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Povo Karipuna enfrenta extremos climáticos e ameaças de invasores

Povo Karipuna enfrenta extremos climáticos e ameaças de invasores

Os indígenas da aldeia Panorama, na Terra Indígena Karipuna, enfrentaram uma forte cheia, em março; agora, eles sofrem com a seca histórica da Amazônia (Foto: CIMI).  


Porto Velho (RO) – Na Terra Indígena (TI) Karipuna, há um único poço artesiano para abastecer dez famílias. Só que ele está secando. Na aldeia Panorama, há uma caixa d’água com capacidade de 3 mil litros, que já não fica mais cheia. Para não danificar a bomba, ela é ligada de três em três dias e só consegue encher o reservatório até a metade. O povo Karipuna também está relutante em usar a água do rio local, o Jaci-Paraná. A área, que antes era uma reserva natural, agora está tomada por invasões e pastagens, e os indígenas observam a pulverização de agrotóxicos por pequenos aviões.

O drama da TI Karipuna, localizada entre Porto Velho e Nova Mamoré, em Rondônia, é mais um dos reflexos da seca histórica que se abateu sobre a Amazônia. E é um exemplo claro da  falta de atenção dos governantes e de assistência inadequada para enfrentar eventos climáticos extremos, como a seca de agora ou a enchente do começo do ano. Porém, o fenômeno climático El Niño sozinho não é capaz de justificar todos os problemas enfrentados pelos Karipuna.

A pressão no entorno da TI Karipuna chegou a um ponto em que as causas internas se mostram maiores e mais importantes do que as externas. “Os rios estão sem matas ciliares, as matas estão sendo transformadas em pastos, você tem desmatamento, garimpos e outras coisas. Mas isso ninguém fala porque fere a questão econômica local”, afirma o professor e pesquisador, Artur de Souza Moret, da Universidade Federal de Rondônia (Unir).

“Não tem mais essa diversidade”, alerta a liderança da comunidade indígena Panorama, Adriano Karipuna. “Os animais silvestres que eram nosso alimento, como o porco selvagem, que é o queixada, e outras espécies como o nambu, que é uma galinha selvagem, esses aí diminuíram muito, muito mesmo. Dependemos do extrativismo e não tem de onde tirar.” Com a grilagem de terra, com posterior desmatamento da área, os castanhais foram substituídos por pasto. Não há mais como colher castanhas, nem açaí.

Privados de água suficiente para as necessidades básicas, o povo Karipuna agora tem que lidar com a redução da quantidade de peixes. O surubim, a pirapitinga, o piau e o pintado estão sumindo do rio Jaci-Paraná, afluente do rio Madeira. Segundo a liderança indígena, a seca piorou a pesca dessas espécies, mas a redução do pescado já vinha ocorrendo antes desse período.

“Eu quero fazer uma linha de tempo: no passado, antes da primeira enchente (2014) a gente ia pescar e em meia hora pegava bastante peixe. Hoje, você fica o dia todo, pega cinco ou seis peixes e com muita dificuldade, por conta da escassez, por conta das usinas (do Madeira), desse impacto causado pelo homem”, reflete Adriano Karipuna.

O pesquisador Moret aponta que as hidrelétricas têm fundamental importância para a questão das alterações climáticas, mas não das mudanças climáticas extremas. Ainda assim, conforme o professor, as usinas do rio Madeira contribuem com as mudanças climáticas que, com outras causas, sejam internas ou externas, produzem resultados de grande impacto.

Enchente do rio Jacy Paraná na TI Karipuna, em Rondônia, em março de 2023 (Foto: Cacique André Karipuna/Divulgação) e os vertedouros da Usina Hidrelétrica Santo Antônio durante a seca do rio Madeira (Foto: Dhiony Costa e Silva/Divulgação da Santo Antônio Energia).

“A quantidade de umidade liberada pelos lagos, o barramento, assoreamento, todos contribuem para mudar o microclima local. Com essa mudança, você vai ter uma outra questão, que é a importância interna das hidrelétricas, dos desmatamentos, das queimadas e dos garimpos, na perspectiva de interferência em todo o microclima. E por conta disso vai alterando o clima total”, explica o professor da Unir.

