CPC-UMES, um mergulho na Rússia interdita
Por Portal Vermelho
Quem recentemente viu o filme soviético Tratoristas (Ivan Pyriev, 1939),pode ter associado à guerra na Ucrânia o trecho de uma canção entoada em duas cenas, por operários de uma aldeia: “Da terra estrangeira nada queremos/ mas da nossa nem um palmo daremos. / Enfrentaremos todos os que querem/ o nosso território tomar /se o inimigo forte vier nos atacar”. Pouco visto e falado entre nós, o vário e sofisticado cinema da Rússia é uma surpresa e tanto, sobretudo com o país de volta ao centro da atenção e da passional polêmica mundial.
Sendo ou não produtos de propaganda ideológica, filmes sempre proporcionam uma leitura dos tempos, como uma fonte onde se bebe e se viaja com as próprias asas. Então, é aproveitar como lazer e como aprendizado um dos muitos clássicos do cinema soviético e russo, que de sexta-feira a domingo é servido gratuitamente em casa pelo CPC-Umes em seu canal do Youtube.
O grande barato: poder saborear esse doce proibido, da Catedral da Praça Vermelha a todo o território da Federação, nas histórias encenadas que deixam entrever daquela mesclada, rica e interdita cultura um pouco mais do que já nos legaram os luminares de sua literatura, poesia, arte visual, dança, música e também de sua revolucionária política do século passado, em contínuo processo de transformação histórica.
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E há mais dicas valiosas, como a presença de João Lanari Bo, escritor, cineasta, professor de cinema na UnB e diplomata, em três podcasts após os longas apresentados. Autor do livro Cinema para os russos, cinema para os soviéticos, mestre no assunto, Lanari analisa diversos filmes, conta várias histórias e vai familiarizando o público a nomes de cineastas nunca dantes conhecidos.
O cinema de ingresso ao mundo ainda proibido
Nos podcasts está também Igor Oliveira, um dos cinco curadores, porta-voz do CPC-Umes e responsável pela área comercial do catálogo de filmes, além da jornalista especializada na área Maria do Rosário Caetano, como mediadora. Mais: ao final das exibições, há a oferta do programa de rádio A Música do Cinema, na suave, atemporal narração do curador Bento da Silveira, apresentando melodias de trilhas de filmes feitas por estes três grandes compositores russos, Eugen Doga, Serguei Prokofiev e Isaac Dunayevski.
O CPC-UMES (Centro Popular de Cultura da União Municipal dos Estudantes Secundaristas de São Paulo) existe desde 1984, no Bexiga, onde mantém variada programação cultural. O relacionamento com a maior produtora russa de cinema, o Mosfilme, começou em 2012 e culminou nas mostras e na comercialização dos filmes em dvd, blu-ray, streaming e cinema.
De 2014 até hoje foram exibidos mais de 80 filmes anualmente, destes, 54 títulos foram lançados para venda. “O processo é assim: num ano, escolhemos os filmes para a mostra e no ano seguinte, lançamos alguns em mídia física”, explica Igor, ex-diretor do setor de filmes e de música da Livraria Cultura. Já o projeto Cinema Soviético e Russo em Casa surgiu em decorrência da pandemia que, mesmo mais controlada, o Umes decidiu mantê-lo como programação gratuita.
A 7ª mostra, iniciada no ano passado, foi feita integralmente no nosso canal do Youtube”. A seleção se dá com base nos gêneros, nas décadas e nos diretores, a fim de mostrar o quanto é diverso o cinema da URSS e da Rússia, conta o curador. E a prioridade é para os filmes magnificamente restaurados pelo Mosfilm. Todos os de Tarkovski foram restaurados recentemente e já exibidos. “Mas eventualmente, reprisamos”, avisa Igor Oliveira.
