Essas duas áreas têm uma representação muito significativa no cérebro, devido à grande quantidade de neurônios que atuam para respostas nervosas da face e das mãos, quando comparadas com outras partes do corpo. Isso quer dizer que mão e face, especialmente a boca, a língua e os dedos polegares, ocupam um território significativamente maior nessa área cerebral, devido à quantidade maior de neurônios e da qualidade que eles possuem5.

Outra coisa que chamou a atenção, foram as estratégias que as pessoas que curavam usavam para saber como deveriam proceder em cada situação de pedido de ajuda que lhes era feito. De um modo geral, inicialmente, elas sentiam no próprio corpo a sensação do outro (empatia), acerca do que iriam pedir no processo de ajuda e era algo visceral e interno. Então, olhavam para a pessoa, e começavam a fazer perguntas e a conversar para conferir se a informação que haviam sentido internamente correspondia com o que era vivenciado pela outra pessoa. Ao mesmo tempo em que conversavam e coletavam dados, as pessoas que promoviam a saúde observavam as imagens mentais que eram formadas em seu pensamento; então, estabeleciam um diálogo interno paralelo consigo mesmas. Nesse diálogo interno, elas se perguntavam como proceder naquele caso, e continuavam mantendo a atenção nas sensações internas do corpo. No diálogo interno, era estabelecida a conexão com os seres espirituais de sua crença religiosa, que elas acreditavam estar participando do processo de cura. Pelas sensações internas de bem-estar e as imagens mentais, elas constatavam que a intuição estava correta.

Isso quer dizer que enquanto os promotores da saúde estavam atuando para identificar melhor o problema da outra pessoa que lhes pedia ajuda, elas mantinham contato com o próprio corpo, como sendo um sinalizador para o diagnóstico do problema apresentado pela pessoa que estava sendo atendida6. Esse sinalizador, denominado na pesquisa de marcador somático, pelo neurologista António Damásio, também indicava qual o procedimento adequado a ser realizado, porque elas sentiam o bem-estar no próprio corpo no processo de imaginar o que iriam fazer, antes mesmo de iniciar o procedimento com a outra pessoa. Assim ao mesmo tempo e que estabeleciam comunicação com a entidade espiritual que participava do processo de ajuda, elas mantinham a atenção nas imagens mentais, por meio das quais a intuição lhes enviava o modo de proceder e, ao mesmo tempo, recebiam a sinalização do corpo acerca do resultado positivo. Sob a forma de imagens visuais, palavras e sensações corporais, o que denominei de processo multissensório, as pessoas que promoviam a saúde só consideravam o processo concluído quando sentiam bem-estar no próprio corpo e alegria consigo mesmas. Então, concluíam o processo com a sensação do êxtase de terem cumprido com a missão espiritual de ajudar ao outro. Na conclusão da pesquisa, essa capacidade multissensória (visual, auditiva e cinestésica) de sentir o que o outro sente (empatia) e de captar o pensamento do outro (teoria da mente) se mostrou fundamental no ato solidário de promover a saúde do próximo.

O uso da estratégia e a intuição sobre caretas e movimentos das mãos

Foi essa estratégia de manter a atenção interna e externa sincronizadas que comecei a usar para buscar uma alternativa para reproduzir aquele estado de êxtase na promoção da saúde por meios não convencionais. No dia 12 de maio de 2000, após uma atividade realizada para um grupo de artistas e professores de artes, tive um insight ao chegar em casa, como resposta ao diálogo interior constante que estabelecia sobre como eu poderia ajudar as pessoas a vencerem seus desafios emocionais. Então, veio em minha mente a imagem rápida do homúnculo de Penfield, e logo a seguir os movimentos rápidos das mãos e da face das pessoas que eu havia entrevistado. Tudo ocorreu numa velocidade muito grande, num flash, e se eu não estivesse atenta aos meus processos mentais, certamente teria perdido a informação.

