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ToggleDisputas por espaço mostram como o Estado se tornou estratégico para o narcotráfico e expõem ainda mais o avanço do crime para as zonas rurais e territórios tradicionais paraenses. Na imagem acima, carregamento de cocaína do tráfico internacional apreendida na operação Guardião do Norte, em Moju, Pará na região do Baixo Tocantins (Foto: Marcelo Lélis/Agência Pará/15/04/2024).
Belém (PA) – Daniel* afirma se sentir como uma testemunha da história recente do crime organizado no Guamá, bairro da periferia de Belém, e em Igarapé-Miri, onde nasceu. Foi entre esses dois municípios que ele viveu nos últimos cinco anos, cursando um bacharelado na Universidade Federal do Pará e retornando de tempos em tempos até a casa dos pais em uma comunidade ribeirinha de pescadores. Esses deslocamentos lhe permitiram ver a chegada e a consolidação da facção Comando Vermelho (CV) no município de nascença, assim como a expansão do tráfico nas proximidades de onde passou a residir na capital paraense, um trecho que faz divisa com a Terra Firme, bairro marcado pela violência e criminalidade.
“Em Igarapé-Miri, todo mundo tem medo de retaliação, de falar e ser punido”, relatou à Amazônia Real. “A retaliação existe e não tem como não existir. Tanto na zona urbana como na zona rural, o Comando Vermelho tem suas pessoas. É gente de lá mesmo, que acaba entrando no grupo. E é tudo muito bem organizado. Conheço gente que cresceu ali perto de onde eu vim que hoje faz parte.” Segundo Daniel, quem desrespeita os códigos da facção é “retalhado”. “A gente já viu isso acontecer e é pesado.”
A expansão do crime organizado na Amazônia revela a interiorização das facções e uso estratégico das cidades para o tráfico. E o Pará tem se destacado como rota essencial do narcotráfico internacional, segundo levantamentos de 2022 e 2023 feitos pelo Instituto Mãe Crioula (IMC), em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). De acordo com esses estudos, das 178 localidades amazônicas com a atuação de facções criminosas na Amazônia, 52 delas estão no Estado paraense.
“Esses números evidenciam uma realidade cada vez mais preocupante: a região amazônica se consolida como um dos principais corredores para o tráfico de drogas nacional e internacional. O Amazonas é apontado como a principal porta de entrada das drogas, enquanto o Pará exerce papel fundamental como zona de trânsito rumo aos mercados consumidores do Brasil, da Europa e da África”, aponta o pesquisador Aiala Colares, ao comentar os dados ainda parciais do documento Dinâmicas do Crime Organizado na Amazônia Paraense, uma iniciativa de pesquisadores do Instituto Mãe Crioula.
O levantamento vai revelar uma complexa e crescente disputa entre facções criminosas na região amazônica do Pará, com destaque para a presença simultânea de grupos rivais em ao menos 12 municípios. Em sete deles – Marabá, Mãe do Rio, Parauapebas, Jacundá, Conceição do Araguaia, Rio Maria e Redenção – o CV e o Primeiro Comando da Capital (PCC) travam confrontos pelo controle de áreas estratégicas para o tráfico de drogas.
Além do CV e do PCC, duas facções atuam no Pará: Comando Classe A (CCA) e Família Terror do Amapá (FTA). O CV mantém predominância, especialmente nas regiões do Nordeste paraense, Marajó, Sudoeste, Baixo Amazonas e na Região Metropolitana de Belém – onde detém o controle hegemônico, incluindo a capital e o estratégico município de Barcarena, sede do principal porto paraense. Já o PCC atua de forma mais localizada, com presença confirmada em apenas cinco municípios, concentrando-se nas regiões Sul e Sudeste do Pará. Em Altamira, o levantamento mostra que a rivalidade se dá entre o CV e o CCA, facção aliada ao PCC na região. Já nos municípios de Chaves e Afuá, a disputa envolve o CV e a FTA, originária do Estado do Amapá.
Castanhal, município próximo à capital Belém, por sua vez, apresenta um cenário peculiar. Segundo a Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social do Pará (Segup), embora o CV domine o microtráfico nos bairros, o fornecimento de grandes carregamentos de drogas é controlado por líderes do PCC. A cidade funciona como um entroncamento logístico que conecta várias rodovias estaduais e federais, já que fica às margens da BR-316. Além dessas duas principais facções, a Polícia Civil identificou e prendeu, em Castanhal, integrantes de grupos oriundos da região Nordeste, como o Bonde do Maluco (BDM), da Bahia, e os Guardiões do Estado (GDE), do Ceará. A principal suspeita é que essas facções estejam negociando com o PCC para aquisição de drogas destinadas ao transporte para seus estados de origem.
