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ToggleNos últimos 9 meses, episódios de tráfico de espécies brasileiras ameaçadas de extinção envolveram rotas ou indivíduos do Suriname, país amazônico vizinho cuja história é marcada por séculos de colonização europeia, ditadura militar, fragmentação social e econômica.
Um brasileiro, um togolês, um surinamês e um uruguaio estão presos por tráfico de animais selvagens em Lomé, capital de Togo. Uma quinta pessoa, um suposto israelense, mas com passaporte de Belarus, no leste europeu, fugiu, disse a Rádio France Internacional. Fontes brasileiras confirmaram as informações a ((o))eco.
Todos eles foram flagrados pela guarda costeira do país africano quando a traineira em que estavam teve uma pane, no último 12 de fevereiro. A carga tinha 20 micos-leões-dourados e 12 araras-azuis-de-lear, espécies que só vivem livres no interior do Rio de Janeiro e da Bahia, respectivamente.
“Claramente são animais capturados na natureza”, destaca Luís Fábio Silveira, doutor em Zoologia pela Universidade de São Paulo (USP) e presidente da Fundação Lymington, entidade voltada a reproduzir e repovoar ambientes naturais com aves ameaçadas.
Os micos e araras eram levados com autorizações falsas. Negócios com as espécies são vetados pela Cites, sigla em Inglês da Convenção sobre Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção. Representantes do acordo no Governo de Togo não retornaram nossos pedidos de entrevista.
A embarcação dos traficantes tinha bandeira brasileira, havia saído do Suriname e rumava ao Benin, país vizinho de Togo, indicam as investigações iniciais. Da África, os animais rumariam provavelmente à Europa ou Ásia, grandes destinos internacionais de espécies sul-americanas roubadas.
No momento da apreensão, três micos já estavam mortos. Os demais macacos e aves estavam em péssimas condições, doentes, mal alimentados, em gaiolas pequenas e sujas. Todos foram tratados por agentes do Ibama na residência do embaixador do Brasil na capital togolesa, Nei Bitencourt.
Os animais sobreviventes retornaram ao Brasil esta semana. O governo mobilizou equipes e uma aeronave para sua repatriação. “A ação sinaliza ao mundo que o país se importa com suas espécies”, avalia Luís Paulo Ferraz, secretário-executivo da Associação Mico-Leão Dourado (AMLD).
Araras e micos estão em quarentena no interior dos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro. Se conseguirem vencer o trauma e os ferimentos, poderão voltar aos ambientes naturais. Testes tentarão identificar precisamente onde foram capturados.
“Os micos vivem em grupos, em famílias, e sua reintrodução é complexa sem a informação de sua origem. Mas, já sabemos que alguns animais são de áreas que monitoramos no estado do Rio de Janeiro”, revela Ferraz, da Associação Mico-Leão Dourado (AMLD).
Responsável por administrar a Cites no Brasil, o Ibama afirma estar atento aos desdobramentos do delito. “Até o momento, as informações disponíveis não possibilitam conclusões definitivas sobre o caso, que está sob investigação pelo Ibama”, disse sua Assessoria de Imprensa.
Ao mesmo tempo, o flagrante de tráfico internacional de espécies brasileiras na costa africana é tudo menos um fato isolado. No palco do comércio ilegal de vida selvagem da América do Sul, o vizinho Suriname desponta como uma rota usual do crime organizado.
Convergência nacional
Em julho de 2023, 29 araras-azuis-de-lear e 7 micos-leões-dourados foram confiscados no Suriname. No mês seguinte, 24 daquelas aves foram roubadas de uma garagem onde estavam, a 60 Km da capital Paramaribo. Os demais emplumados e micos retornaram ao Brasil.
Já em setembro daquele ano, uma arara-de-lear foi filmada na localidade de Frederiksdorp, próxima a Paramaribo. Agentes do país tentam capturar o animal, supostamente sem sucesso. Desde então, não há mais informações sobre o paradeiro das 24 aves.
