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ToggleTrês anos depois do assassinato da atriz e ativista, o policial militar Jeremias Costa da Silva, que tentou fugir da cena do crime, vai cumprir pena de reclusão e perder o cargo na corporação, mas ainda pode recorrer em liberdade. Na imagem acima fotos do Cabo (Reproduções redes sociais).
Manaus (AM) – Foram necessários três anos, quatro meses e 21 dias de espera para que um júri popular condenasse o policial militar Jeremias Costa da Silva pelo assassino da atriz e ativista trans Manuella Otto. Na noite de quarta-feira (3), o Jeremias foi sentenciado a 10 anos de prisão por homicídio simples privilegiado, com perda do cargo de PM. O sentenciado poderá recorrer em liberdade.
No Código Penal, o crime de homicídio “simples” tem pena de 6 a 20 anos de prisão, que pode ser atenuada se ocorreu “por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima”. Manuella foi morta a tiro à queima-roupa por volta da 1h34 de 13 de fevereiro de 2021, no motel “Minha Pousada”, na zona norte de Manaus. Jeremias tentou fugir do local sem prestar socorro à atriz que o acompanhava no motel.
A reação da comunidade LGBTQIA+ foi de revolta. “Foi um crime por motivo fútil, por motivo torpe, eu tinha esperança de no mínimo 15 a 30 anos e aí ele leva o mínimo de pena possível?”, questionou a ativista Joyce Gomes, da Associação de Travestis, Transexuais e Transgêneros do Estado do Amazonas (Assotram). “Uma sentença de 10 anos reflete exatamente aquela vida, ela vale o quê?”, acrescentou Lidiany Cavalcante, líder do Banzeiro – Grupo de Estudos e pesquisas em Gênero, Saúde Mental e Lutas Sociais na Amazônia.
O julgamento no Fórum de Justiça Ministro Henoch Reis, pela 2ª Vara do Tribunal do Júri da Comarca de Manaus, acatou uma das teses da defesa do PM Jeremias, a de que Manuela Otto teria “provocado” a vítima. Interrogado presencialmente, o policial apenas respondeu às perguntas da juíza Danielle Monteiro Fernandes Augusto, recusando-se a atender aos questionamentos do Ministério Público, que fazia a acusação. Prevaleceu apenas a versão dos fatos feita pelo autor do crime.
Jeremias afirmou que atirou contra Manuella quando tentava recuperar a sua arma que estava em posse dela. Nessa versão, o PM afirma que teria repreendido a atriz por ela começar a consumir cocaína no motel e ficar “bastante alterada” a ponto de pegar a arma do policial que estava no criado-mudo. Foi o que bastou para a Defesa reivindicar a diminuição da pena, já que Jeremias foi vítima de uma “injusta provocação”.
O policial militar só foi preso por conta de uma imagem do sistema de segurança do motel, que mostrava que o assassino de Manuella Otto tinha uma tatuagem na omoplata. Foi essa marca que permitiu identificá-lo no curso das investigações do homicídio. Dentro do motel, logo após ter desferido o tiro contra Manuella, Jeremias foi filmado pelas câmeras de segurança saindo com pressa do local com uma pistola na mão e encobrindo o rosto com a camiseta que usava. Sem conseguir abrir a porta da garagem, ele lançou seu veículo para arrombar a porta do estacionamento para fugir da cena do crime.
Ao se apresentar para depoimento na Delegacia Especializada em Homicídios e Sequestros (DEHS), depois do crime, ele se recusou a tirar a camisa para comparar as tatuagens, mas a polícia usou uma foto de Jeremias, na qual ele mostrava a tatuagem, para identificá-lo como autor do crime.
Perda de cargo
No dia do julgamento, a magistrada Danielle Monteiro decidiu pela perda do cargo público, porque Jeremias “tentou a impunidade do crime, ao colocar sua blusa cobrindo a cabeça e rosto, quando em verdade, esperava-se outra conduta, como prestar socorro à vítima”. Na sentença, que cabe apelação, a Justiça decidiu que o PM poderá recorrer em liberdade, já que o próprio Ministério Público não requereu a prisão do condenado.
Ainda pelo Código Penal, sempre que o assassinato é cometido por um motivo torpe o fútil, trata-se de um homicídio qualificado e que pode ter sua pena aumentada em um terço quando “o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima, não procura diminuir as conseqüências do seu ato, ou foge para evitar prisão em flagrante”, como fez Jeremias.
Campeão de assassinatos
Para a ativista Joyce Gomes, a condenação de Jeremias a apenas 10 anos de reclusão passa uma sensação muito forte de insegurança para pessoas LGBTQIA+ “A gente sabe que o Brasil está no ranking dos países que mais matam as pessoas trans do mundo. Então quando a gente vê um julgamento desse com uma pena tão pequena, isso aumenta a sensação de insegurança”, lamentou.