Interiorização do crime

Pichação em muro de Barcarena (Foto Acervo Instituto Mãe Crioula) e policiais na operação Guardião do Norte, em Abaetetuba com preensão de 3,2 toneladas de drogas (Foto: Leandro Santana / Ascom PCPA/15/04/2024).
“As dinâmicas do crime organizado no Brasil vêm se modificando e avançando rumo ao interior do País, com destaque preocupante para a região amazônica. A relação entre o campo e a cidade na atuação das facções criminosas ainda é pouco explorada por pesquisas, mas dados recentes apontam para uma crescente interiorização dessa atividade ilícita, especialmente na Amazônia”, diz Aiala.
Francisco*, liderança quilombola entre os municípios de Moju e Abaetetuba, afirma que a situação é mais gritante na região do Acará, próxima a Belém. “Ali em Itacoã, Guajará, Boa Vista. Essa área aí, inclusive, tinha toque de recolher. Depois teve uma ação bem pesada da Polícia Civil e da PM (Polícia Militar). A facção inclusive fazia processo de cobrança de pedágio. Uma comunidade quilombola próxima à minha, em Abaetetuba, tinha um programa de internet de uma ONG que teve de ser tirada porque a facção tomou conta desse serviço em muitas comunidades”, relatou à Amazônia Real.
Nas cidades paraenses, as facções possuem bases operacionais, criando zonas de controle e domínio territorial. As áreas urbanas funcionam como centros logísticos para o escoamento da produção e distribuição de entorpecentes. Essas redes ilegais impactam as relações entre o campo e a cidade. Povos indígenas e comunidades quilombolas, ribeirinhas e camponesas são os mais vulneráveis à expansão do narcotráfico. O Pará, situado como área de trânsito e mercado, tornou-se um território de interesse estratégico para o crime organizado, que avança sobre regiões isoladas e de difícil fiscalização.
“A malha viária e hidroviária da Amazônia paraense não serve apenas ao desenvolvimento econômico. Essas rotas são também vetores de atividades criminosas, como contrabando de ouro e diamantes, biopirataria, exploração ilegal de madeira, tráfico de drogas e de pessoas. Esses fluxos ilícitos transcendem fronteiras, inserindo a Amazônia brasileira em uma economia global do crime”, explica Aiala Colares. A presença das facções com suas redes ilegais consolidadas evidencia um novo tipo de conflito: o da disputa territorial pelo controle de rotas estratégicas do tráfico internacional de drogas.
É o que testemunhou Glaucio*, morador da área central do município de Bragança, no nordeste litorâneo paraense. “Eu morava bem próximo a uma feira e presenciei essa mudança. Era uma briga por controle de espaço. A facção se impondo para ser a única fornecedora de droga na feira e a milícia ocupando o espaço em forma de ‘segurança’ para o local. Uma expulsou a outra, mas vários foram assassinados em decorrência disso”, lembra.
Glaucio afirma que em Bragança só se ouve falar do Comando Vermelho. “Nunca ouvi falar de outra. Ela dominou a periferia da cidade e áreas críticas como essa da feira. Quem fazia a milícia era um grupo de vigilantes que tinha apoio da polícia”, diz ele, que já não vive mais no município. “Decidi dar um tempo de lá, mas acho que as coisas devem estar bem piores.” E estão. No dia 20 de fevereiro, uma equipe da Divisão Estadual de Narcóticos (Denarc) efetuou a prisão em flagrante de três pessoas por posse e guarda de entorpecentes, em um galpão na periferia do município. A operação se deu após a notícia de queda de uma aeronave, com dois tripulantes de nacionalidade boliviana. O estranho acidente chamou a atenção e o resultado foi a apreensão de 60 pacotes de cocaína.
Domínio do CV e avanço do PCC

As cidades amazônicas, interligadas por rios, estradas e aerovias, se tornaram peças-chave na engrenagem do crime. Elas funcionam como “nós” ou “nexos” que sustentam as redes ilegais, servindo como bases operacionais para o escoamento de drogas, madeiras contrabandeadas, minérios e outros produtos ilícitos. Esse processo revela que o crime organizado opera por meio de redes geográficas complexas. E o narcotráfico se adapta constantemente, criando novas rotas que acompanham a dinâmica entre produção e consumo. Mas o problema vai além: o crime organizado não opera à margem do Estado — ele se infiltra nas estruturas oficiais por meio de lavagem de dinheiro, tráfico de influência e corrupção.
