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ToggleNa Foz do Amazonas, um dos ecossistemas marinhos mais ricos e desconhecidos do planeta, a ameaça da exploração de petróleo se soma ao colapso da pesca artesanal e ao aumento de encalhes de animais marinhos. A vida oceânica resiste em silêncio, enquanto sons invisíveis anunciam um desequilíbrio cada vez mais difícil de ignorar.
Oiapoque (AP) – No ponto mais ao norte do Brasil, onde o rio Amazonas corre para o mar, um dos ecossistemas mais ricos — e menos estudados — da Amazônia costeira está sob ameaça. Ali, onde estuários, manguezais, recifes submersos e águas oceânicas se entrelaçam, a vida que sempre floresceu em abundância começa a dar sinais de colapso. As ondas sonoras emitidas pelo setor petrolífero para localizar petróleo no fundo do mar estão afetando os habitantes dessas águas. Mamíferos encalhados e o aparecimento de peixes raros indicam que algo silencioso — e grave — está em curso.
Julio Garcia, pescador há 45 anos e presidente da colônia de pescadores de Oiapoque, conhece bem essas águas. Foi ali, onde o Amazonas se despede da terra firme e se dissolve no oceano, que ele sempre pescou — em harmonia com os ciclos da natureza, atento a cada mudança do vento, a cada silêncio das marés.
Mas algo mudou. “O mar está doente”, diz Julio. E, com ele, adoece também o modo de vida de comunidades ribeirinhas e indígenas que dependem da pesca artesanal para sobreviver. Golfinhos, botos, baleias migratórias, peixes, moluscos, crustáceos e corais — muitos ainda desconhecidos pela ciência — dividem esse território ameaçado, onde natureza, cultura e subsistência estão profundamente entrelaçadas. O pescado capturado nas águas turvas da foz abastece mercados locais, centros urbanos como Macapá e até outras regiões do país. No entanto, esse ecossistema, que conecta biomas, culturas e modos de vida, está sob crescente risco.
A ameaça vem de diferentes frentes, mas uma das mais controversas é a possibilidade de exploração de petróleo na região. A Petrobras iniciou os estudos sísmicos 3D na Bacia da Foz do Amazonas em 2013, após adquirir blocos exploratórios na 11ª Rodada de Licitações da ANP. Entre 2014 e 2015, a empresa avançou na aquisição e processamento dos dados sísmicos da região. Em 2017, o Ibama negou a licença para perfuração de poços, apontando falhas no Estudo de Impacto Ambiental (EIA-Rima). A estatal voltou a solicitar a autorização em 2023, com foco no poço batizado de Morpho (FZA-M-59), mas o pedido foi novamente recusado devido aos riscos ambientais ao ecossistema sensível conhecido como Sistema de Recifes da Amazônia. Em 2024, o Ibama aprovou o plano de emergência da Petrobras, permitindo que o processo de licenciamento ambiental avançasse. Já em 2025, a empresa segue aguardando a liberação final para iniciar as perfurações.
Menores e mais difíceis de encontrar: os peixes da costa do Amapá refletem o desgaste de um ecossistema sob pressão (Foto cedida por Rudja Santos).
As populações locais já percebem mudanças: peixes menores, períodos mais longos de escassez e o desaparecimento de espécies comuns. A ausência de dados atualizados sobre a fauna marinha e a falta de fiscalização eficaz agravam o cenário, enquanto sinais do desequilíbrio surgem sob a superfície. A Foz do Amazonas, um verdadeiro laboratório natural a céu aberto, se vê no centro de uma disputa entre conservação, saberes tradicionais e exploração econômica.
A falta de estudos e dados específicos gera lacunas que dificultam diagnósticos precisos, abrindo espaço para que a narrativa do “desconhecimento ambiental” seja usada como justificativa para avançar sobre uma das regiões mais sensíveis da costa brasileira. Monitoramentos conduzidos pelo Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá (Iepa), em parceria com o Instituto Federal do Amapá (Ifap), por meio do Projeto de Caracterização e Monitoramento de Cetáceos (PCMC), com o apoio de estudantes e técnicos veterinários, indicam um aumento no número de animais encalhados, vivos ou mortos. A condição desses corpos revela sinais de estresse ambiental crescente, com lesões internas, subnutrição e interações com redes de pesca entre as causas mais prováveis.
