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Justiça Federal mantém prisão de tuxaua Mura acusado de abuso sexual 

Justiça Federal mantém prisão de tuxaua Mura acusado de abuso sexual 

Mulheres e meninas da aldeia de Raimundo Nonato Oliveira denunciaram vários crimes recorrentes do tuxaua. Jovem denunciou pressões e ameaças para mudar depoimento contra o líder indígena. No registro acima, Polícia Federal durante Operação Yaucacy (Foto: Polícia Federal AM).


Por Leanderson Lima e Elaíze Farias, da Amazônia Real

Manaus (AM) – A Justiça Federal negou, no último dia 12, o pedido de liberdade de Raimundo Nonato Oliveira, tuxaua do povo Mura da aldeia Muratuba, na região do Lago do Acará, no município de Autazes (a 111 quilômetros de Manaus), acusado de crimes de estupro de vulnerável recorrente contra quatro mulheres, inclusive uma criança de oito anos de idade à época. As vítimas querem proteção, pois temem risco de vida na comunidade.

O líder indígena Raimundo Nonato Muratuba, como é conhecido, de 57 anos, foi preso durante a Operação Yaucacy, realizada pela Polícia Federal (PF). A prisão temporária de 30 dias foi mantida pela Justiça, com prazo final até 9 de fevereiro. Crimes de estupros são considerados hediondos. “As penas ultrapassam 30 anos de prisão, sem prejuízo de outros que possam surgir com a continuidade das investigações”, diz a Polícia Federal.

A investigação das acusações contra o tuxaua Raimundo Nonato foi iniciada a partir de denúncias realizadas por mulheres e homens da etnia Mura, de diferentes idades, ao Ministério Público Federal (MPF) no Amazonas. Segundo a PF, também estão sendo apurados, contra o tuxaua, os crimes de abuso de poder, coação de vítimas e cerceamento de direito básicos de indígenas da aldeia Muratuba.

Raimundo Nonato Muratuba preso durante a Operação Yaucacy, realizada pela Polícia Federal (Foto: Reprodução de vídeo).

Uma das vítimas que fez as denúncias é uma sobrinha (e não neta, como foi inicialmente divulgado) do tuxaua da aldeia Muratuba, que relatou vários episódios de abusos ao longo dos anos. “Eu estava cansada daquilo”, diz em áudio. De acordo com relatos que a Amazônia Real teve acesso, a adolescente, que vinha sendo abusada desde que era criança, está sendo pressionada a mudar o depoimento contra o tio.

Um indígena da comunicade enviou uma mensagem de texto à reportagem nesta semana revelando a tensão na aldeia: “ela está tendo muita pressão para não falar nada. A família está fazendo tudo para ela tirar a queixa”.

Apesar da denúncia, não há informação se a família da jovem pediu proteção para sua vida ao Ministério Público Federal e à Justiça Federal. O MPF foi questionado se tomou alguma medida nesse sentido, mas não respondeu.

Raimundo Oliveira também foi acusado de tentativa de estupro por outra mulher da etnia. A reportagem teve acesso a uma declaração dela em áudio, que pediu para manter o nome em sigilo em razão de ameaças. Segundo a mulher Mura, ao tentar pedir apoio para o nascimento de sua neta e para conseguir o auxílio maternidade de sua nora, o tuxaua teria colocado como condição ela aceitar manter relações sexuais com ele. A mulher Mura recusou e o tuxaua negou a ajuda.

“Ele faz isso com as mulheres porque nunca ninguém teve coragem de abrir a boca. A não ser eu e outras que tivemos essa coragem. Quero que façam justiça por isso. Foi muito triste o que aconteceu com minha vida e na vida de outras mulheres que sofreram a mesma coisa”, disse a vítima, que disse ter sido expulsa da aldeia.

Na aldeia Muratuba o clima é de tensão, pois existe uma mobilização interna para tentar desacreditar as denúncias das mulheres feitas ao MPF, espalhando a narrativa de que se trata de “invenção” e que a origem das denúncias teria sido por “vingança”, incentivada por um indígena que não mora mais na aldeia. Internamente, há também expectativa de que o tuxaua seja liberado da prisão, conforme apurou a reportagem.

