Deputado quer propor que Estado reconheça e faça reparação de vítimas da ditadura. A imagem acima foi feita durante a sessão especial da Alepa (10/4), mostra Idalci Machado Serra (chorando) e sua irmã Iraci, filhas de Benedito Pereira Serra, presidente do sindicato de trabalhadores rurais do Pará que morreu no dia 15 de maio de 1964, depois de ter sido preso e torturado. (Foto: Celso Lobo/ AID/ ALEPA).
Belém (PA) – Desde o dia 29 de maio de 1980 a camponesa e professora aposentada Maria Oneide Lima luta por justiça e reparação. Naquele dia, ela se tornaria viúva do sindicalista Raimundo Ferreira Lima, o Gringo, assassinado a mando de latifundiários em plena campanha eleitoral pelo comando do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Conceição do Araguaia, no Pará, à época. Depois de perder o marido, Maria Oneide assumiu a luta de Gringo e passou a ser também ameaçada por latifundiários apoiados pelo Exército em época de ditadura e na prática de uma igreja que, no Araguaia, dialogava com a Teologia da Libertação. “O que mais importa é que fizessem com que culpados pudessem pagar e a memória dos que tombaram permanecesse viva”, disse à Amazônia Real. Oneide lembra que o pior é a ausência do convívio familiar. “Meus filhos sempre choravam no Dia dos Pais. Isso não se repõe”.


Maria Oneide Lima e Raimundo Ferreira Lima, o Gringo, líder sindical morto durante a ditadura militar (Reprodução) e o deputado Bordalo (Foto: Celso Lobo /AID/ALEPA).
Mas é uma luta que parece ganhar novos capítulos. Ao contrário do posicionamento oficial da União nas últimas décadas, o estado do Pará pode vir a ter uma comissão de reparação a vítimas da ditadura civil-militar-empresarial no Brasil (1964-1985). A possibilidade foi aventada pelo deputado estadual Carlos Bordalo (PT) durante a sessão especial para debater as ‘políticas de memória, justiça e reparação: as demandas de desaparecidos, torturados e mortos pela ditadura militar no Brasil’, ocorrida no dia 10 de abril no Auditório João Batista, da Assembleia Legislativa do Pará (ALEPA). Diante de uma plateia que lotou as dependências do auditório cujo nome homenageia um político vítima de crime de pistolagem, o parlamentar afirmou ser possível um anteprojeto de lei estabelecendo uma comissão permanente de reparação, numa espécie de continuidade dos trabalhos da Comissão Estadual da Verdade e Memória, encerrada em 2023, com a entrega à sociedade dos três tomos do Relatório Paulo Fonteles Filho.
“Vivemos um momento de reflexão e ação. É necessário garantirmos que as atrocidades do passado não sejam esquecidas, mas reparadas. Não é só lembrar os horrores, mas fazer justiça às vítimas, aos atingidos”, afirmou o deputado, sugerindo, entre outras medidas, o desarquivamento dos arquivos militares com o intuito de esclarecimento de casos ainda encobertos no Pará. Segundo o parlamentar, dez unidades da federação já possuem uma comissão de reparação. “O Pará não tem”, destacou.
“As leis de reparação às vítimas da ditadura são fundamentais em diversas dimensões – histórica, política, social e simbólica – especialmente em países que vivenciaram regimes autoritários, como o Brasil. Elas representam mais do que simples compensações financeiras: são instrumentos de justiça, memória e garantia de não repetição”, afirmou à Amazônia Real, o ex-ministro dos Direitos Humanos, e hoje assessor especial da pasta, Nilmário Miranda, presente ao evento.
Miranda lembrou que a luta por memória e justiça por parte das vítimas da ditadura no Brasil obteve uma vitória significativa com a expedição de novas certidões de óbitos reconhecendo que mortos e desaparecidos foram vítimas da ação violenta de agentes do Estado. Segundo ele, esses documentos devem ser entregues às famílias nas próximas semanas.