Mas há um fator ainda menos visível, embora igualmente destrutivo, que contribui para esse cenário de desequilíbrio: o som.
A guerra acústica submarina
Canhões de ar comprimido, disparados a cada dez segundos durante a prospecção sísmica, são parte fundamental do processo exploratório para identificar a viabilidade da extração de petróleo na região. No entanto, esses disparos transformam o ambiente marinho em um verdadeiro campo de guerra acústica, alterando comportamentos, desorientando animais e ameaçando toda a estrutura ecológica local. A poluição sonora avança silenciosamente sobre um dos ecossistemas marinhos mais biodiversos do planeta. Na Foz do Amazonas, mesmo antes do início da exploração petrolífera, a vida marinha já sofre os efeitos desse impacto invisível. Para isso, a Petrobras conduz levantamentos geofísicos, incluindo dados sísmicos, com o objetivo de mapear as estruturas subterrâneas e avaliar o potencial petrolífero da área.
A poluição sonora representa hoje o primeiro grande impacto da indústria petrolífera sobre os oceanos, segundo o engenheiro bioacústico e diretor executivo da Universidade Técnica da Catalunha Michel André, uma das maiores autoridades mundiais no estudo da comunicação animal submarina. “A principal fonte de impacto no oceano atualmente é o som, muito antes da primeira gota de óleo”, alerta. Em um ambiente onde a maioria dos organismos depende da audição para caçar, fugir de predadores e se reproduzir, ele alerta que o aumento descontrolado de ruídos artificiais pode desencadear um efeito dominó de consequências irreversíveis.
Durante as atividades de prospecção sísmica, a Petrobras utiliza canhões de ar comprimido que disparam ondas sonoras a cada dez segundos, atingindo níveis superiores a 230 decibeis — mais altos que o som de um foguete decolando. Segundo dados da Noaa (Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos EUA), cetáceos como botos e baleias começam a sofrer estresse acústico a partir de 120 decibéis, e danos auditivos severos podem ocorrer a partir de 160 decibéis. Isso significa que os ruídos gerados não apenas ultrapassam os limites suportáveis por essas espécies, como podem provocar desorientação, surdez permanente e até morte.
Impacto do ruído submarino: botos e baleias sofrem com sons acima de 120 dB; acima de 160 dB, há risco de surdez e morte. Fonte: NOAA (Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos EUA).
Para animais que se orientam e se comunicam essencialmente pelo som, como os botos-cinza, baleias jubarte, cachalotes e até algumas espécies de peixes como as corvinas, os impactos da poluição sonora representam uma ameaça direta à sobrevivência e o ambiente se torna um campo minado invisível — onde sobreviver deixa de ser uma questão natural e passa a ser um desafio acústico. “É como tentar conversar em meio a uma guerra de fogos de artifício”, compara André. “Se um animal perde a audição, está condenado. E o mais grave: nem percebemos que ele morreu.” A Foz do Amazonas, parte da chamada Amazônia Azul, abriga populações de espécies como o peixe-boi-marinho, o boto-cinza e diversas tartarugas e baleias, para quem a comunicação sonora é vital. Quando o som é mascarado ou destruído, não é apenas um animal que sofre. É toda a cadeia alimentar que se rompe”, enfatiza André. Isso porque muitas espécies dependem da comunicação sonora para se orientar, encontrar parceiros, evitar predadores e caçar. Se esses sinais são interrompidos, a sobrevivência de diferentes níveis da cadeia alimentar fica comprometida, afetando desde os pequenos organismos até os grandes predadores, desequilibrando todo o ecossistema marinho.
Apesar da gravidade do problema, o monitoramento acústico ainda é negligenciado. Michel André destaca que, embora tecnologias baseadas em inteligência artificial já permitam detectar espécies sensíveis e adaptar atividades humanas em tempo real, poucos projetos as adotam de forma consistente. “Hoje, a técnica existe. Podemos mapear paisagens sonoras, identificar espécies em risco e até suspender operações por alguns minutos para que os animais se afastem. Mas isso exige uma atitude proativa das empresas”, explica.