“Querem emplacar a narrativa de perseguição, de vingança, mas isso não acontece”, afirmou uma liderança que apoiou as mulheres nas denúncias.

Procurado, o presidente do Conselho Indígena Mura (CIM), Kleber Mura, disse que não sabia dos casos de abuso sexual.

Assumi o CIM recentemente, no dia 3 de janeiro e, portanto, desconhecia totalmente esse caso. Tanto é que para nós da coordenação e para o povo isso foi uma surpresa geral”, afirmou ele, que teria declarado em áudio enviado em um grupo do Whatsapp que estava aguardando a saída de Muratuba da prisão e que quando isso acontecesse ele iria comemorar, conforme a reportagem apurou.

O que diz a defesa do tuxaua

Ivan Queiroz, advogado do tuxaua Raimundo Nonato Oliveira, foi procurado para falar sobre a defesa do indígena, mas ele preferiu não comentar. “Esse é um processo que corre em segredo de justiça e, portanto, não posso falar a respeito”. 

Em um vídeo divulgado um dia antes da audiência de custódia na Justiça Federal, ocorrida no dia 12 de janeiro, o tuxaua Raimundo Nonato diz que estava sendo bem tratado “apesar dos pesares”. “A situação não é fácil, estão me acusando de estupro”, disse.

Mulheres precisam ter coragem

Polícia Federal durante Operação Yaucacy em Autazes (Foto: Polícia Federal/AM).

Uma liderança feminina do povo Mura, que pediu para não ser identificada nesta matéria por medo de ameaças, criticou a omissão de lideranças indígenas por não terem tomado providências contra as denúncias de abusos sexuais na aldeia Marituba.

Segundo a liderança feminina, a notícia dos abusos foi “um impacto muito grande” entre os Mura, sobretudo porque se trata de uma liderança conhecida e tradicional, além de ter um cargo importante na saúde indígena. Raimundo Nonato é conselheiro distrital de saúde em Autazes.

“Ele foi escolhido para defender o povo. Foi alguém em que eles teriam mais confiança. Em quem vou confiar? Será que todos são assim? Será que vai aparecer mais? Quantas mulheres estão sofrendo abuso e não têm coragem de denunciar? Por ser coagida, por parte não só da liderança, por ser de muita influência, será que não vou ser coagida?”, questiona.

A liderança feminina conta que se sentiu indignada com os crimes relatados após a prisão do tuxaua. “Como mulher, a gente está completamente indignada. No contexto geral, as mulheres sofrem muito isso por medo, por achar que uma liderança por ser um dos mais respeitados, não vai fazer isso. Isso é enojado, um absurdo e fica um alerta para nós podermos lutar contra esse tipo de violência nas nossas aldeias”, desabafa.

Conforme a liderança ouvida pela Amazônia Real, a violência de gênero contra mulheres indígenas ainda é pouco discutida nos territórios tradicionais e dentro do movimento por causa do machismo, mas que o assunto precisa ser incluído nas pautas das assembleias e reuniões.

“Vamos tomar a frente disso, vamos conscientizar essas mulheres sobre este assunto, que é delicado. Pode ser liderança, pode ser maior tipo de pessoa de influência que tem na aldeia, mas as mulheres não podem se calar diante dessas violências feitas por eles. Precisamos nos empoderar para ter coragem de denunciar, para que todas possam se libertar dessas dores que sofrem por anos”, afirmou a liderança Mura do movimento de mulheres de seu povo.

Violência de gênero na aldeia

A violência de gênero, da qual faz parte a violência sexual, existe em todos os segmentos da sociedade. E assim como acontece nas sociedades não-indígenas, nas aldeias, o fenômeno é silencioso, como descreve a liderança Núbia Rios, que é indígena do povo Tikuna.