A imagem do homúnculo de Penfield, presente num livro de neurologia, havia sido incluída no livro da pesquisa, mostrando as áreas do córtex parietal e do córtex frontal do cérebro, com grande representatividade para a face e as mãos. Então, seguindo o impulso intuitivo e a sensação de bem-estar que estava sentindo com a resposta, quis fazer o teste para saber se a estratégia traria bons resultados. Era aproximadamente 19 horas e eu liguei para a enfermeira Nádia Vettori, na época coordenadora da Pastoral da Criança, e perguntei como ela estava. Ela disse que estava com um pouco de dor de cabeça. Pedi que pensasse na situação estressante que havia desencadeado esse sintoma, e que ela localizasse o lugar no corpo que dava a sinalização da tensão. A seguir, pedi que desse uma avaliação de zero a dez para a sensação de dor de cabeça e que soltasse o telefone para fazer, rapidamente, muitos movimentos da face e, ao mesmo tempo, movimentos com todos os dedos das mãos: boca, língua, nariz, testa, olhos. Esses movimentos reproduziam, em maior velocidade, os movimentos que eu havia mapeado nas expressões das emoções das pessoas entrevistadas que curavam por meio das massagens, desmentiduras e rasgaduras. Eles haviam sido apresentados à minha consciência no momento do insigh em que veio a resposta à minha pergunta sobre como ajudar as pessoas a se sentirem bem.

Quando Nádia voltou ao telefone, depois de alguns minutos, pedi que ela pensasse novamente na mesma situação estressante e fizesse uma nova avaliação do nível de tensão, observando o mesmo local do corpo que havia dado a sinalização do estresse anteriormente. Pedi que verificasse se a tensão havia aumentado ou diminuído e ela respondeu que a dor de cabeça havia desaparecido. Essa informação foi suficiente para eu dar prosseguimento à verificação sobre a eficiência da técnica que havia acabado de criar. Então, despedi-me dela e passei a fazer outras ligações telefônicas com o pedido de que as pessoas realizassem o mesmo teste. Os resultados positivos foram predominantes e a técnica foi batizada, naquele dia 12 de maio de 2000, com o nome de “Caretas Articuladas com Movimentos das Mãos – CAMM”. Avaliações posteriores em atividades de grupo com a prática das “caretas”, ou como as pessoas gostavam de chamar de “caretinhas” ou “carinhas”, chegavam a atingir mais de 64% de resultado positivo imediato, mas em geral era acima de 70% do grupo, chegando muitas vezes a 100% quando as pessoas estavam bem concentradas e atentas.

Caretas Articuladas com Movimentos das Mãos – CAMM

A técnica “Caretas Articuladas com Movimentos das Mãos – CAMM” foi levada para os atendimentos terapêuticos na Pastoral da Saúde, logo após ter sido criada. A primeira experiência individual ocorreu no início do atendimento de uma mãe que entrou na sala e começou a chorar, assim que se sentou na cadeira. Ela não conseguia falar qual era a situação para a qual pedia ajuda. Eu então pedi que ela fizesse a localização do foco da tensão no corpo (marcador somático), e que ela desse um valor de zero a dez. A seguir, pedi que realizasse os movimentos rápidos da face com os dedos das mãos. Apesar da dificuldade inicial, ela melhorou um pouco. Logo depois, comecei a mover as falanges dos polegares das duas mãos dela e esse procedimento desbloqueou a capacidade de linguagem da mulher. Então, ela começou a falar tranquilamente e relatou qual era o problema que estava vivenciando.