Ele cita um exemplo: nos anos 2000, a construção de um parque eólico no Mar Báltico, na Alemanha, gerou intenso ruído subaquático durante a instalação de turbinas. Pouco depois, golfinhos encalharam na região, levando a protestos ambientais e à suspensão das obras pelo governo. Como a empresa não tinha dados científicos que comprovassem a não relação entre o projeto e os encalhes — apesar de ser uma área com histórico de ocorrências semelhantes —, as obras ficaram paralisadas por seis meses.
Esse caso mostra a importância de medidas preventivas, como monitoramento acústico e coleta de dados ambientais, antes de iniciar projetos no mar. André critica a ausência de leis que obriguem a mitigação sonora, mas ressalta que as próprias empresas deveriam adotar medidas preventivas. “Não podemos esperar conflitos. Governos, cientistas, empresas e sociedade precisam se unir. Todos somos consumidores, todos somos responsáveis.”
Ciência na linha de frente
Na costa do Amapá, um esforço emergencial busca registrar os primeiros sinais desse impacto ambiental ainda pouco compreendido. O médico-veterinário Luiz Fernando Sabioni, integrante da equipe do Iepa, participa de patrulhas quinzenais nas praias de Goiabal e Calçoene. Nessas expedições, a equipe procura animais marinhos encalhados. “Avaliamos os encalhes e, sempre que possível, examinamos a bula timpânica dos cetáceos para investigar possíveis lesões causadas pelo som, que podem indicar impactos das atividades sísmicas,” diz Sabioni.
O veterinário destaca as dificuldades logísticas dessas missões: “Chegar rapidamente até esses animais é complicado. Mesmo quando um animal é registrado como código 2, ele pode evoluir para código 3 em poucas horas devido às grandes distâncias.” Ele esclarece que a classificação dos animais segue um sistema baseado em seu estado: “Código 1 indica um animal vivo. Código 2 refere-se a um animal morto, porém ainda bem preservado. Já o código 3 indica que o corpo apresenta sinais de decomposição, o que impede a análise do ouvido interno, essencial para o monitoramento.”
O Projeto de Caracterização e Monitoramento de Cetáceos (PCMC) é uma iniciativa que visa avaliar os efeitos das atividades sísmicas na fauna marinha, principalmente na Bacia Pará-Maranhão e na Foz do Amazonas. Essa avaliação é uma exigência do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
(Ibama) para o licenciamento ambiental de empreendimentos de exploração de petróleo na Margem Equatorial. No Amapá, o projeto é conduzido em parceria pelo IEPA, Instituto Federal do Amapá (Ifap) e Campus Agrícola Porto Grande, contando com o apoio de estudantes e técnicos da área veterinária.

Registro de um encalhe no Amapá: animal marinho é encontrado morto por pesquisadores do IEPA, que monitoram os efeitos ambientais na região (Foto: IEPA).
Desde o início das operações, diversos animais marinhos encalhados foram encontrados, incluindo botos-cinza (Sotalia guianensis), peixes-bois e tartarugas-verdes. Muitos desses animais estavam em estágio juvenil, o que é motivo de preocupação quanto ao impacto na sustentabilidade das populações locais.
As análises preliminares sugerem que as frequências sonoras geradas pelas atividades sísmicas podem estar afetando o comportamento e a saúde dos cetáceos, levando-os a áreas menos habitadas. Sabioni explica que “os cetáceos usam muito o ouvido para se comunicar e se localizar.””.