Uma ligação entre as araras surrupiadas no Suriname e as flagradas na costa do Togo seria possível com uma comparação entre amostras de sangue dos animais. “Podem ser aves do mesmo lote [que esteve no Suriname] ou podem ser aves ‘novas’”, diz Silveira, da USP.
Prova da atuação de traficantes no Brasil, este fevereiro duas ucranianas foram pegas com ovos de arara-de-lear na BR-116, em Minas Gerais. Elas dirigiam de Salvador (BA) a São Paulo (SP), de onde voariam ao Suriname. No mesmo período, um casal da espécie foi confiscado em Mairiporã (SP).
Para Silveira, da USP, os repetidos casos de tráfico conjunto de araras e micos brasileiros mostram claramente que quadrilhas “muito bem organizadas” operam no país. “Não é uma captura aleatória feita por amadores”, ressalta o presidente da Fundação Lymington.
“Os micos são animais extremamente conhecidos e ameaçados. Seu tráfico era uma ameaça controlada que piorou de 2 anos para cá. Se esse crime realmente voltou, a situação é muito grave para a espécie”, reclama Ferraz, da AMLD.
Corredor internacional
Coincidentemente, investigações da Liga da Terra Internacional (ELI, sigla em Inglês) traçaram poderosas redes e rotas de tráfico na Guiana e no Suriname para o comércio criminoso de presas, peles e ossos de onças-pintadas e outras espécies rumo a países asiáticos, sobretudo à China.
A onça é protegida num decreto contra a caça no Suriname desde 2002 e pela Convenção sobre Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (Cites), mas nos últimos anos sua população vem diminuindo pelo aumento da matança e do tráfico.
Ainda mais grave, os delitos com o maior felino das Américas são associados aos tráficos de pessoas, drogas, armas, lavagem de dinheiro e garimpo ilegal de ouro, revelou a ELI, que pesquisa, cruza e analisa dados e informações para combater crimes ambientais.
Desde 2019, a entidade já listou mais de 20 traficantes de onças no Suriname – 14 eram chineses e o restante eram surinameses ou europeus. Todos operavam com redes na América Latina. Boa parte dos animais traficados à Ásia passa pela Holanda e, em menor escala, pelos Estados Unidos.
A matança de onças-pintadas e outras espécies no Suriname para abastecer mercados criminosos na Ásia é reconhecida também em relatórios da União Internacional para Conservação da Natureza (UICN), de 2023, e do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, sigla em Inglês), de 2020.
“O comércio de animais selvagens é legal no Suriname. Isso é lamentável. Esse tráfico de animais selvagens que não são surinameses é um fenômeno totalmente novo”, disse a ((o))eco uma fonte que atua naquele país e que não será identificada para sua proteção.
Um relatório da ong Traffic e da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID, sigla em Inglês), reforça que, enquanto no Brasil isso é um crime federal, no Suriname, Guiana e Peru espécies silvestres “podem ser legalmente capturadas e comercializadas”.
“Esses países têm sistemas de cotas distintos para a captura e exportação de animais silvestres, o que facilita o tráfico destas espécies entre (…) países vizinhos (quando a cota de um dos dois países se esgota, animais são traficados ao outro cuja cota ainda não foi alcançada)”, explica a publicação.
Procurados por ((o))eco, representantes da Cites e outros membros do governo surinamês não atenderam aos nossos pedidos de entrevista sobre a situação nacional do tráfico de espécies até o fechamento da reportagem. Simultaneamente, fontes avaliam que a história atribulada do país tem conexões com um presente de administração precária, conflitos internos e corrupção.
Abalos seculares
Após vencer uma disputa com a Inglaterra pelas terras hoje do Suriname, a Holanda dominou o país por mais de três séculos, de 1667 a 1975, quando a colônia passou a não mais dar os lucros esperados com ouro, madeiras e outros materiais extraídos pelas mãos de escravos africanos.