Passei a pedir às outras pessoas, nos demais atendimentos que fazia, para que realizasse movimentos rápidos da face e dos dedos das mãos. Constatei que nem todas conseguiam apresentar destreza, sincronia e velocidade. Em geral, os polegares ficavam mais parados, e quando a face realizava movimentos rápidos, as mãos tendiam a ficar lentas ou paralisavam. Foi numa capacitação para um grupo de monitores de alfabetização e reforço escolar do Movimento Comunitário Vida e Esperança-MCVE – que Maria do Perpétuo Socorro Muniz Fonseca – que atuava como instrutora de crianças e adolescentes em situação de risco na comunidade – relatou encontrar essa mesma dificuldade nos alunos. Disse que, para ajudá-los, havia sequenciado primeiro os movimentos da face: boca, língua, nariz, testa e olhos; e depois, combinava movimentos da face com os movimentos dos dedos das mãos. Com essa prática diária, havia constatado que as crianças estavam obtendo mais rapidez nos movimentos para escrever, haviam diminuído o comportamento agressivo e aumentado a eficiência na aprendizagem da leitura e memória dos conteúdos. Disse, ainda, que as crianças estavam respeitando mais as regras sociais de convivência em grupo e estavam fazendo uso da linguagem para um padrão mais adequado para o relacionamento civilizado: sem gritos nem palavrões ou ofensas mútuas.

Com essas informações, organizei o sequenciamento dos movimentos da técnica terapêutica CAMM nas etapas da face e depois da face combinada com movimentos das falanges dos polegares das mãos. As falanges dos polegares eram a parte do dedo que se apresentava mais rígida nas observações que eu havia feito das pessoas com dificuldades para realizar a técnica CAMM. Os resultados do sequenciamento foram surpreendentes no atendimento individual e em grupos, em termos de aumento no controle emocional, na contenção dos impulsos agressivos, assim como na capacidade de atenção, memória, aprendizado e criatividade. Esses resultados positivos eram observados tanto nas crianças quanto nos adultos e idosos.

Além de estar presente nas atividades da Pastoral da Saúde e Pastoral da Criança da Arquidiocese de Manaus, a técnica CAMM foi levada para outros grupos comunitários da cidade. Também foi para o Rio Grande do Norte, numa capacitação para monitores e adolescentes internados na Fundação de Desenvolvimento da Criança e do Adolescente – FUNDAC do Rio Grande do Norte (extinta FEBEM), nas cidades de Natal, Caicó e Mossoró. Os resultados foram significativos na promoção da calma entre os internos, principalmente os que exerciam liderança e estavam tentando organizar uma rebelião.

Como estratégia, os líderes foram chamados para uma conversa individual comigo e foi feita a avaliação das expressões das emoções de cada um. Foram identificados movimentos que estavam bloqueados na face e ensinado a eles as etapas da técnica CAMM. As instruções das etapas foram dadas por escrito, com a sugestão para que ensinassem a técnica aos demais colegas do pavilhão. Os resultados foram surpreendentes, em termos de melhoria nas relações sociais, na diminuição da agressividade e aumento da alegria, com cada um dando risada das caretas do outro e tornando a convivência mais amigável, de acordo com os relatos que eles e os monitores deram, e que foram registrados em relatórios.

Em 2002, eu estava realizando atividades voluntárias no Departamento Antidrogas – DEAD da Secretaria de Estado da Justiça e Direitos Humanos do Amazonas – SEJUSC, numa ação com o Conselho Estadual de Entorpecentes do Amazonas – CONEN/AM. O presidente do CONEN e diretor do DEAD, coronel Éber Bessa Rebelo, ficou interessado em divulgar a técnica das caretas que eu já vinha ensinando nas palestras e oficinas para diferentes grupos atendidos pela instituição. Então, sugeriu que fosse produzido um material gráfico para ser impresso com o apoio daquela secretaria. Assim, com a colaboração do desenhista Domingos Rocha do Carmo e da design gráfica Nádia Maria de Souza Saraiva, foi produzido um livreto intitulado “A linguagem no controle do estresse e na prevenção da violência e uso indevido de drogas”. Além da fundamentação teórica do projeto que eu vinha realizando, e das figuras com as etapas da técnica CAMM, o livreto também continha depoimentos de mulheres que já vinham praticando as caretas numa comunidade da zona Norte de Manaus, num trabalho que contava com o apoio das irmãs católicas Maria Alzira Fritzen e Anne Bribosia.

