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A “jaboticaba amazonense” e o triste novembro para a consciência negra

A “jaboticaba amazonense” e o triste novembro para a consciência negra
Por Amazonia Real

Antes de fazer entender o motivo do aparentemente estranho título da coluna do mês, algumas observações importantes à contextualização.

O 20 de novembro, enquanto data hoje oficial no calendário cívico para todo o país, é uma demanda dos movimentos negros e começou a ser consolidada em 1971, a partir do grupo Palmares, de Porto Alegre. Portanto, estamos no cinquentenário do Dia de Zumbi, ao qual se sobrepõe ao Dia da Consciência Negra.

Na prática, temos todo um mês da consciência negra, dada à enorme quantidade de eventos, manifestações e reflexões que a questão negra demanda. O que não quer dizer que não exista ação fora de novembro, mas é quando ela ganha grande foco e, prtanto, se distribui ao longo de todo o mês; daí que escrevo a coluna no pós dia 20 por conta do “congestionamento temático”.

Esse novembro de 2021 tem para mim triplo sabor. Primeiro o de retornar à luta do novembro negro, já que “ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro” por conta da internação que sofri em 2021 e na qual passei todo o novembro literalmente sem consciência alguma, posto que sedado e intubado. O segundo sabor é ver a inédita e bela ocupação nacional da mídia de forma articulada pela rede de historiadorxs negrxs, da qual orgulhosamente faço parte. E por fim um desagradável, pela consolidação materializada de uma tragédia anunciada que venho destacando há anos e que é muito específica do Amazonas. O que o próprio Movimento Negro nacional desconhece e quem não desconhece, aparentemente esqueceu, não dando a devida importância e apoio para evitar o que agora se passa.

Já muito escrevi sobre a culturalmente estabelecida negação da presença negra na Amazônia e, em especial no Amazonas, inclusive aqui na própria coluna. Essa negação tem raízes históricas e desde sempre ideológicas. O elemento “negro” amazônida é de há muito indesejável e negado, quer pela diferença da matriz econômica da antiga colônia portuguesa do Grão-Pará e Maranhão, que não fazia parte do estado do Brasil e só foi anexada ao Império brasileiro no pós-independência; quer pela ideia arraigada que a região era habitada apenas por indígenas, brancos e a sua mescla.

Essa ojeriza até ao uso da palavra negro é clara, inclusive, na própria legislação que aboliu a escravidão indígena na antiga colônia portuguesa do Norte do país.

Neste ponto é interessante e esclarecedor a leitura do seguinte trecho da Lei real de 1755 (com a linguagem e grafia originais da época) que mudou a situação de indígenas assimiláveis e descendentes perante a sociedade:

“10 – Entre os lastimosos principios, e perniciosos abusos, de que tem resultado nos Indios o abatimento ponderado, he sem duvida hum delles a injusta, e escandalosa introducçaõ de lhes chamarem NEGROS; querendo talvez com a infamia, e vileza deste nome, persuadir–lhes, que a natureza os tinha destinado para escravos dos Brancos, como regularmente se imagina a respeito dos Pretos da Costa de Africa. E porque, além de ser prejudicialissimo {a civilidade dos mesmos Indios este abominavel abûso, seria indecoroso ás Reáes Leys de Sua Magestade chamar NEGROS a huns homens, que o mesmo Senhor foi servido nobilitar, e declarar por isentos de toda, e qual quer infamia, habilitando- os para todo o emprego honorifico: Naõ consentiraõ os Directores daqui por diante, que pessoa alguma chame NEGROS aos Indios, nem que elles mesmos usem entre si deste nome como até agora praticavaõ; para que comprehendendo elles, que lhes naõ compete a vileza do mesmo nome, possaõ conceber aquellas nobres idéas, que naturalmente infundem nos homens a estimaçaõ, e a honra.” (Apud ALMEIDA, 1997)

Os desdobramentos

Pela leitura do trecho anterior, não fica difícil imaginar os desdobramentos de tal ato, a saber :

  1. A instalação de generalizada mentalidade de “superioridade” do índio e de seus descendentes “caboclos” em relação aos negros (naquele momento passando a ser considerados apenas os afros).
  2. O reforço da estigmatização do negro e da “necessidade” de rejeitar por todos os meios tal “pecha”, uma maior aceitação e mobilidade social do nativo-descendente.
  3. O surgimento da tradição popular de invisibilização e negação da presença negra na região.

