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ToggleXamã e líder dos Yanomami se despede do sumo pontífice que defendeu a Amazônia e seus povos e torce para que o sucessor seja “um padre honesto”; agência Amazônia Real foi citada em documento papal. Na foto acima, Papa Francisco recebeu no Vaticano o líder e porta-voz do povo Yanomami, Davi Kopenawa (Foto: Vatican Media/10/04/2024).
Manaus (AM) – ”Ele lutou pela natureza, e eu sou a natureza. Ele também é a natureza.” Foram com essas palavras que o xamã Davi Kopenawa se despediu do papa Francisco. Em entrevista à Amazônia Real, o líder Yanomami declarou estar de luto e reconheceu que admirava a luta empreendida pelo líder da Igreja Católica. “Vamos pegar a coragem dele para continuar a andar. Porque somos um povo único, branco, preto, indígena e todo o universo. Nós vamos continuar lutando. Essa luta não vai parar.”
A morte do papa Francisco, na segunda-feira (21), encerrou um papado marcante para a luta dos povos indígenas e pela preservação ambiental, um fato inédito na história da Igreja Católica. Nascido Jorge Mario Bergoglio, em Buenos Aires, foi o primeiro pontífice latino-americano. Em 12 anos de pontificado, promoveu uma guinada ética e política ao colocar no centro do mundo católico temas urgentes como a crise climática, os direitos dos povos originários e a preservação da Amazônia.
Francisco, que será enterrado neste sábado (25), foi o primeiro papa a visitar a Amazônia. Em 2018, na cidade de Puerto Maldonado, no Peru, ouviu diretamente os “guardiões da floresta”, como chamava os povos indígenas. Anos antes, em 2015, publicou a encíclica Laudato si, onde clamou aos fiéis católicos que se juntassem à luta contra a crise climática. O texto, que exerceu grande influência sobre movimentos climáticos em todo o mundo, defendia a Amazônia como “pulmão do planeta” e criticava o modelo de desenvolvimento baseado em “uma exploração selvagem dos recursos”.
Essas escutas não foram apenas gestos simbólicos. Elas culminaram na convocação do Sínodo dos Bispos para a Amazônia, uma assembleia promovida por Francisco em 2019, durante três semanas no Vaticano. Foi a primeira vez que quase 400 povos indígenas foram ouvidos em um processo de escuta e deliberação que envolveu mais de 87 mil pessoas da Pan-Amazônia, entre bispos, missionários, leigos e lideranças indígenas dos nove países da Amazônia. Um dos destaques foi a participação do padre indígena Justino Sarmento Rezende, do povo Tuyuka, do Amazonas, como um dos 30 peritos responsáveis pela construção do documento do Sínodo.

Esse documento final abordou cinco dimensões de conversão, que são: integral, pastoral, cultural, ecológica e sinodal. O texto destaca a necessidade de uma “verdadeira conversão integral”, inspirada no estilo de vida simples de São Francisco de Assis, comprometida com a harmonia com a “Casa comum”, obra criativa de Deus. O texto enfatiza a importância de ouvir a voz da Amazônia, uma região multiétnica e multicultural, representada pelos povos que a habitam.
O documento também denunciou os impactos da privatização de bens naturais na Amazônia, modelos de produções predatórias, desmatamento, a poluição das indústrias extrativistas, mudanças climáticas, narcotráfico, alcoolismo, tráfico de seres humanos, a criminalização de líderes e defensores do território e grupos armados ilegais. O texto chama a atenção para a necessidade de um cuidado pastoral transfronteiriço capaz de incluir o direito à livre circulação e de enfrentar o deslocamento forçado de famílias indígenas nos centros urbanos.
O papa e a Amazônia Real

