Um capítulo intitulado “Uma utopia amazônica com ressalvas” [1] foi publicado recentemente, disponível aqui. Na série que segue esta discussão é ampliada e atualizada.
Elaborar visões de uma “utopia” para a Amazônia tanto pode resultar em consequências positivas quanto negativas no que se refere às decisões sobre desenvolvimento no mundo real. Sob o ponto de vista positivo, saber qual é o objetivo final pode ajudar na orientação de decisões para alcançá-lo, em vez de se dispersarem esforços em uma série de prioridades de menor importância. Do lado negativo, uma visão utópica, em que leis são impostas e obedecidas, pode, facilmente, se transformar em uma dedução de que a história se desenvolverá segundo esse cenário e, portanto, estradas, barragens e outros projetos desenvolvimentistas possam ser construídos sem causar danos significativos. Tais cenários de “governança” já tiveram papéis cruciais na justificativa de projetos aprovados com imensos impactos.
Histórias exemplares
Um exemplo histórico desse perigo é fornecido pela crença do Banco Mundial de que a rodovia BR-364 (Cuiabá-Porto Velho) seria um modelo, com projetos de assentamento “adaptados à capacidade de suporte da terra” [2], quando, na verdade, abriu a Rondônia para o desmatamento desenfreado (por exemplo, [3]). Outro exemplo é a pavimentação da rodovia BR-174 (Manaus-Boa Vista) em 1996 e 1997, que foi anunciada como um “corte cirúrgico” na floresta sem desmatamento (ver [4]), quando, em vez disso, a migração para o sul de Roraima tornou a área um grande foco de desmatamento e exploração madeireira [5, 6]). Outro exemplo é a reconstrução da rodovia BR-163 (Santarém-Cuiabá), onde um cenário simulado de governança indicou pouco desmatamento [7]. De fato, o desmatamento resultante excedeu em muito não apenas o previsto no cenário de “governança”, mas também o previsto no cenário “business as usual” (“negócios como sempre”), que projetava tendências passadas sem governança. Na preparação para a aprovação do Estudo de Impacto Ambiental de 2002, a governança ao longo da BR-163 foi aclamada como tendo chegado (ver [8]).
Muitos eram otimistas sobre a possibiliade da BR-163 seguir o caminho da governaça (e.g., [9]), e a eleição de um “prefeito verde” em Guarantã do Norte, município do Mato Grosso de onde a rodovia cruza a divisa com o Pará, foi visto como indicando isto. Infelizmente, alguns meses depois, a diretora do Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA) foi feita refém por madeireiros em Guarantã do Norte e o prefeito foi forçado a renegar suas promessas de criar áreas protegidas [10]. A Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, declarou que a BR-163 seria um “corredor de desenvolvimento sustentável” (ver [8]).
A história tem sido diferente [11]. Infelizmente, a rodovia logo se tornou um das maiores focos de desmatamento e queimada ilegal, grilagem, invasão de terras indígenas, garimpagem ilegal e rebaixamento de unidades de conservação [12]. A BR-163 alcançou notoriedade em 2019 com a organização de um “dia do fogo” por fazendeiros em Novo Progresso, onde queimadas foram coordenadas para serem realizadas simultaneamente em 10 de agosto em toda a Amazônia, como um sinal ao presidente Bolsonaro de que os “ruralistas” (grandes proprietários de terras e seus representantes) estavam respondendo ao seu chamado para desenvolver a Amazônia [13]. [14]
A imagem que abre este artigo mostra caminhão com toras de madeira e visto circulando pela rodovia BR- 364 próximo ao município de Itapoã do Oeste-RO (Foto: Bruno Kelly/Amazonia Real).
Notas
[1] Fearnside, P.M. 2025. Uma utopia amazônica com ressalvas. p. 103-119. In: M. Colón (ed.) Utopias Amazônicas. Ateliê Editorial, Cotia, SP. 335 p.
[2] Goodland, R.J.A. 1985. Brazil’s environmental progress in Amazonian development. pp. 5-35 In: J. Hemming (ed.) Change in the Amazon Basin: Man’s Impact on Forests and Rivers. Manchester University Press, Manchester, Reino Unido.
[3] Fearnside, P.M. 1987. Deforestation and international economic development projects in Brazilian Amazonia. Conservation Biology 1(3): 214‑221.
[4] Fearnside, P.M. & N. Leal Filho. 2022. Solo e desenvolvimento na Amazônia: Lições do projeto dinâmica biológica de fragmentos florestais. p. 107-134. In: Fearnside, P.M. (ed.) Destruição e Conservação da Floresta Amazônica. Editora do INPA, Manaus. 356 p.
[5] Barni, P.E., P.M. Fearnside & P.M.L.A. Graça. 2012. Desmatamento no Sul do Estado de Roraima: padrões de distribuição em função de Projetos de Assentamento do INCRA e da distância das principais rodovias (BR-174 e BR-210). Acta Amazonica 42(2): 183-192.
[6] Barni, P.E., A.C.M. Rego, F.C.F. Silva, R.A.S. Lopes. H.A.M. Xaud, M.R. Xaud, R.I. Barbosa & P.M. Fearnside. 2021. Exploração madeireira e incêndios florestais. Amazônia Real, Série completa.
[7] Soares-Filho, B.S., A.A. Alencar, D.C. Nepstad, G.C. Cerqueira, M.C.V. Diaz, S. Rivero, L Solórzano & E. Voll. 2004. Simulating the response of land-cover changes to road paving and governance along a major Amazon highway: The Santarém-Cuiaba´ corridor. Global Change Biology 10(5):745–764.
[8] Fearnside, P.M. 2005. Carga pesada: O custo ambiental de asfaltar um corredor de soja na Amazônia. p. 397-423 In: M. Torres (ed.) Amazônia revelada: Os descaminhos ao longo da BR-163. Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Brasília, DF. 496 p.
[9] Nepstad, D.C., D. McGrath, A. Alencar, A. C. Barros, G. Carvalho, M. Santilli, & M. del C. Vera Diaz. 2002. Frontier Governance in Amazonia. Science 295: 629-631.
[10] Fontes, C. 2003. Marina Silva e Ciro Gomes encerram o encontro BR-163 Sustentável. Panorama Ambiental, 01 de dezembro de 2003.
[11] Fearnside, P.M. 2016. Environmental policy in Brazilian Amazonia: Lessons from recent history. Novos Cadernos NAEA 19(1): 27-46.
[12] Wenzel, F. 2022. Os Engenheiros da grilagem. The Intercept, 01 de dezembro de 2022.
[13] Eisenhammer, S. 2019. ‘Day of Fire’: Blazes ignite suspicion in Amazon town. Reuters, 11 de setembro de 2019.
[14] Esta série é ampliada e atualizada a partir de Fearnside, P.M. 2025. Uma utopia amazônica com ressalvas. p. 103-119. In: M. Colón (ed.) Utopias Amazônicas. Ateliê Editorial, Cotia, SP. 335 p.
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