“Infelizmente, muitos casos de crimes no Brasil se destacam pela indignação que geram na população, seja pela brutalidade dos atos, pela leniência das penas ou pela impunidade dos culpados”, diz Katryna Sanches, a advogada e ativista trans. Ela lembra de casos como o de Sabrina Santos, uma travesti conhecida na comunidade LGBTQIA+, que em 2019 foi encontrada morta com sinais de espancamento. “A violência do crime chocou a comunidade, e houve uma forte demanda por justiça. No entanto, a falta de avanços rápidos nas investigações causou frustração”, recordou.
Katryna também lembrou o caso de Dandara dos Santos. “Embora o caso tenha acontecido no Ceará, ele ecoa pela gravidade da violência que travestis e pessoas trans enfrentam em todo o Brasil, incluindo o Amazonas”, disse. Dandara foi brutalmente espancada e morta em 2017, e o crime foi filmado, o que gerou grande repercussão e indignação à época. “Esse caso destaca a brutalidade extrema que essa comunidade pode enfrentar.”
A advogada contou que ela mesmo já foi vítima de violência por ser trans. “Não cheguei nem registrar o BO [boletim de ocorrência], porque pra quem não sabe, somos tratadas como lixo em uma delegacia. Esses casos exemplificam a realidade cruel enfrentada por travestis e pessoas trans no Amazonas, marcada por violência extrema e uma resposta muitas vezes insuficiente das autoridades”, contou.
Para a ativista, a falta de condenações rápidas e justas para os agressores é uma fonte constante de revolta e dor para a comunidade LGBTQIA+. “Seria importante abordar a necessidade de políticas públicas eficazes para proteger essa população vulnerável e garantir que crimes motivados por preconceito não fiquem impunes”, afirmou.
Apenas leis mais duras, segundo a advogada, poderiam inibir crimes contra a população LGBTQIA+, mas que é necessário uma abordagem multifacetada que vá além da punibilidade. “[Seria necessário] outras políticas públicas e medidas de educação e inclusão são essenciais para promover um ambiente seguro e igualitário”, disse a ativista, sugerindo além da criminalização da homofobia e transfobia, a existência de programas educacionais, campanhas de conscientização e principalmente monitoramento e pesquisa.
“Épico e ímpar”
Reproduções de fotos de Adamor Guedes (Arquivo pessoal).
O antropólogo e ativista Francisco Nery, que faz parte do ecossistema social formado pela Aliança Nacional LGBTI; Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas (Abrafh) e Rede GayLatino, tem uma visão mais otimista. À Amazônia Real, ele classificou o julgamento do PM Jeremias Costa da Silva como “épico e ímpar”.
“A gente pode citar vários outros assassinatos de LGBTs que ainda não tiveram resposta do Judiciário e nem muito menos do próprio do próprio poder público como um todo. Tem várias pessoas que assassinaram pessoas LGBTs e que continuam soltas por aí. No que diz respeito ao que a Manuella representa nesse momento é super importante porque a gente está vendo que as coisas estão começando a ter uma sensibilidade a mais”, comentou.
Entre os crimes até hoje não solucionados, Nery recordou do assassinato do então presidente da Associação Amazonense de Gays, Lésbicas e Travestis, Adamor Guedes, que foi assassinado dentro de sua própria casa. O crime ocorreu em 2005. Na época, o ativista tinha 40 anos.
Vidas que valem menos
Lidiany Cavalcante, que é professora na Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e coordena o Laboratório de Estudos de Gênero, lembrou que nos últimos anos o País tem vivenciado um aumento dos discursos de ódio, sobretudo contra as minorias.
Segundo a Associação Nacional de Pessoas Transsexuais e Travestis (Antra), mais de 90% das pessoas trans que morrem no Brasil são mulheres. “É um dado desafiador. A maioria é de pobres e pretas. A gente tem que fazer um recorte interseccional, se trata de classe, de gênero, de raça. Muitos dos crimes, eles têm requintes de feminicídio, sobretudo os crimes contra as mulheres”, analisou Lidiany.
Para a pesquisadora, a vida das pessoas trans é tratada como se tivesse um valor menor na sociedade brasileira. “São as vidas que muitas vezes as pessoas pouco se importam, ou não se importam”, atesta Lidiany, para quem o resultado do julgamento e a pena aplicada ao réu do caso Manuella Otto, é um exemplo desse “menor valor” à vida de uma pessoa trans. “Não conseguimos vislumbrar mecanismos de Justiça que possam nos auxiliar verdadeiramente a proteger as vidas que, para essa sociabilidade, são vidas ‘matáveis’”, finalizou.
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