Para a aldeia Panorama, a atual escassez de água se abate como um pesadelo que se repete duas vezes. No início deste ano, uma grande enchente devastou a comunidade, causando prejuízos ao modo de subsistência de vida e deixando pessoas desabrigadas. Sete meses depois, veio a estiagem. Na cheia de março, nove das dez casas da comunidade Panorama ficaram alagadas. Inclusive, a moradia de Adriano.

Sem apoio governamental, Adriano descreve que os indígenas fizeram uma campanha junto às organizações nacionais e Internacionais. “E essa situação chegou à Embaixada da Alemanha, onde nós fomos contemplados com nove casas. Se não fosse a Embaixada da Alemanha nós iríamos ficar sem casa”, comenta.

Moret, que atua em pesquisas sobre impactos ambientais e sociais dos grandes projetos de energia na Amazônia, percebe que as questões internas são frequentemente negligenciadas no debate público. A busca por lucro muitas vezes prevalece sobre a preocupação com o .

Tensões hídricas

Instalação de dois conjuntos motobomba no rio Madeira (Foto: Newton Sérgio).

Segundo Moret, a variabilidade no clima pode afetar todo o ecossistema. Isso ocorre porque os cursos de água estão interligados. Os rios se conectam entre si também pelos lençóis freáticos, que, por sua vez, estão ligados à água da chuva que cai e penetra no solo. No entanto, a interferência humana, como as queimadas e o desmatamento, pode afetar esse equilíbrio. Isso tem implicações importantes para a captação de água de poços artesianos, já que a quantidade e qualidade da água disponível dependem da saúde dos ecossistemas locais.

“Quando você tem uma floresta, bate uma chuva, a água demora a escorrer. A quantidade que desce para o lençol freático é maior. Quando tem um desmatamento, ela passa muito rápido e diminui a quantidade de água no lençol freático. Ou seja, isso vai ter interferência em todo o processo de captação de água. De poço artesiano, inclusive”, explica o pesquisador.

A falta de água é um problema sério para a comunidade do povo Karipuna. Necessidades básicas, como higiene pessoal e alimentação, estão prejudicadas. “Então a gente está com receio de usar aquela água (do rio Jaci-Paraná, supostamente contaminada). Estamos precisando de 12 caixas de águas de 3 mil litros e uma perfuração de um novo poço artesiano”, diz Adriano.

Pedido de vistoria

Uma área dentro da reserva de Karipuna incendiada por madeireiros (Foto:Tommaso Protti/Greenpeace/2019)

A comunidade Panorama pediu socorro à Defesa Civil de Porto Velho, mas Adriano disse que a ajuda não veio. “Eles não foram nem em 2014 (última grande cheia) e nem agora (seca). Precisamos de água e de alimentação. Eles têm aparato e equipe técnica para fazer esse tipo de avaliação. Uma coisa é o indígena falar do problema e outra coisa é a equipe técnica, que tem toda propriedade de argumentar nos termos técnicos sobre o problema.”

Elias Ribeiro, coordenador da Defesa Civil do município de Porto Velho, disse à Amazônia Real que “neste período não houve nenhum pedido de vistoria desta tribo indígena (Karipuna). Não tem nada oficializado, nem de maneira verbal”. Ribeiro também afirmou que no início deste ano, durante a cheia, a Defesa Civil municipal esteve na aldeia Panorama para distribuir água potável, em embalagens de dois litros, e cestas básicas. 

Adriano relata que a invisibilidade das necessidades das comunidades indígenas nas políticas de desenvolvimento tem prejudicado a capacidade de se adaptar a essas mudanças climáticas extremas. Sem investimentos e nem o socorro do poder público, os Karipunas se sentem abandonados.

“O governo federal e o poder público são os responsáveis por proteger o território indígena, não só do Karipuna, mas de outros povos. Eles têm que cumprir o que diz no artigo da proteção do território, até como cidadão. O que é isso? É preciso proteger o território e integridade física das comunidades indígenas”, lembra Adriano Karipuna.

