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TogglePublicada no dia 8 de abril, a Resolução 2.427/2025 do Conselho Federal de Medicina representa um retrocesso e a violação de direitos de pessoas trans e travestis no Brasil. Manifestação em frente ao CRM de Manaus (AM), em abril de 2025 (Foto: Juliana Pesqueira/Amazônia Real).
Manaus (AM) – A Resolução Nº 2.427/2025, publicada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) em 8 de abril, desencadeou uma onda de protestos e indignação em todo o Brasil. A medida é um retrocesso alarmante nos direitos de pessoas trans e travestis brasileiras. Numa canetada, os médicos do CFM proibiram a administração de bloqueadores hormonais e a realização de hormonização cruzada para pessoas trans menores de 18 anos, negaram a realização de cirurgias de afirmação de gênero para pessoas trans com menos de 21 anos e querem obrigar pessoas trans adultas a se submeterem a um ano de acompanhamento psiquiátrico antes da terapia hormonal. Coletivos, organizações e grupos de pessoas trans já saíram às ruas para reverter a resolução transfóbica.
A resolução do CFM foi alvo de duras críticas de entidades médicas brasileiras. Em nota conjunta publicada no último fim de semana, sociedades científicas alertaram para os riscos físicos e emocionais da medida, classificando-a como potencialmente prejudicial à saúde de adolescentes trans. As entidades reiteraram que a terapia hormonal é parte fundamental do processo de afirmação de gênero e só é indicada após avaliação cuidadosa com equipe multiprofissional.

Ato nacional pela revogação da Resolução 2.427/25 do Conselho Federal de Medicina, realizado em frente ao CRM do Rio de Janeiro (RJ), e em Santa Catarina (SC) (Foto: Mães pela Diversidade).
Para os especialistas, a resolução transfóbica do CFM ignora consensos médicos internacionais e representa um retrocesso no cuidado com a população trans. Se for adotada, a medida gera implicações diretas no acesso à saúde e na autonomia sobre os corpos de pessoas trans. Assinam a nota a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), a Associação Brasileira de Estudos em Medicina e Saúde Sexual (Abemss), a Sociedade Brasileira de Urologia (SBU), a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e a Associação Brasileira de Obstetrícia e Ginecologia da Infância e Adolescência (Sogia-BR).
Para reforçar a articulação pela derrubada da resolução, uma manifestação nacional acontece nesta sexta-feira, 25 de abril, em Brasília. A convocação é liderada pelo Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (Ibrat). Outros atos continuam pelo país nos dias 26 de abril e 3 de maio, em São Carlos e Ribeirão Preto (SP).
Ravi Veiga, 42, coordenador do núcleo Amazonas do Ibrat, declarou em entrevista à Amazônia Real que a resolução representa um retrocesso da saúde trans no Brasil. “A importância desse ato é que não podemos esquecer que antes de nós sermos adultos trans, nós fomos crianças e adolescentes trans. Como é que você pode não acolher uma criança, um adolescente que não consegue se identificar com o que a sociedade acha que ele é, impondo uma identidade que não é a sua? Afeta o nosso psicológico. Temos que acolher os adolescentes e crianças trans, elas estão aqui”, disse.
Resolução transfóbica
Em Manaus, capital do Amazonas, o ato foi liderado pela base regional do Ibrat na frente da sede do Conselho Regional de Medicina do Estado do Amazonas (Cremam), no bairro Flores, zona Centro-Sul da cidade. Os manifestantes cobraram pela revogação da Resolução 2.427/2025 ao lembrar que crianças e adolescentes trans existem.
A cantora, compositora e designer de moda Wendy Lady, 43, criticou duramente o CFM durante o protesto. Para ela, a medida não tem relação com a saúde da população trans, mas é um “conchavo entre o Conselho Federal de Medicina e a política de extrema direita no país e no mundo, porque isso virou uma tendência”.

Lady afirmou que a decisão ignora a existência de crianças trans e a realidade das violências que enfrentam. “Eu, com 43 anos, fui uma criança trans e passei por violências como a correção de gênero. Fui molestada na infância por ter características de menina, apesar de ter nascido com outro órgão”, disse, ao relatar as marcas deixadas pela transfobia. “Naquela época a gente não sabia quem era, mas sentia.”
Para a artista, obrigar pessoas trans adultas a passarem por psiquiatras e psicólogos para garantir acesso à saúde vai contra as orientações da OMS, que em 2018 deixou de incluir o chamado “transtorno de identidade sexual” ou “transtorno de identidade de gênero” no CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde).
Segundo Wendy, a resolução é mais um reflexo da hipocrisia do País. “Querem nos tirar os poucos direitos que temos, nos manter fora do mercado de trabalho, das escolas. O Brasil é o País que mais mata pessoas trans no mundo. Essa é uma sentença contra nossos adolescentes trans. Dizem que com 16 anos não podemos usar bloqueadores, mas aprovam leis para prender jovens de 16 por crimes. É uma contradição total. Esse País é mais hipócrita do que verdadeiro com as nossas vivências.”