Isso não foi alterado e ainda foi corroborado pela pretensão vinda da Belle Époque amazonense, da capital, a “Paris das Selvas” ser também uma “Liverpool, com a cara sardenta e olhos azuis”,  como bem lembrado no verdadeiro “hino” de Manaus, “Porto de Lenha” de Aldísio Filgueiras e do nosso caro amigo Zeca Torres (Torrinho), muito embora a intenção original na crítica tenha sido apenas lembrar e fomentar a “indigienidade e caboclitude” do manauara, sem considerar à aquela altura a também negritude presente.

Todo o exposto levou a um sentimento generalizado de admissão (justa) de uma “caboclitude” no amazonense. Porém, isso foi deturpado com intenções políticas e não de agora – desde meados da primeira década do XX -, e misturado com um equivocado “delírio étnico separatista” que não encontra abrigo lógico, acadêmico e tampouco jurídico superior.

O pior, a confusão tem sido usada tanto para prejudicar demandas do movimento local indígena quanto do negro. De forma metarracista (racismo cínico travestido de antirracismo) conseguiu criar na legislação municipal e estadual uma “jaboticaba amazonense” que agora justo no novembro da consciência negra materializou o temido no paradoxo de Karl Popper “ao tolerar os intolerantes a primeira coisa que acontece é a destruição  dos tolerantes” .

Hoje, temos no Amazonas, depois de 10 anos de luta demandada sobretudo pelo movimento negro e cinco anos de atraso injustificado, um Conselho Estadual de Igualdade Racial que deu nesse novembro posse aos seus primeiros membros. Mas que, com uma manobra golpista ao estilo do histórico “congresso foguetão” amazonense, simplesmente DEIXOU DE FORA PRATICAMENTE TODOS os representantes do movimento negro da posse e  nenhum na mesa constituída para dirigir o conselho. Além da triste constatação que aqui também temos nossos “Calabares”.

Não bastasse, outro ataque se dá nesse momento sobre a comissão de heteroidentificação da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), onde a “jaboticaba amazonense” pretende se inserir para protagonizar o processo de seleção de cotas raciais, não pelo seus objetivos e critérios sociais e legais que é aumentar a representatividade NEGRA (preta e parda), mas a partir de uma ideia de “pardo” que contemple pessoas que até se autodeclaram pardas, mas não se admitem negras, além de socialmente serem facilmente lidas como brancas (algumas até “loiras”). O que ocorre no caso de mais um ataque, esse em solidariedade prestada a pessoas “afroconvenientes” barradas em ação afirmativa da OAB amazonense.

A sensação é a mesma do nosso conhecido e trágico 7X1, mas tenham certeza que isso é só “o primeiro tempo, ainda tem muita bola para rolar”. Vai ter virada e épica, pois nossos ancestrais são de luta e nos inspiram, não à toa tivemos um Zumbi e um Luiz Gama, aqui não vai ter 7X1 !

Ainda mais se os companheiros e companheiras do restante do país finalmente visualizarem e entenderem a realidade amazônica e se juntarem à nossa luta.

Zumbi vive !


A imagem que abre este artigo, “Le Revolver”, é uma gravura de Biard, Auguste François, 1798-1882, Riou, Edouard, 1833-1900 (il.) e Gauchard, Félix-Jean, 1825-1872 (grav.) datada de 1862 e mostra uma cena de violência contra canoeiros no Amazonas. (Coleção Biblioteca Brasiliana Guida e José Mindlin).


Referência:

ALMEIDA, Rita Heloísa de. O Diretório dos Índios: Um Projeto de “Civilização” no Brasil do Século XVIII. Brasília , UnB, 1997.

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