O monitoramento em três frentes — sensibilização, patrulhas e análise — busca justamente entender esses padrões e causas sob a perturbação causada por estudos sísmicos e a vida marinha. Os dados preliminares já revelam um cenário preocupante: entre 2023 e 2025, o PCMC registrou 170 mamíferos marinhos e 907 quelônios mortos ou debilitados ao longo do litoral amazônico. Mais de 97% dos mamíferos e 67% das tartarugas foram encontrados sem vida, mas é sua possível conexão com atividades humanas que acende o alerta. Enquanto emalhes em redes de pesca e predação natural aparecem como causas imediatas, as ondas de choque de atividades sísmicas são capazes de desorientar e até matar espécies que dependem da ecolocalização — um sistema natural de orientação e comunicação baseado na emissão e recepção de sons, usado por animais como golfinhos e baleias para “enxergar” o ambiente ao seu redor, localizar presas e se comunicar.
O aumento dos encalhes em períodos de atividade sísmica já foi observado em diversas regiões do mundo. Uma pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte analisou 351 encalhes ao longo de duas décadas, identificando que 65 ocorreram até uma semana após operações sísmicas. Destes, cinco apresentaram sinais patológicos compatíveis com síndrome de embolia gasosa, potencialmente associada à exposição a atividades sísmicas.

Sinal de alerta: espécime marinho encalhado é documentado por cientistas do IEPA no litoral amapaense. O caso integra esforços de monitoramento da fauna aquática (Foto: IEPA).
Os registros de encalhes desses animais, quando analisados em conjunto com o aumento do tráfego pesqueiro e a possibilidade de prospecção de petróleo, funcionam como uma espécie de termômetro do impacto humano sobre o ecossistema. É evidente que a área enfrenta pressões crescentes: segundo dados coletados pelo Instituto Serrapilheira, o esforço de pesca aumentou significativamente nos últimos anos, os encalhes de mamíferos e quelônios têm se tornado mais frequentes, e as ondas sonoras das sondagens sísmicas levantam preocupações entre ambientalistas e cientistas quanto à desorientação da fauna marinha.
“Estamos falando de uma aposta cega”, alerta Mariana Andrade, coordenadora da campanha de oceanos do Greenpeace Brasil, que acompanha de perto os impactos e contradições desse processo. Em entrevista, ela destacou o risco de se realizar esse tipo de atividade em uma região que ainda é pouco conhecida pela ciência e extremamente sensível do ponto de vista ecológico. “A bacia da Foz do Amazonas é uma região muito especial do ponto de vista da biodiversidade. Tem uma dinâmica de correntes complexa, com muitos organismos fixos no fundo do mar e também espécies de grande porte, como baleias e golfinhos”, explica.
O Greenpeace realizou duas grandes expedições à região: a primeira, entre 2016 e 2018, com uso de submersíveis para registrar imagens do fundo marinho e levantar dados sobre os ecossistemas locais; e uma segunda, mais recente, chamada “Costa Amazônica Viva”, em que foram lançados derivadores — pequenas boias com GPS — para rastrear as correntes marítimas. Os resultados chamaram atenção. “Alguns desses equipamentos chegaram rapidamente ao Suriname, à Guiana Francesa e até à Flórida, nos Estados Unidos. Isso mostra o quanto essa região é conectada, e o quanto um eventual vazamento de óleo, por exemplo, pode ter impactos transfronteiriços quase imediatos.”
Sísmica e seus efeitos colaterais
Apesar de não realizar estudos próprios sobre poluição sonora, o Greenpeace acompanha de perto as recomendações do Ibama e os debates científicos sobre os impactos da atividade sísmica. “Esse tipo de estudo lança jatos de ar de altíssima pressão no fundo do mar para mapear o subsolo. É um som muito forte, constante, que pode afetar diretamente animais que dependem de ecolocalização, como baleias e golfinhos. Mas também pode confundir ou afastar cardumes inteiros”, explica Mariana Andrade.
Ela ressalta que os impactos são tanto ambientais quanto econômicos. “Peixes desorientados não seguem seus padrões migratórios. Eles se afastam das zonas tradicionais de pesca. Isso afeta diretamente os pescadores artesanais, que já dependem de um ambiente equilibrado para garantir seu sustento.” A coordenadora ainda destaca que o impacto dessas ondas não é só local: ele pode alterar ecossistemas que se estendem por centenas de quilômetros, afetando rotas migratórias, cadeias alimentares e modos de vida inteiros. A exploração de petróleo em áreas ecologicamente frágeis, aliada à sobrepesca e à falta de fiscalização, pode desencadear um colapso ecológico silencioso. Os encalhes de mamíferos marinhos, os registros de organismos sentinelas e o aumento do esforço pesqueiro são partes de um mesmo quebra-cabeça.