O CV é a facção mais presente no Pará, com atuação confirmada em 38 municípios, incluindo as populosas Belém, Ananindeua, Marabá e Castanhal. Já o PCC aparece com força em 11 localidades, muitas delas estratégicas para rotas de logística e fronteira, como Altamira, Conceição do Araguaia e Parauapebas. Em algumas cidades, como Afuá, Chaves e Marabá, há registro de conflitos entre facções, com a coexistência do CV, PCC e outros grupos. Castanhal tem quatro organizações atuantes: CV, PCC, Guardiões do Estado (GDE) e Bonde dos 40 (BDM).
Do total de municípios mapeados pelos pesquisadores, 26 são urbanos, 17 rurais e 6 têm perfil intermediário. A capital Belém e regiões metropolitanas, como Ananindeua e Marituba, concentram a presença majoritária do CV, enquanto o PCC avança em cidades com forte atividade econômica, como Redenção e Novo Progresso, municípios de notada presença de atividades madeireiras, muitas operando de forma ilegal. A proliferação de facções em áreas rurais e de fronteira preocupa especialistas, já que essas regiões são vulneráveis a crimes como tráfico de drogas, grilagem e extorsão. Além disso, a disputa entre facções em cidades como Altamira e Marabá pode aumentar os índices de violência.
Enquanto o CV domina o norte, o PCC expande sua influência no sul e sudeste paraenses. Pichações da facção aparecem em bairros de cidades como Marabá, inclusive ao longo da Transamazônica (BR-230), evidenciando a disputa por rotas terrestres.
Facções nos presídios

Essa dinâmica de atuação das facções também se dá por uma nova realidade que tem ganhado força na Amazônia paraense: a conexão entre os espaços prisionais e as áreas rurais. O que antes se operava na relação entre presídios e periferias urbanas, marcada pelo encarceramento em massa de jovens negros e pobres, agora se estende para o interior. A expansão do crime organizado tem alcançado territórios rurais, que se tornaram não apenas fonte de recrutamento de jovens, mas também áreas de interesse estratégico. Jovens do campo estão sendo cada vez mais cooptados, presos e, dentro do sistema penitenciário, incorporam os códigos e valores das organizações criminosas.
“As zonas rurais, muitas vezes desassistidas pelo poder público e com presença reduzida de forças de segurança, tornaram-se zonas de circulação, refúgio e exploração econômica. Esses elementos apontam para uma mudança significativa na geografia do crime na região Norte, especialmente no Pará. A Amazônia rural, antes vista como periferia silenciosa do desenvolvimento, passa agora a ocupar o centro de uma disputa cada vez mais violenta e organizada”, afirma uma liderança religiosa ligada à Comissão Pastoral da Terra (CPT).
É o que tem visto de perto uma professora militante campesina de São Geraldo do Araguaia, município paraense que faz divisa com o Tocantins e margeado pelo Rio Araguaia. “Antes se tinha aqui um ou outro caso de droga, era coisa pequena. Agora a gente tem visto a sigla do CV pichada nos muros da cidade, inclusive em colégios. E não é mais a coisa da maconha. É droga mais pesada, dá para notar e tem muito jovem nisso agora”, diz ela, complementando politicamente que a solução passa por “políticas públicas voltadas à juventude do campo, ao fortalecimento da economia local e à proteção territorial e ambiental”.
CV no Baixo Tocantins

“Moradores de ilhas no entorno da capital paraense relatam que, durante a noite e madrugada, lanchas trafegam carregadas de entorpecentes em direção à região metropolitana. A geografia complexa, com rios, furos e igarapés, dificulta o patrulhamento, já que o efetivo policial é insuficiente para cobrir a vasta extensão territorial”, relata Aiala Colares.
Ele afirma que nas proximidades de Belém e do Porto de Vila do Conde, em Barcarena, o Baixo Tocantins (que abrange municípios como Abaetetuba, Igarapé Miri, Limoeiro do Ajuru, Cametá, Mocajuba, Baião e Oeiras do Pará) se tornou um corredor para o tráfico de drogas. A região, marcada por um labirinto de rios e ilhas fluviais, é dominada pelo CV, que se expandiu aproveitando a interligação com rodovias e vicinais. Em 2024, operações policiais registraram as maiores apreensões da história do Pará: 3,2 toneladas de drogas e 16 fuzis AK-47 foram confiscados em Abaetetuba, enquanto em Cametá, sete fuzis de grosso calibre foram apreendidos.
