A máxima “conhecer para preservar” ganha, literalmente, outra dimensão quando estamos falando do Oceano. Cobrindo aproximadamente 71% da superfície da Terra, cerca de 80% desse imenso corpo de água permanece inexplorado e desconhecido. Mesmo nas zonas costeiras, onde os esforços de coleta de dados se concentram, ainda há muito a ser desvendado. No Brasil, a zona costeira se estende por mais de 7.400 quilômetros e é um caldeirão de vida marinha e atividades econômicas que enfrenta ameaças constantes de urbanização, poluição, sobrepesca e mudanças climáticas. Para proteger essa área vital para a saúde e economia do país, precisamos de dados precisos e contínuos, o que demanda um grande investimento de tempo, recursos humanos e financeiros, que não estão igualmente distribuídos pelo país. Mas como podemos obter essas informações de maneira eficaz?
A resposta pode estar em uma prática cada vez mais popular: a ciência cidadã. Todos os anos, dezenas de milhares de voluntárias e voluntários vão para florestas, ambientes costeiros, quintais, e até mesmo para frente do computador para prover dados de alta qualidade, analisar e contribuir para estudos científicos. Mas o que é de fato essa prática na qual o público geral se torna parte da equipe de pesquisa?
A ciência cidadã é uma prática que envolve iniciativas que estimulam a construção de conhecimento a partir da colaboração entre a academia e a sociedade civil. Nela, há um engajamento de fato do público em um projeto científico, produzindo resultados confiáveis, úteis e que passam pelo mesmo sistema de revisão aplicado à ciência convencional.
Nos tempos atuais, essas abordagens são essenciais para a aproximação da ciência com a sociedade. A ciência cidadã busca uma ativa participação da pessoa em um processo científico. Isso tem um potencial gigantesco para transformação da própria ciência, tornando-a mais inclusiva e abrangente. A coleta de dados é a forma de participação mais comum, mas não é a única. As pessoas de fora da academia podem participar de todo o processo de pesquisa, desde a concepção até a divulgação dos resultados. Pode, inclusive, idealizar um projeto. Um exemplo de ciência cidadã idealizado diretamente por participantes não acadêmicos é o projeto Making Sense, em que as pessoas planejaram e coletaram dados para lidar com a poluição sonora e do ar na Holanda.
Mais do que produzir informação em maiores escalas e com menores custos, a ciência cidadã tem um potencial gigantesco para o engajamento em questões socioambientais [3]. A ciência cidadã pode ajudar a enfrentar os principais desafios de conservação. Por um lado, ela permite avanços científicos que de outra forma não seriam viáveis devido à escala ou por outras razões práticas. Por outro, ela ajuda a expandir o público que participa ativamente da ciência, formando uma rede de pessoas comprometidas com a sustentabilidade. A atuação em projetos desse tipo representa uma oportunidade de aprendizado prático e educação científica, às vezes até como lazer, cujo resultado pode retornar para a sociedade na forma de melhoria das condições sociais, ambientais e na formulação de novas políticas públicas.
Contudo, a ciência cidadã também enfrenta desafios, uma vez que é uma prática que visa quebrar paradigmas e redefinir como a ciência é conduzida e percebida. Primeiramente, engajar uma diversidade de participantes, incluindo diferentes idades, gêneros, etnias, origens culturais e socioeconômicas, é desafiador e representa uma ameaça à sustentabilidade dos projetos a longo prazo.
Há também uma desconfiança em relação à qualidade dos dados produzidos por pessoas sem formação científica, o que demanda suporte técnico e treinamento adequado e contínuo ao longo dos projetos. Os projetos de ciência cidadã devem adotar procedimentos rigorosos para assegurar a validade dos resultados e a preocupação com a qualidade dos resultados é fundamental para a relevância da ciência cidadã. Ao fim do dia, a ciência cidadã é uma abordagem científica, com limitações e vieses, e por isso métodos e estratégias para contornar essas dificuldades são fundamentais para maximizar seu potencial transformador.
Ciência Cidadã para o Oceano
Um exemplo emblemático de ciência cidadã voltada para o oceano é o Marine Debris Tracker. Idealizado pela National Geographic Society e pela Universidade da Geórgia, este projeto surgiu para enfrentar o problema do lixo marinho, ajudando a contabilizar a quantidade de lixo encontrado nas costas e mares ao redor do mundo. Em 2010, a NOAA e a Universidade da Geórgia desenvolveram um aplicativo que permite a qualquer pessoa registrar o lixo encontrado no ambiente marinho. O cientista cidadão pode usar um celular para registrar o tipo de material encontrado e o local exato. Desde então, os dados coletados têm sido fundamentais para a NOAA entender a gravidade e a distribuição desse problema, além de fornecer informações valiosas para pesquisadores ao redor do mundo. Hoje, o aplicativo continua a ser amplamente utilizado, formando um banco de dados global que ajuda na luta contra a poluição marinha.