Ecologia, geopolítica e colapso
Blocos de exploração de petróleo na Margem Equatorial, incluindo a Foz do Amazonas. Imagem divulgação da Petrobras.
Enquanto os olhos do país se voltam para os debates sobre a exploração de petróleo na região, mais dados inéditos revelam um avanço igualmente preocupante: entre 2016 e 2024, o esforço de pesca aparente aumentou em 14,12% na Zona Econômica Exclusiva (ZEE) brasileira entre os estados do Amapá, Pará, Maranhão e Piauí. A intensificação da atividade pesqueira, muitas vezes sem controle ou fiscalização adequada, ameaça justamente as espécies que formam a base dessa economia tradicional — e agrava os riscos socioambientais em um território já vulnerável.
A análise do esforço de pesca — calculado em horas por quilômetro quadrado (h/km²) — mostra uma distribuição desigual, mas com tendência clara de intensificação em pontos estratégicos, especialmente em uma região que abriga formações únicas compostas principalmente por estruturas carbonáticas, algas calcárias, rodolitos e fundos de esponjas. Essa singularidade ecológica torna a área ainda mais valiosa, próxima à foz do rio Amazonas. Essa área, que abriga um sistema recifal único no mundo e diversas espécies endêmicas, está sob dupla pressão: de um lado, o aumento da atividade pesqueira; do outro, o avanço das sondagens e interesses da indústria petrolífera.
Dados coletados pelos pesquisadores Marina Méga, Maria Napolitani e Iago Simões, que fazem parte do programa de treinamento em ecologia quantitativa do Instituto Serrapilheira, mostram que a média anual de esforço pesqueiro tem aumentado de forma constante. Em 2016, era de cerca de 17,63 h/km²; em 2024, chegou a 20,12 h/km². Nas áreas de maior pressão, o salto foi ainda mais alarmante: de 184,72 para 273,09 h/km². Esse aumento concentrado sugere que outras zonas já estão se esgotando ou que poucas áreas ainda mantêm estoques viáveis — um sinal clássico de que o sistema está à beira de um colapso pesqueiro, quando pescar mais significa encontrar cada vez menos.
Esforço de pesca na Margem Equatorial aumentou entre 2016 e 2024, com alta expressiva nas áreas mais pressionadas. Fonte: Instituto Serrapilheira (2025).
A pesca artesanal desempenha um papel essencial na economia do Oiapoque, município localizado na foz do rio Amazonas, com impacto direto na segurança alimentar e na geração de renda para centenas de famílias. A atividade garante empregos diretos e indiretos e movimenta significativamente a economia local. Com um PIB estimado em R$ 106 milhões anuais, o setor pesqueiro do estado tem um potencial explorável de até 400 mil toneladas por ano. Essa relevância econômica torna a pesca uma atividade vulnerável aos riscos associados à exploração de petróleo na foz do Amazonas.
Esse impacto não é apenas estatístico: ele se reflete diretamente na rotina de quem vive da pesca. Julio Garcia, pescador artesanal em Oiapoque, relata que a atividade está cada vez mais difícil. “A pesca nos últimos anos tem diminuído. A gente enfrenta um conflito grande com as indústrias pesqueiras, que vêm afogando os pescadores pequenos”, conta.

Redes vazias e distâncias maiores: os desafios da pesca artesanal afetam a segurança alimentar de comunidades costeiras (Foto cedida por Davi Marworno).
Ele observa que os peixes estão menores e mais escassos. “A proporção que pegávamos antes, já não pegamos hoje. O esforço de pesca é muito grande. As indústrias diminuíram a malha da rede, pegam muito peixe pequeno”, lamenta. Entre as espécies mais capturadas estão pescada amarela, corvina (canguçu), gurijuba, uritinga, bagres e pescada branca, mas, segundo o pescador, até essas estão ficando difíceis de encontrar. “Elas estão se afastando da margem, talvez pela pressão que o mar está sofrendo”, diz Julio.