O Arquipélago do Marajó, com sua rede de rios e proximidade com rotas internacionais, tornou-se um outro eixo do narcotráfico. Dados de 2023 do Relatório Cartografias da Violência na Amazônia, organizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública já indicavam que, dos 16 municípios da região, 10 têm presença de facções, com predominância do CV. Breves, principal cidade do Marajó, é um nó logístico do crime organizado. Todo o fluxo fluvial entre Manaus, Macapá e Belém passa por ali, tornando-a alvo de disputas.
Rios, estradas, portos clandestinos e pistas de pouso ilegais são utilizados como corredores de transporte de drogas que entram no Brasil pela fronteira Norte e se espalham pelo País. Breves, no Marajó, é um dos principais pontos de escoamento. Pesquisas de campo apontam que as drogas mais comuns na região são a cocaína e o skank, provenientes de centros como Manaus e Macapá. Parte dessa droga permanece na cidade, distribuída em pontos de venda conhecidos como “bocas de fumo”. O restante segue para comunidades ribeirinhas e vilas tradicionais, expandindo o consumo e o domínio territorial do tráfico.
O narcotráfico, principal motor da economia ilícita na Amazônia, também se articula com o garimpo ilegal em terras indígenas, a grilagem de terras públicas e o contrabando de madeira. Essas conexões servem para ampliar os lucros e viabilizar estratégias de lavagem de dinheiro, por meio de investimentos em atividades extrativistas ilegais e na abertura de novas frentes de garimpo. Esse cenário é descrito por especialistas como uma “neopistolagem” na Amazônia: a atuação de grupos armados – facções e milícias – que controlam territórios rurais e urbanos, impondo o medo e a violência. A atuação dessas redes criminosas também tem impactos diretos na vida cotidiana. O aumento dos conflitos armados, crimes ambientais e ameaças a líderes comunitários cria um ambiente constante de medo e tensão. Indígenas, ribeirinhos, quilombolas e moradores das zonas rurais se vêem cada vez mais expostos à violência provocada pela disputa pelo controle das rotas do tráfico e das áreas de exploração de recursos.
A região amazônica, longe de ser um “espaço vazio” ou um sistema fechado, como ainda a veem alguns formuladores de políticas públicas, é um território dinâmico e conectado. Sua vasta bacia hidrográfica, outrora vista como uma via de integração para o Mercosul, hoje serve como corredor para o crime organizado.
Segup responde

Procurada pela Amazônia Real, a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Pará (Segup) informou, por meio de uma nota oficial, que o enfrentamento ao crime organizado tem ocorrido por meio de ações integradas entre as forças de segurança e os órgãos de inteligência. De acordo com o órgão, somente no ano passado, foram mais de 70 operações e 1.400 prisões de integrantes de facções criminosas. Parte dessas operações foi deflagrada em outros estados, como Santa Catarina, Amapá, Rio de Janeiro, Goiás e Pernambuco, em articulação com forças de segurança nacionais.
A Segup afirma ainda que em 2024 foram apreendidas mais de 13 toneladas de entorpecentes em todo o território paraense, reforçando os avanços no combate ao narcotráfico. Esse resultado, segundo a secretaria, é fruto de investimentos estruturantes realizados pelo governo estadual, como a criação da Delegacia de Repressão às Facções Criminosas, a aquisição de lanchas rápidas — seis delas blindadas — e a ampliação dos equipamentos de inteligência, investigação, perícia e treinamento de cães farejadores. A Segup afirma que essas iniciativas têm contribuído para a redução contínua dos índices de criminalidade, conforme apontam dados do Ministério da Justiça e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Em resposta ao avanço de organizações criminosas nas áreas de difícil acesso e com densa malha hidrográfica, a Segup informou que o Estado instalou duas Bases Integradas Flutuantes de Segurança Pública — uma em Breves, na Ilha do Marajó e outra em Óbidos, no corredor do Rio Amazonas. Uma terceira base será entregue até o segundo semestre de 2025, na região do Baixo Tocantins, com atuação nos municípios de Abaetetuba e Barcarena, incluindo o Porto de Vila do Conde — ponto estratégico de escoamento e entrada de cargas no Estado. De acordo com o órgão, essas estruturas possibilitam maior controle nas rotas fluviais e já contribuíram para a apreensão de mais de três toneladas de drogas e armamentos de uso restrito, como fuzis.
A reportagem da Amazônia Real também enviou questionamentos por e-mail à Assessoria de Comunicação da Polícia Federal em duas oportunidades, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
* nome fictício, a pedido do entrevistado

As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
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