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Cercados pela Ferrogrão - Amazônia Real

Cercados pela Ferrogrão – Amazônia Real

Sem consulta, não tem obra. É com essa determinação que indígenas, quilombolas, ribeirinhos e organizações socioambientais estão unidos e mobilizados contra a construção da ferrovia do agronegócio. Defendido pelo governo federal e empresas privadas, o projeto da Ferrogrão tem ignorado a obrigatoriedade de consultas às populações afetadas. Ilhados numa porção de Amazônia ainda preservada, ao norte do Mato Grosso e sul do Pará, os Kayapó temem que os trilhos carreguem sangue indígena. “Não consigo ter bons pensamentos, porque essa ferrovia corta a floresta”, diz o ancião Wakonkra Kayapó. Eles prometem resistir.

Terra Indígena Baú (PA) – Foi como atravessar uma estrada para o inferno. O calor, a fumaça e as chamas por todos os lados fazem desaparecer as inúmeras fazendas de gado que compõem o cenário até a entrada da Terra Indígena (TI) Baú. Localizada entre Altamira e Novo Progresso, no Pará, dois dos municípios mais impactados pelo agronegócio, garimpo e desmatamento, a aldeia dos Kayapó só pode ser notada por uma placa do governo federal que anuncia o início de um território protegido, mas que ninguém arrisca dizer até quando.

Adentrar a aldeia dos Kayapó é como a passagem para um portal encantado. No local, o silêncio da floresta só é quebrado pela sinfonia do vento agitando as folhas das árvores ou pelo canto das araras-vermelhas-grandes, que encontram na Terra Indígena Baú uma espécie de porto seguro. Um oásis em meio à aridez do agronegócio e dos desmatadores que continuam consumindo a floresta sem dó. Mas estes não são a única frente ameaçadora.

Há dez anos, três multinacionais do agronegócio, ADM, Bunge e Amaggi, convenceram o governo federal de que era preciso uma estrada de ferro cortando a Amazônia para escoar soja e milho. Nascia assim um projeto de quase 50 bilhões de reais que quer consolidar o novo corredor ferroviário de exportação do pelo chamado Arco Norte. O Ferrogrão conectará a região produtora do Centro-Oeste ao Pará, desembocando no Porto de Miritituba, nem que para isso seja preciso passar por cima dos povos indígenas.

Nesse pedaço de chão, um dos povos originários mais emblemáticos do País resiste a todo tipo de pressão para manter a cultura e as tradições. A maior parte da população de Kayapó da TI Baú não fala português de forma fluente. Para conseguir realizar parte das entrevistas, a Amazônia Real precisou de ajuda de tradutores indígenas do Instituto Kabu. 

Mas a expressão que mistura revolta e resistência no rosto da líder Ngreitum Kayapó quase poderia dispensar uma tradução: “Os jovens estão crescendo e eu vou proteger a floresta para eles”, garante a cacica, que assumiu o posto de liderança da aldeia há pouco mais de um mês – o cacique Bepdjo Kayapó, seu sobrinho, enfrenta problemas de saúde. “Tenho medo que os bandidos venham para nossa região através do Ferrogrão para fazer mal aos meus netos e filhos. E isso eu não quero que aconteça. Não vamos permitir.”

O ancião Wakonkra Kayapó gosta de trabalhar em silêncio. Alto e esguio, ele exibe um vigor físico de fazer inveja a muitos idosos não-indígenas. Debaixo da sombra de algumas árvores, ele exibe também uma grande habilidade trançando a palha de buriti, matéria-prima para a confecção de um cesto, arte Kayapó que carrega precisão e sabedoria ancestral. Sobrinho de Raoni Metuktire, uma das mais proeminentes lideranças históricas do movimento indígena, Wakonkra mostra-se reticente ao projeto da construção da EF-170, sigla batizada de “Ferrogrão”. “Eu, particularmente, estou muito preocupado. Não consigo ter bons pensamentos, porque essa ferrovia corta a floresta”, resume.

Wakonkra sabe que uma estrada de ferro não apenas cruza extensos territórios, transportando cargas de uma ponta a outra. Junto dos vagões passará a circular muita bebida, atraindo sobretudo os jovens, e forasteiros querendo se relacionar com as mulheres da aldeia. O empreendimento vai mudar o jeito de ser de seu povo, prevê o ancião. “Quando começarem a ver dinheiro, todo mundo vai querer ir embora para a cidade. [A Ferrogrão] pode causar problemas e conflitos internos na comunidade entre as lideranças. Tudo isso por causa de dinheiro. É disso que eu tenho medo. Não quero que façam isso. Não podem.”