A liderança indígena ainda critica o anúncio de investimentos de entidades não governamentais que não chegam ao território Karipuna. “Me assusta muito esses valores de cifras que falam que vão vir, como o Fundo Amazônia, para proteção territorial, demarcação de terras indígenas. Por quê? Tá acontecendo muito pouco. Inclusive eu tive uma reunião com a galera da Inglaterra. Me perguntaram: como está indo seu povo? Tá sendo beneficiado? E quando a gente fala a verdade, muitas vezes eles ficam chateados”, afirma.

Para Adriano, há muitas instituições falando pelos indígenas e dizendo representá-los, sem contemplar efetivamente as populações indígenas.  “Quem está falando não é a liderança indígena. Quem que tá se beneficiando disso é a instituição. Em nosso estado de Rondônia e outros Estados não tem nem estrada boa até a aldeia, não tem uma placa solar para os parentes. Aí eu me pergunto para onde está indo esse recurso?”, indaga o indígena.

A liderança Karipuna afirma que o governo federal precisa dialogar com os povos indígenas, com os povos das aldeias e não com as instituições. Adriano observa que a prioridade dos indígenas é a proteção de seus territórios. No entanto, ele destaca que é comum tirarem proveito dos indígenas, enquanto eles continuam enfrentando marginalização e ameaças constantes.

“Somos nós que vivemos sobre terror psicológico, amedrontados dentro de nossas casas, porque os invasores continuam arrodeando tanto na área fluvial, tanto na área terrestre. É madeireiro, é grileiro, e assim vai…Então nós não estamos tendo proteção, de fato”, afirma.

Nesta seca, Adriano conta que a ajuda que está chegando à aldeia Panorama vem do Conselho Indigenista Missionário  (Cimi) de Rondônia, que tem orientado sobre o uso da água e dado suporte logístico e administrativo na construção das nove casas que estão sendo erguidas na aldeia, custeadas pela embaixada alemã.

Laura Vicuña Pereira Manso, conselheira do Cimi, disse que a Missão Franciscana da Alemanha, que é um órgão da Igreja Católica, também está ajudando com a construção de mais três casas. “E a Arquidiocese de Porto Velho e o Conselho Indigenista Missionário fazem a gestão desses recursos, mas também estão contribuindo por conta das contrapartidas que têm que ser feitas. Infelizmente, o governo se omitiu e está se omitindo até agora, que é o mínimo fazer a parte do saneamento. Foi enviado documento mas até agora não houve resposta nenhuma”, disse a conselheira.

Medo de sobrevivência

Cotidiano T. I. Karipuna (Foto: Alexandre Cruz Noronha/Amazônia Real)

O povo Karipuna tem medo de ser extinto, como os Tanaru, de ver uma migração dos indígenas para a cidade ou que os mais jovens, diante da falta de opções econômicas, possam ceder às pressões dos invasores do território. A escassez de recursos, como a pesca, e a economia em declínio abrem espaço para pressões variadas.

“Eles podem comprar os parentes. Vão viver de quê? Como eu disse, não tem pesca, a economia tá lá embaixo. Por que muitos povos se corrompem? Porque não têm perspectiva de vida financeira. Hoje temos muita criança. Tenho medo que esses meninos podem se perder. Tenho muito medo da questão da língua e da cultura.  Porque a cultura, ela tá junto com o desmatamento e a floresta caindo, a cultura também tá caindo”, lamenta a liderança Karipuna. Já não há mais recursos essenciais da natureza para fabricar a flauta e o arco, que fazem parte da tradição do povo Karipuna.

Para o pesquisador Moret, há medidas de adaptação a essa nova realidade climática e devem ser adotadas em diferentes níveis, com ênfase nas ameaças já presentes. “Porque o processo de garimpo não apenas desmata, ele suja a água, contamina a água. Por conta disso, vai mudando todo o ecossistema. Há dois tipos de ação: uma local e uma mais macro. A local é proteger as matas ciliares, os rios, as florestas, os plantios serem sem agrotóxico. E o mais geral é ter as combinações de ações de controle de desmatamento, controle de derrubada, controle de queimada”, conclui.


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