O artista independente Daniel Esteves apontou que a medida é mais um reflexo da crescente onda de ataques anti-trans no Brasil, como um pânico que está sendo construído em cima das pessoas trans. Na sua opinião, a resolução patologiza as identidades trans e ignora a realidade já dura do acesso à saúde no Brasil. “Falam como se o acesso a hormônio ou bloqueadores fosse fácil, como se a gente estivesse incentivando isso, quando na verdade é super difícil. Já é raro ter apoio da família, e agora até isso querem vetar”, afirmou. Esteves questionou a hipocrisia dos discursos que dizem querer “proteger as crianças”. “Proteger quais crianças? Porque quando são crianças LGBTs, crianças trans, elas são completamente deixadas à margem”, manifestou.
Em nota de repúdio assinada pelo Coletivo Chama, Coletivo Antiordem, Ibrat, Sport Clube T Mosqueteiros, Ambulatório Transcender, ABRAI (Associação Brasileira Intersexo), Mães pela Diversidade e Associação Famílias e Resistência (AFeR), as entidades exigiram a revogação imediata da resolução transfóbica do CFM. Também reivindicam a garantia de acesso integral à saúde trans pelo Sistema Único de Saúde, com uso de bloqueadores permitido até os 18 anos e início da hormonização a partir dos 16, com consentimento dos responsáveis legais, ou de forma autônoma a partir da maioridade. Defendem ainda o acompanhamento multiprofissional, conforme diretrizes científicas e o princípio da autonomia progressiva previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). As organizações pedem pela retomada da Política Nacional de Saúde Integral LGBT com orçamento e estrutura adequados, e a participação efetiva de pessoas trans e travestis na construção das políticas públicas que impactam diretamente suas vidas.
Avanço do reacionarismo
Nos últimos anos, diversos projetos de leis (PLs) de autoria de parlamentares bolsonaristas e evangélicos ameaçam e violam os direitos humanos de pessoas trans no Amazonas. No Legislativo, os projetos foram apresentados por deputados que pertencem a partidos de direita, como o Partido Liberal (PL), sigla do ex-presidente Jair Bolsonaro, e o Partido da Mulher Brasileira (PMB). Cinco deles são de autoria da deputada federal Débora Menezes (PL).
Bolsonarista e com forte discurso religioso, Débora apresentou em 2023 um projeto de lei similar à resolução do CFM, que buscava impedir o acesso de crianças e adolescentes trans a procedimentos médicos, como o uso de bloqueadores de puberdade e hormônios. Na proposta foram citados dados sobre o atendimento no Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (Amtigos), do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), que realiza acompanhamento médico e psicológico a crianças e adolescentes que se identificam como transgêneros. Segundo esses dados, atualmente cem crianças com idade entre 4 a 12 anos fazem o tratamento de transição de gênero no local, além de 180 jovens de 13 a 17 anos.
O texto não incluiu dados do Amazonas e ignorou resolução de 2019 do CFM, que anteriormente autorizava o bloqueio puberal a partir dos primeiros sinais da puberdade, desde que feito em instituições credenciadas com protocolo de pesquisa. O tratamento é considerado seguro e reversível e também é indicado para pacientes diagnosticados com puberdade precoce. Já a harmonização é permitida somente a partir dos 16 anos, com exigência da autorização dos pais, enquanto cirurgias de afirmação de gênero são vedadas a menores de 18 anos.
Sofia Santos, 20, estudante do curso de Economia da Universidade Estadual do Amazonas (UEA), denunciou o caráter político e retrógrado da medida, definindo como “um regresso enorme” e uma ameaça direta à autonomia das pessoas trans sobre seus próprios corpos.

“São medidas que eu consideraria até anticonstitucionais, contra o nosso direito de nos autodefinirmos e termos acesso ao tratamento necessário e seguro”, afirma. Sofia destaca que os maiores afetados são crianças e adolescentes trans, que perdem o direito ao cuidado no momento mais vulnerável de suas vidas.
A estudante também denuncia a composição conservadora do atual CFM, eleito após o governo Bolsonaro (2018-2022), que ataca os direitos de outras minorias, como as mulheres. O presidente do CFM, José Hiran da Silva Gallo, participou em junho de 2024 de uma sessão no Senado defendendo o chamado PL do Estupro (PL 1.904/2024), que equipara a realização do aborto legal, em casos de estupro, acima de 22 semanas de gravidez ao crime de homicídio, com pena de 20 anos de prisão.
A estudante teme que a limitação gerada pela resolução leve jovens à automedicação, sem acompanhamento médico adequado, o que aumenta os riscos à saúde. “A necessidade de cirurgias para pessoas trans não se trata de uma questão apenas estética, é uma questão de saúde mental e prevenção ao suicídio. São decisões que impactam toda a vida de uma pessoa trans”.
Mobilização jurídica

Diante da gravidade da situação, organizações da sociedade civil se mobilizaram para contestar a resolução transfóbica do CFM no âmbito jurídico. A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e o Ibrat protocolaram no Supremo Tribunal Federal (STF), na terça-feira (22), uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) com o objetivo de suspender a resolução CFM e que revisa os critérios éticos e técnicos para o atendimento de pessoas com incongruência e/ou disforia de gênero.
Em sua argumentação, Antra e Ibrat enfatizam que “valores morais de pessoas transfóbicas ou sensos comuns não podem justificar o desprezo à saúde psicológica e social e à autodeterminação de gênero de crianças e adolescentes que se entendem como trans”. O Ministério Público Federal (MPF) instaurou no dia 16 de abril um procedimento para apurar a legalidade da resolução do CFM. De acordo com o MPF, o procedimento foi aberto a partir de denúncia feita pela Associação Mães pela Diversidade e de nota técnica publicada pela Antra. O CFM tem um prazo de 15 dias para prestar informações sobre os argumentos técnicos e jurídicos que fundamentaram a decisão normativa.
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