Vigilância territorial

Bemoroi Kayapó, guardião da TI Baú (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real).

Há décadas, a TI Baú se tornou alvo de invasores. Para combatê-los, os Kayapó contam com várias bases de vigilância ao longo do território, uma gigantesca área de 11 milhões de hectares. Na primeira década dos anos 2000, quando tinha apenas 11 anos, Bemoroi Kayapó se tornou guerreiro da aldeia Baú. No começo, ajudava os caciques e demais guerreiros da comunidade a retirarem garimpeiros e madeireiros que invadiam suas terras.

A ameaça costuma chegar por todas as partes, inclusive pelo rio Curuá. “É um perigo que a gente encontre pescadores, alguns ficam armados, mas mesmo assim a gente enfrenta para proteger a área”, conta Bemoroi. Sempre que os invasores são descobertos, eles têm seus pertences recolhidos, são documentados e enviados para o Ibama. Os garimpeiros são os principais invasores, segundo as operações policiais dos últimos anos.

“Agora que nós já temos a base de fiscalização lá, a água já está mais limpa”, explica o guerreiro. Os Kayapó percebem quando o pessoal do garimpo ilegal está atuando mais intensamente, porque a grota fica suja. Os resíduos tóxicos, como o mercúrio, poluem o rio e descem até a aldeia, que fica a jusante da área de mineração.

O guerreiro Bemoroi, um dos poucos que se comunica de forma fluente em português, vê com temor a nova ameaça que pode chegar, a estrada de ferro. “Na questão da Ferrogrão, estamos preocupados com os fazendeiros que vão se aproximar mais das terras indígenas. Acho que vai vir muita coisa ruim para nós”, antevê.

Sem consulta

Carretas no Posto que dá acesso ao Porto de Miritituba (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

O projeto da Ferrogrão prevê uma estrada de ferro com 933 quilômetros de extensão, que vai ligar o município de Sinop, no Mato Grosso, a Miritituba, distrito de Itaituba, no Pará. O governo federal, um dos defensores da obra, afirma que ela poderá substituir 400 caminhões de carga. O ganho de competitividade no escoamento da produção pelo Arco Norte tem sido propagado oficialmente para atrair a iniciativa privada. Caso haja uma concessão, a exploração da ferrovia será feita por uma empresa por até 69 anos. 

Além da estrada de ferro em si, o complexo contará ainda com a construção de dois ramais: Santarenzinho, entre Itaituba (Pará) e Santarenzinho, distrito do município de Rurópolis (Pará), com cerca de 32 km de extensão; e Itapacurá, localizado integralmente no município de Itaituba, também no Pará, com extensão aproximada de 11 quilômetros.

A ex-presidente da República Dilma Rousseff (PT), que governou entre 2011 e 2016, foi a primeira a endossar o projeto das multinacionais do agronegócio. Após o impeachment de Dilma, a Ferrogrão prosseguiu seu curso natural, sendo apoiada pelos governos de Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL) e agora volta novamente à mesa de um governo petista, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Em 26 de maio de 2017, um marco na luta contra a Ferrogrão: o povo Kayapó das TIs Baú e Menkragnoti decidiu procurar o então Ministério de Transportes, Portos e Aviação Civil (MTPA) para fazer valer o que diz a lei. O Brasil é signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que determina que os governos têm a obrigação de proteger os direitos e a integridade dos povos indígenas, incluindo a necessidade de consultá-los para que possam decidir de forma livre, prévia e informada sobre projetos que afetem suas vidas.

No caso da EF-170, o governo federal atropelou a Convenção 169 e os direitos indígenas, a começar pela Nota Técnica nº 9/2017, onde o MTPA se negava a fazer a consulta. A justificativa: o traçado para a implantação da estrada de ferro estaria distante e não causaria impacto socioambiental direto na terra indígena. “Para construção da Ferrogrão, não fizeram a consulta. Vocês, do governo, não fizeram a consulta com a gente e a gente já tem o protocolo de consulta”, cobra uma das lideranças históricas da aldeia Baú, Panh ô Kayapó.