No Brasil, o projeto #DeOlhoNosCorais é outro exemplo fascinante. Idealizado pelo Laboratório de Ecologia Marinha da UFRN, o projeto visa monitorar a saúde dos corais ao longo da costa brasileira. Envolvendo mergulhadores que tiram fotos dos corais e as compartilham com o projeto, essa iniciativa permite um acompanhamento detalhado e constante do estado dos corais. Além disso, o #DeOlhoNosCorais se destaca pela sua divulgação científica, compartilhando as fotos recebidas e informações importantes sobre os corais com o público. O projeto coleta dados sobre a saúde dos corais no Brasil por 6 anos, incluindo ao longo de eventos de branqueamento, mostrando como a ciência cidadã pode fazer a diferença na proteção do nosso oceano.
Em escala menor, o projeto Cadê o Berbigão também foi uma iniciativa que ajudou a fornecer informações para proteção do Berbigão (Tivela mactroides), uma espécie vulnerável do Livro Vermelho da Fauna de São Paulo. Criado por Thaís Rech, no Laboratório de Ecologia e Manejo Costeiro do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo, o projeto identificou em quais praias o Berbigão Tivela mactroides pode ser encontrado. Ao longo de 2018, as pessoas que visitavam as praias do Litoral Norte do estado eram convidadas a tirar fotos do berbigão e enviar para a página do projeto no Facebook. Os resultados foram divulgados em 2019, e a partir das informações fornecidas por quem se engajou com a ciência cidadã, foi possível conhecer melhor os desafios enfrentados pela espécie. O projeto também mostrou uma maneira de coletar informações sobre espécies ameaçadas, melhorando sua gestão.
Um exemplo envolvendo crianças em idade escolar, o Projeto Monitoramento Mirim Costeiro (MMC), do instituto MMC, vem colocando crianças como protagonistas da pesquisa realizada nas praias de seus municípios. Iniciado em Santa Catarina, em 2012, o projeto foi para Ubatuba (SP) em 2019 e tem atuado junto às escolas para promover processos de educação científica e formar as crianças para atuarem como Guardiãs Mirins do Oceano. Em 2023, com o apoio do Programa Petrobras Socioambiental, o projeto expandiu-se para levar a cultura oceânica para comunidades indígenas, quilombolas e caiçaras com a criação de um Mini Museu do Mar, uma van equipada com ferramentas de pesquisa como lupas e microscópios. Além disso, o projeto participa de eventos como fóruns, campeonatos de surf e limpezas de praia.
Esses projetos mostram a variedade de aplicações da ciência cidadã. Os campos de estudo são muitos, da mesma forma que as atividades. A ciência cidadã não é apenas uma ferramenta para os cientistas, mas uma oportunidade para cada pessoa contribuir ativamente para a saúde do nosso planeta. Uma coisa bem legal é que a ciência cidadã está cada vez mais difundida, e você pode procurar projetos para participar no planeta inteiro. São tantas opções que um dos melhores caminhos é começar procurando em plataformas dedicadas a essa prática como a CIVIS, que traz projetos do Brasil, ou plataformas internacionais como a Anecdata, Scistarter (em inglês) e Zooniverse. Já se o seu interesse na ciência cidadã for mais em criar um projeto ou se juntar a uma organização, a Rede Brasileira de Ciência Cidadã, um espaço de diálogo entre pesquisadores e praticantes de atividades de ciência cidadã, é um ótimo lugar para começar. Então, agora é só escolher o seu projeto favorito e começar a contribuir!
Para saber mais
[1] DE PIERRO, B. Parceria com o público. Disponível em:
[2] MARTINS, D. G. D. M.; CABRAL, E. H. D. S. Panorama dos principais estudos sobre ciência cidadã. ForScience, v. 9, n. 2, p. e01030, 29 out. 2021.
[3] MCKINLEY, D. C. et al. Citizen science can improve conservation science, natural resource management, and environmental protection. Biological Conservation, v. 208, p. 15–28, abr. 2017.
As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.
As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site O Eco e são de total responsabilidade do autor.
Ver post do Autor