Foi nessa comunidade que foi iniciada uma metodologia lúdica para ensinar princípios básicos de neurociência para crianças, adolescentes e adultos, geralmente mães, com pouca escolarização. As orientações eram voltadas para os cuidados com o cérebro, desde o período de gestação, passando pela infância e adolescência, com os alertas sobre os danos causados pelo estresse, assim como uso indevido de álcool e outras drogas. Nesse trabalho, as mães também eram orientadas a conversar com os filhos e maridos fazendo uso de um padrão de linguagem calmo, para evitar brigas e discussões e, principalmente, agressões físicas entre os membros da família, principalmente espancamento das crianças. As mães eram alertadas sobre os danos que o estresse causava à saúde física, mental e social e como os hormônios do estresse prejudicavam o desempenho da aprendizagem e memória das crianças. Aprendiam que fazer uso de substâncias lícitas e ilícitas para relaxar era uma forma de criar problemas ainda mais sérios, causando danos ao cérebro.

Todos esses trabalhos voluntários que eram realizados nas comunidades foram registrados em relatórios, e entregues às instituições parceiras: o CONEN/DEAD e coordenadores dos grupos comunitários. Em 2003, fui contemplada com o Diploma de Amiga do CONEN (Conselho Estadual de Entorpecentes) do Amazonas por esse trabalho. Em 2004, por recomendação do CONEN/AM, fui indicada no Amazonas para receber o Diploma de Valorização da Vida, concedido pela Secretaria Nacional Antidrogas – SENAD, vinculado à presidência da República.

A metodologia lúdica adotada nas ações de prevenção dos danos causados no sistema nervoso e no cérebro devido ao estresse, uso de álcool e outras drogas, e a proposta da técnica CAMM, foi batizada de Neurolúdica®. Posteriormente, no trabalho com outros grupos, foram desenvolvidas outras técnicas terapêuticas lúdicas e obtidos outros apoios de parceiros, para a produção de mais impressos do livreto com a técnica CAMM, para distribuição gratuita. Dentre as instituições que deram apoio, o Setor Gráfico da Universidade Federal do Amazonas – UFAM foi o que mais colaborou e até 2019 foram impressos 25.000 exemplares.

A recomendação para a prática de CAMM é de três sessões diárias: pela manhã, quando os disparos do hormônio cortisol estão subindo; depois no início da tarde quando estão em alta; e à noite quando estão baixando. O hormônio cortisol é liberado pela glândula adrenal, e está envolvido no estado de alerta e na aprendizagem e fica muito ativo nas situações de estresse, quando sua liberação é maior. Quando essa liberação mais intensa se torna crônica, pode afetar a formação de novas memórias, o que prejudica o aprendizado e o comportamento social.

Notas:

5. A representação da área somatossensória e motora do cérebro, envolvendo face e mãos, foi apresentada pelo neurologista Wilder Penfield, na década de 50, a partir de estudos voltados para realização de procedimentos cirúrgicos para pacientes epilépticos. A representação gráfica da dimensão mais avantajada da face e das mãos no cérebro pode ser observada nas imagens disponíveis aqui. No livro da autora deste texto, mencionado na nota 3, na página 309, também é apresentada a imagem do homúnculo.

6. O neurologista António Damásio, no livro “O erro de Descartes” (Cia das Letras, 1996), apresentou a hipótese do marcador somático, que é um mecanismo relacionado à sensação do corpo, em resposta às emoções, e que pode influenciar o comportamento e o pensamento, inclusive o processo de tomada de decisões. Essa influência está presente no nosso cotidiano, geralmente de forma oculta, regendo nossas atitudes de aproximação ou aversão. Contudo, as respostas somáticas podem se tornar conscientes, constituindo-se num sentimento, que pode ser descrito com o uso da linguagem, o que caracteriza o processo de consciência.

Leia o primeiro texto da série:

A Terapia das Caretas – Movimentos das Mãos

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