Sobre a possível exploração de petróleo na região, ele é cético: “Pode até trazer desenvolvimento para alguns, mas para nós, pescadores, não muda muita coisa. A maioria aqui é semi-analfabeta. Que emprego vamos conseguir na Petrobras?”, questiona. Apesar disso, ele reconhece que o diálogo com a empresa começou, ainda que timidamente. “Depois de muita pressão, eles começaram a vir conversar. Às vezes informam o que estão fazendo, e alguns pescadores até prestam apoio com seus barcos.”
O temor, no entanto, permanece: “Se acontecer um acidente, não temos para onde correr. Estamos entre a Guiana Francesa e a terra indígena. Vai afetar todo mundo: pescadores, economia, Oiapoque inteiro.”

A pesca que resiste: barco no Oiapoque simboliza o esforço diário de famílias ribeirinhas por segurança alimentar (Foto cedida por David Marworno).
Uma corrida por licenças
A Petrobras, por sua vez, defende que está investindo em novas fronteiras com responsabilidade ambiental. Segundo a empresa, o interesse na Margem Equatorial — que inclui a Foz do Amazonas — visa atender à demanda global por energia, explorando reservas consideradas promissoras. Em sua comunicação institucional, a Petrobras afirma que “realiza suas atividades em conformidade com a legislação vigente”, cumprindo “todas as exigências legais e ambientais”, e que o licenciamento solicitado prevê “planos robustos de mitigação de impactos, inclusive com estrutura de resposta a emergências ambientais e salvaguardas para áreas sensíveis”.
A empresa foi procurada pela reportagem, mas não concedeu entrevista. Em nota, comunicou que “mantém diálogo constante com os órgãos reguladores” e que “segue comprometida com a segurança operacional e a proteção ambiental em todas as suas atividades”.
Em maio de 2025, o Ibama aprovou o conceito do Plano de Proteção e Atendimento à Fauna Oleada (PPAF) da Petrobras, permitindo que a empresa avance para a última etapa do processo de licenciamento: a simulação de resposta a um possível vazamento de óleo. A sonda NS-42, destinada a essa operação, está prevista para chegar à região até o final de junho, após a conclusão da limpeza de corais em seu casco. No entanto, a realização do simulado depende da coordenação entre as equipes técnicas do Ibama e da Petrobras para definir o cronograma dos testes. Enquanto isso, debates sobre a necessidade de um estudo ambiental abrangente (AAAS) e propostas legislativas, como a Licença Ambiental Especial (LAE), que visa facilitar o licenciamento de empreendimentos estratégicos, continuam a gerar discussões entre ambientalistas, políticos e a sociedade civil.
A Foz do Amazonas está no limite. Os encalhes de espécies marinhas, a dificuldade crescente da pesca artesanal e os efeitos da prospecção sísmica apontam para um cenário de desequilíbrio ambiental em expansão. Mesmo diante de evidências concretas de impacto, a exploração de petróleo avança sobre uma região ainda pouco conhecida pela ciência e desprotegida por avaliações ambientais abrangentes.
O que está em jogo não é apenas a biodiversidade de uma das áreas mais sensíveis do país, mas também a segurança alimentar, a economia local e o modo de vida de comunidades que dependem diretamente do mar. Sem decisões baseadas em dados consistentes e medidas de precaução efetivas, o risco de um colapso ecológico e social deixa de ser hipótese — e se torna uma possibilidade concreta.

Barco de pesca sai do Porto de Oiapoque (Foto cedida por David Marworno).
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A publicação desta reportagem especial foi apoiada pela Amazônia Real no âmbito do projeto colaborativo entre jornalistas e cientistas latino-americanos, liderado pelo Instituto Serrapilheira do Brasil e pelo Centro Latino-Americano de Jornalismo Investigativo (CLIP), para explorar como os danos à biodiversidade da Amazônia interrompem os vários serviços ambientais que ela fornece ao continente.
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