A bonança durou apenas 5 anos, até um golpe de estado e a imposição de uma ditadura militar comandada por Dési Bouterse. O regime durou até o início dos anos 1990, quando eleições foram permitidas, mas os militares seguiram monitorando os atos de governo e ameaçando um novo golpe.
A população esperava dar fim aos anos cinzentos nas eleições de 2010, mas o parlamento deu maioria de votos a Bouterse. Foi reeleito em 2015 e, em 2020, perdeu as eleições para o ex-delegado Chan Santokhi. Indignado, o ex-ditador e apoiadores invadiram o parlamento federal nos mesmos moldes e poucos dias após o 8 de janeiro, na tentativa de golpe no Brasil.
Hoje condenado à revelia por crimes como sequestro e assassinato de críticos e opositores, incluindo advogados, jornalistas e professores universitários, Bouterse está foragido.
“Há uma grande dificuldade de se organizar frente ao deixado por Bouterse. Todo esse cenário é entremeado por corrupção orgânica”, analisa o holandês Simon Lobach, doutorando no Instituto de Pós-Graduação de Estudos Internacionais e do Desenvolvimento (Suíça) e ex-pesquisador na Universidade Federal do Pará (UFPA).
Conforme Lobach, fortes ciclos de agronegócio e de extração de alumínio foram sobrepujados pela extração de ouro, que responde por até 80% da economia nacional. A extração é industrial ou de garimpos autorizados onde predominam os “maroons”, etnia similar aos quilombolas brasileiros.
Além desses, no país convivem crioulos, indígenas e asiáticos de países como China, Índia e Indonésia. Cada grupo tem um partido próprio. O Holandês é a língua oficial do país, que não possui conexões rodoviárias com seus vizinhos e poucos voos internacionais, como para Belém (PA), Amsterdã (Holanda) e Estados Unidos.
Segundo a fonte surinamesa que pediu para não ser nomeada, o isolamento, a precariedade político-econômica do país e a pobreza de sua população mantêm um cenário favorável a crimes. “O tráfico é organizado e parece estar profundamente enraizado em diferentes estruturas, do governo ao setor privado. Estamos lidando com pessoas com muitas finanças à disposição”, conta.
O Índice Global de Crime Organizado, ferramenta mantida por União Europeia e Estados Unidos para analisar a situação dos países vinculados às Nações Unidas, mantém o Suriname nas últimas posições entre 193 nações quanto a registros e enfrentamento da criminalidade.
Mobilização futura
Os insistentes casos de tráfico de espécies nativas brasileiras e sul-americanas pedem ações urgentes dos governos nacionais e de agências internacionais, não só combatendo diretamente os crimes como também injetando novo fôlego nas economias para reduzir a desigualdade social.
Para Simon Lobach, no Instituto de Pós-Graduação de Estudos Internacionais e do Desenvolvimento (Suíça), o Suriname poderia reavaliar contratos comerciais e atrair setores econômicos não-extrativistas para empregar a população.
“É preciso uma estratégia de longo prazo para gerar empregos, incluindo produtos e populações amazônicas. Isso ajudaria a pacificar o país e o posicionaria de forma diferente na economia global”, defende o pesquisador.
Para Luís Paulo Ferraz, secretário-executivo da Associação Mico-Leão Dourado, as fronteiras têm que ser mais controladas contra o tráfico de animais silvestres. “Isso precisa de atenção geral do poder público brasileiro e de uma mobilização internacional”, destaca.
Diretora do Fundo do Patrimônio Verde do Suriname e parte de grupos conservacionistas da UICN, Monique Pool espera que os países da América do Sul unam forças contra o tráfico para preservar a biodiversidade regional. “Os animais são traficados como mercadorias. No entanto, são seres vivos e nenhum animal selvagem deve ser mantido em cativeiro”, lembra.
As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site O Eco e são de total responsabilidade do autor.
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