Em 2020, o papa Francisco citou a Amazônia Real na exortação Querida Amazônia, documento em que ele sintetiza as reflexões realizadas um ano antes no Sínodo da Amazônia. Longe de ser uma mera referência acadêmica, o gesto de Francisco de citar a agência independente representou um reconhecimento da importância de dar voz àqueles que vivenciam os conflitos da floresta, cujas denúncias ecoaram até o coração do Vaticano. Na exortação, o papa teceu críticas ao discurso nacionalista que acusa “países estrangeiros” de ameaçar a soberania amazônica, enquanto as elites locais promovem a devastação da floresta com impunidade.
No texto Querida Amazônia, o papa Francisco escreve: “Contribuíram alguns slogans, nomeadamente o de ‘não entregar’, como se a citada sujeição [da Amazônia] fosse provocada apenas por países estrangeiros, quando os próprios poderes locais, com a desculpa do progresso, fizeram parte de alianças com o objetivo de devastar, de maneira impune e indiscriminada, a floresta com as formas de vida que abriga”.
E é nesse contexto que surge a nota de rodapé 7, onde está a citação direta a uma coluna da Amazônia Real. Naquele texto, o editor de Imagens, Alberto César Araújo, lembra que cresceu ouvindo histórias sobre a rodovia Transamazônica e das propagandas comerciais que tinham como lema “integrar para não entregar”. Com essa estratégia, os governos militares tentaram convencer a opinião pública de que era preciso que a Amazônia fosse “desenvolvida” da forma que fosse possível. “E o imaginário de que a Amazônia, e sua imensidão tinham que ser ‘domados’, foi se instalando nos corações e mentes de toda uma geração”, escreveu o editor.
A escolha de Francisco não foi aleatória. Ao citar a Amazônia Real, veículo brasileiro reconhecido por suas investigações jornalísticas sobre crimes ambientais e violações de direitos na floresta amazônica, o papa não queria construir um documento abstrato, distante da realidade. Ele pretendia ancorar a sua reflexão da Igreja em vozes que denunciam a destruição em curso, nos relatos daqueles que enfrentam a violência e a ganância na linha de frente da defesa da floresta.
A passagem citada sintetiza ainda um dos traços marcantes do pontificado de Francisco: o destemor em nomear os responsáveis pela destruição, de apontar o dedo para os que lucram com a devastação, mesmo quando isso significa confrontar governos poderosos e interesses econômicos.
A exortação Querida Amazônia propunha “quatro sonhos” para a Amazônia: o social (pelo fim da violência contra os povos tradicionais, a garantia de seus direitos e a promoção da justiça), o cultural (respeito e a valorização das identidades culturais amazônicas, com suas línguas, tradições e saberes ancestrais), o ecológico (pelo fim do extrativismo predatório, a defesa da floresta e a busca por um modelo de desenvolvimento sustentável) e o eclesial (a construção de uma Igreja com “rosto amazônico”).
Se a Laudato Si’, tido como o documento mais alto do magistério papal, era um alerta universal, um chamado à conversão ecológica de toda a Humanidade, a exortação Querida Amazônia dava nome e rosto aos conflitos, denunciava os responsáveis pela destruição e apontava caminhos concretos de ação. E, ao citar a Amazônia Real, Francisco mostrava que a Igreja não apenas se preocupava com a floresta, mas também estava atenta às denúncias que surgiam dos seus povos, das vozes que continuam clamando por justiça e respeito.
Vozes ouvidas
Essas ações em defesa da Amazônia que ocorreram durante o pontificado de Francisco abriram espaço para a articulação de pressões políticas. Em abril de 2024, o papa ouviu o pedido do xamã Davi Kopenawa para que intercedesse junto a Lula (PT) pela retirada dos garimpeiros ilegais da Terra Indígena Yanomami.
No mês seguinte, em maio, durante a Cúpula do Clima das Pontifícias Academias de Ciências e de Ciências Sociais, no Vaticano, o cacique Raoni Matuktire, liderança do povo Mebêngôkre, encontrou-se com o papa Francisco e entregou-lhe uma carta solicitando apoio na conscientização de líderes políticos sobre a importância da preservação das florestas e dos direitos dos povos originários. Na ocasião, alertou sobre as catástrofes climáticas que assolam o Brasil e destacou a responsabilidade dos povos indígenas na preservação dos ecossistemas do mundo.

A morte de Francisco levanta dúvidas sobre o futuro da Igreja em relação à Amazônia, sobretudo se surgir um novo papado conservador. “Ele é o único homem padre que Deus colocou para defender e cuidar de nós, não sei como é que nós vamos escolher outro papa. Eu não quero um papa “Bolsonaro”. Eu sou contra. Eu sou contra, eu não vou apoiar, porque ele vai destruir, vai acabar com nós. Vai abrir caminho para a mineração, garimpo legal, desmatamento da floresta e tirar a riqueza da terra”, disse Kopenawa, fazendo um apelo para que o conclave, encontro de bispos que ocorrerá nos próximos dias para escolher o sucessor de Bergoglio, por um sucessor comprometido com o planeta. “Temos que pensar bem. Vamos escolher um padre honesto, com bom pensamento para o futuro que vamos querer.”
A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) publicou uma nota de pesar logo após o falecimento do papa, reconhecendo seu papel singular na defesa dos direitos dos povos indígenas e da Amazônia. Em sua nota oficial, a Coiab destacou que Francisco foi um dos poucos líderes religiosos globais a abrir espaço para escutar as lideranças indígenas, promovendo um diálogo entre os saberes ancestrais e a ciência no enfrentamento das mudanças climáticas.
A Coiab ressaltou o reconhecimento do papa Francisco sobre a importância dos povos originários, valorizando seus conhecimentos tradicionais como essenciais no enfrentamento da crise climática. Ao denunciar abertamente as ameaças e violências enfrentadas pelos povos indígenas, a organização considera que Francisco lançou um novo olhar para a Amazônia, voltado para seus guardiões, e renovou a luta por um mundo mais justo para todos os povos. (Colaborou Eduardo Nunomura)

Papa Francisco com representantes da Amazônia durante o Sínodo da Amazônia (Foto: Guilherme Cavalli/Cimi).
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