O retorno de Vassily Bortinov (1953) –filme deste fim de semana no Youtube/CPC-Umes, tem direção de Vsevolod Pudovkin; 102’. Fica disponível ao público de 19h desta sexta-feira a 19h de domingo
Cinema para russos, para soviéticos e para brasileiros
O livro de João Lanari Bo, Cinema para russos, cinema para soviéticos, é um auxílio luxuosíssimo nesses aguardados “weekends” pelos clássicos oferecidos pela Umes – e vice-versa. Sorvido em doses homeopáticas, vai apurando o olhar e a percepção do leitor-espectador sobre o cinema e sobre a História eletrizante desse país e seu povo, como o autor ressalta na abertura da apresentação.
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“Ninguém duvida de que o evento singular mais marcante do século XX tenha sido a revolução bolchevique de 1917. Uma aceleração histórica sem precedentes, diretamente involuncrada com a I Guerra Mundial, inevitavelmente amarrada à II Guerra, que desembocou na Guerra Fria. E sempre sujeita a sobressaltos e injúrias, euforias e esperanças, luto e melancolia”.
Ao longo do livro, os relatos e comentários, as análises e observações de João Lanari ressaltam a trama entre cinema, política, propaganda e ideologia nas produções pesquisadas por ele, dos anos 1920 ao emblemático ano de 1968. Lanari se debruça de Eisenstein a Dziga Vertov, de Tarkósvski a Pudoróv e de permeio revela diretores “que foram eclipsados pela mitologia do cinema revolucionário soviético, como se nada de relevante houvesse antes, durante e depois”, alfineta.
Motivações – Nos tempos soviéticos, havia 150 mil salas de cinema espalhadas pelas repúblicas e 138 mil clubes de exibições, de filmes de dramas, aventuras, guerras e também de musicais e comédias. Mas também na Guerra Fria, nos tempos de Khruschov, de Gorbatchov e mesmo no de Brejnev havia muito cinema na Rússia, conta o autor. Uma de suas motivações para escrever o livro foi justamente “a escassez de informações sobre o cinema soviético não canônico, fora do escopo da meia dúzia mais conhecida e admirada”, mas foi também por gostar da cultura e do cinema russos, “como muita gente gosta, por afinidade de décadas”.
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Resultado de anos de pesquisas, com texto elegantemente trabalhado, Cinema para russos, cinema para soviéticos ganhou primorosa edição da editora Bazar do Tempo, ilustrada com 60 imagens cedidas pelo Mosfilm e propiciadas pela feliz sincronicidade do início de ambos os projetos, o das pesquisas e escrita do livro com o das mostras de filmes curadas pelo CPC-Umes. De quebra para cinéfilos e amantes de pôsteres, a sobrecapa do livro traz o cartaz original de Um Homem com uma Câmera (de Dziga Vertov, 1929), cuja arte gráfica é um dos marcos da vanguarda bolchevique.
E a geopolítica? – Os quatro capítulos que constituem o livro – “Da era tsarista à virada socialista”; “Stálin no poder: o regime de controle”; “Cinema em vias de guerra”; e “Rumo ao moderno cinema soviético” – são por si um convite a se deduzir a percepção do autor sobre o momento atual do país. Mas, por zap, ele adianta uma síntese de sua visão.
“A atual guerra na Ucrânia é um desastre, desestabilizou a relação com o Ocidente e gerou uma imprevisibilidade que pode custar caro aos russos. É império contra império, com a Rússia com arsenal nuclear mas economicamente pífia”. João Lanari conta que estava preparando um segundo volume sobre o cinema russo. Diz que leu uma batelada de livros e que checou outra batelada de filmes. “Mas agora suspendi, até ver o que vai rolar”.
Tal como o cinema americano, que é uma ferramenta eficaz a serviço da cultura e da dominação do império dos EUA, o escritor e professor afirma que o da Rússia funciona como excelente plataforma para conhecimento de sua cultura. É esse, na verdade, o principal motivo da grande curiosidade que a mostra do CPC-Umes desperta no espectador conectado com os acontecimentos atuais.