Uma lei de reparação assume oficialmente que o Estado cometeu crimes e violações durante a ditadura – como prisões arbitrárias, tortura, assassinatos, desaparecimentos forçados, censura, perseguições políticas e exílio. Esse reconhecimento é um passo essencial na responsabilização do Estado por seus atos.
“Mesmo quando não é possível punir diretamente os responsáveis – muitas vezes protegidos por leis de anistia –, as reparações funcionam como formas de restaurar simbolicamente a dignidade das vítimas e de seus familiares. É uma maneira de dizer: o que aconteceu foi errado, e o Estado reconhece sua falha”, afirmou em sua fala o advogado Adriano Mendes de Souza, vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-PA.
Massacre do Eldorado

A anistia não pode ser um ‘guarda-chuva’ para encobrir crimes contra a humanidade. Em resumo, é o que defende a promotora de justiça Ana Cláudia Pinho, coordenadora do Centro de Apoio Operacional dos Direitos Humanos do Ministério Público do Pará. Segundo ela, o estado possui 12 casos na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que não podem ser suprimidos pela Lei de Anistia de 1979. São casos como o Massacre de Eldorado dos Carajás e a Chacina de Ubá, para ficar em apenas dois exemplos.
Além disso, há cinco casos do Pará na Corte Interamericana de Direitos Humanos, que também não podem ser considerados internacionalmente como protegidos pela Lei da Anistia. Entre eles está a tentativa de extermínio do povo Munduruku pelas Forças Armadas no período da ditadura. “O grande problema é que nunca fizemos nossa reparação”, disse a promotora ao Amazônia Real. “Isso gera um sentimento de normalidade, de impunidade”, afirma.
Além das perdas físicas e materiais, muitas vítimas carregaram (e ainda carregam) traumas psíquicos profundos. A reparação, mesmo que limitada, também atua no campo psicológico e afetivo, dando voz e visibilidade a essas dores muitas vezes silenciadas.
É o que se pode depreender do vivenciado por Elias Sacramento, que viria a se tornar um profundo militante de causas camponesas, atuando na Academia (universidades) depois do grande trauma da perda do pai. Mestre em História, Elias teve o pai Virgílio Sacramento, liderança camponesa, morto num misterioso atropelamento causado por um caminhão de uma fazenda em Moju. Sempre que precisa falar sobre o assunto em mesas ou entrevistas, Elias não consegue controlar o choro na lembrança paterna. Isso ocorreu mais de uma vez no evento, quando interrompeu a fala sob um choro convulsivo.
É na região rural do Pará que a mão da ditadura militar se fez mais pesada. É o que diz Gionei Viana, coordenador da Comissão Camponesa da Verdade. Há onze anos a comissão trabalha com a perspectiva de famílias camponesas torturadas e assassinadas pelos militares.
“Elas perderam direitos e não foram reconhecidas pelas leis de direitos de transição”, informou Gionei Viana à Amazônia Real. Segundo ele, entre 1964 e 1988, ano da Constituinte, dois mil camponeses e camponesas morreram vítimas de violência no campo. Desse total, 1.244 são de pessoas que moravam na Amazônia Legal. Só no Pará foram 692 pessoas. “Apenas 41 foram reconhecidas pela Comissão Nacional da Verdade”, afirma Viana. “O Pará é o centro da repressão política no campo. O governo federal sempre foi contra camponeses em geral”, denuncia.
Viana afirma isso com contundência por entender que as leis de reparação geralmente vêm acompanhadas de comissões, documentos e investigações públicas, como a Comissão Nacional da Verdade no Brasil. Isso contribui para o fortalecimento da memória coletiva e impede que se apague ou distorça o passado. Nesse sentido, preservar a verdade histórica é essencial para educar as novas gerações sobre os riscos do autoritarismo. “Mas isso precisa ser pensado de forma mais ampla e não excludente”, defende.
Ao reconhecer e reparar os erros do passado, o Estado se compromete a criar mecanismos que impeçam a repetição desses crimes. Isso inclui reformas institucionais, revisão de condutas das forças de segurança, e políticas públicas voltadas para os direitos humanos.
“Nenhuma democracia é plena se não enfrenta seu passado de forma transparente e responsável. Reparar os danos da ditadura é parte do processo de amadurecimento institucional e do fortalecimento da cidadania. É também um sinal de que o Estado respeita os princípios democráticos e os direitos individuais”, resume à Amazônia Real padre Paulo Joanil da Silva, mais conhecido como padre Paulinho, um dos coordenadores da CPT no Pará. “Resta saber se avançaremos ou continuaremos a andar em círculos”, desafia.
As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
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