“Lembro da violência quando eu era criança, mas a gente não tinha esse entendimento. Hoje, analisando, identifico a violência de gênero dentro de casa na época da minha avó, da minha bisavô, da minha mãe. São mulheres que silenciaram a vida toda”, afirmou Núbia, em entrevista à Amazônia Real sobre este caso.

Para Núbia Rios, muitas mulheres optaram pelo silêncio, na maioria das vezes, porque não tinham apoio familiar.  “Diziam coisas do time ‘ruim com ele, pior sem ele’, ‘ele é o pai dos teus filhos’. Então, tinha que continuar aguentando, suportando a violência dentro de casa, fosse ela física, emocional, fosse psicológica, financeira”, analisa.

De acordo com Núbia, como os povos indígenas vivem em constante enfrentamento em causas como a luta pelo respeito aos territórios indígenas e a demarcação de terras, o direito à saúde e à educação, entre outras questões, a violência de gênero acaba ficando em um plano secundário e poucas são as lideranças indígenas mulheres que aceitam falar sobre o tema.

“Ainda somos poucas, por não aceitar, até porque é uma tradição nossa de obediência e disciplina. Sempre são os nossos mais velhos que nos aconselham, nos orientam para que a gente não traga para dentro da nossa aldeia [na visão deles] a polícia, porque já não temos direitos, já não temos voz. Então, tem toda essa situação que nos impede de muitas das vezes abrir e se expressar de não concordar com esses comportamentos hoje”, explica Núbia, que ressalta que a Lei Maria da Penha é para todos.

“Ela não é só para o branco, só para o indígena ou só para o negro. A Lei é para todos, seja no perímetro urbano, seja ela dentro das nossas comunidades, dentro das nossas aldeias”, finaliza.

A invisibilidade dos crimes

A violência sexual indica uma realidade de vulnerabilidade das mulheres indígenas, tanto em seus territórios quanto em contextos urbanos. Uma das maiores dificuldades é encontrar registros oficiais devido ao silenciamento de muitas mulheres. No dia 18 de maio de 2023, por ocasião do Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, a Funai divulgou uma nota falando da “importância de se lutar contra a invisibilidade das violências cometidas contra crianças e jovens indígenas”. Segundo o órgão, “o tema tem sido um desafio para a fundação, já que há pouca mobilização realizada nos últimos anos por agentes governamentais e pela sociedade em geral”.

Na série “Um Vírus e Duas Guerras”, a Amazônia Real mostrou a vulnerabilidade da situação das mulheres nas aldeias indígenas, como aconteceu com uma mulher do povo Karajá.

Em 2020, um dos casos de violência de maior repercussão foi a violência sexual sofrida por Ana Beatriz dentro de seu próprio território, na TI Andirá Marau, do povo Sateré-Mawé, de apenas cinco anos de idade, que resultou em sua morte. Na ocasião, o episódio teve pouca visibilidade dentro do movimento indígena e apenas por iniciativa de lideranças em ações individuais e grupos específicos é que resultou em pressão para a sociedade civil a discutir o assunto. 

Em 2023, durante a Marcha das Mulheres Indígenas, em Brasília, as lideranças fizeram uma série de denúncias dentro de seus territórios. Um dos episódios mais violentos denunciados foi o assassinato de Maria Clara Batista, 15 anos, da etnia Karipuna. Ela foi vítima de violência sexual na cidade de Oiapoque, no Amapá. 

O que dizem as autoridades

Polícia Federal durante Operação Yaucacy em Autazes (Foto: Polícia Federal/AM).

A Amazônia Real procurou o Ministério Público Federal (MPF) para tentar obter mais detalhes sobre as denúncias, mas o órgão disse que o caso corre em segredo de justiça. 

A reportagem questionou ainda a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) para saber se os órgãos estão acompanhando o caso; se pretendem dar alguma atenção às vítimas, no que diz respeito à saúde mental e psicológica; e se tomará alguma medida de proteção, caso o suspeito seja solto. Até a publicação desta reportagem, nem a Funai e nem o MPI deram retorno. 


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