Para o líder Doto Takak Ire, não é mais possível passar por cima dos indígenas em projetos dessa magnitude. “Existe uma lei, mas o cara não quer nem saber. É isso que eu ia falar para ele [Lula], para que o governo cuidasse do que está escrito. Que o próprio governo criou essa lei. Perto ou dentro da terra indígena, tem que ter a consulta. Qualquer empreendimento que possa trazer impacto para essas populações indígenas, tem que ter consulta. Sem consulta, não tem obra”, adverte ele. 

No dia 9 de outubrod de 2024, o Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) deu uma maiúscula vitória aos que se opõem ao projeto da Ferrogrão: recomendou que o governo federal e os governos do Pará e do Mato Grosso suspendam todos os atos administrativos até que seja realizada a consulta aos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. Além de recomendar a homologação da TI Sawré Muybu, dos Munduruku, o tombamento do sítio arqueológico Santarenzinho, a CNDH demanda que sejam tomadas “medidas urgentes para fortalecer a governança territorial na região de influência da rodovia BR-163 e hidrovia entre Miritituba e Santarém”.

O caminho de fogo

Para compreender tudo o que está em jogo, a Amazônia Real foi ouvir os Kayapó, até agora ignorados pelo governo federal. Pelo mapa, percebe-se apenas que se trata de uma viagem longa. Mas trafegando pela mesma estrada BR-163 que o governo quer usar como álibi para impor a ferrovia, o que se nota é que os indígenas querem evitar as cenas de destruição que se vê pelo caminho.

A viagem rumo ao território Kayapó começou em Manaus até Santarém, no Pará, que fica 1.166,4 quilômetros da capital Belém. A reportagem prosseguiu por quase 12 horas de carro entre Santarém e Novo Progresso, pela BR-163, popularmente conhecida como Cuiabá-Santarém. No caminho até a TI Baú, há alguns trechos ainda sem asfalto.

Conforme a equipe ia se aproximando de Novo Progresso, a fumaça das queimadas se tornava descontrolada. É quase impossível respirar um ar tão poluído ou ver o céu azul. Os dias e o horizonte são cinzentos. O progresso contido no nome desse município paraense não condiz com tanto retrocesso ambiental. Mas a vida segue, com bares e restaurantes, muitos a céu aberto. Tudo funciona normalmente. 

De braços abertos, uma estátua-réplica do Cristo Redentor, semelhante à do Rio de Janeiro [só que com um tamanho menor, 10 metros de altura], observa a cidade paraense tomada pela fumaça. Na Avenida Jamanxim, junto à rotatória com a Avenida Brasil, uma das mais movimentadas da cidade, uma estátua de 2,5 metros de um garimpeiro, feita pelo artista Apolinário Oliveira, em 2017, homenageia os garimpeiros que “desbravaram” a cidade de que tem pouco mais de 33 mil habitantes. A cidade ficou historicamente conhecida pelo Dia do Fogo, em 2019.

Ainda na BR-163, a reportagem cruza os municípios de Itaituba e Jacareacanga, outras duas campeãs brasileiras nos rankings de desmatamento e queimadas. A viagem pelo asfalto termina em Alvorada da Amazônia. Da entrada no ramal até a TI Baú serão mais cinco quilômetros, e a partir desse ponto que tudo piora. 

Labaredas de fogo se aproximam dos limites territoriais de uma área até então protegida. Neste ano, o desmatamento ao redor da TIs Baú e Menkragnoti já é de 38.555,9 quilômetros quadrados. A área é 53 vezes maior que a de 2023, quando foram destruídos 720,7 quilômetros quadrados, segundo monitoramento feito pelo Instituto Kabu.

Com o entorno sendo destruído velozmente, não resta alternativa aos animais a não ser procurar refúgio nas Terras Indígenas. O problema é que as áreas de floresta vão ficando cada vez mais fragmentadas e passam a ser pressionadas por essa nova dinâmica.

O biólogo do Instituto Kabu, Luís Carlos Sampaio, verificou um aumento populacional de animais expulsos das áreas onde moravam por conta do fogo e do desmatamento. Isso intensificou a disputa por alimento entre os animais dentro da TI Baú. O equilíbrio ecológico está por um fio.

Um exemplo é o cumaru [Dipteryx odorata], que os Kayapó exploram e vendem para a empresa britânica de cosméticos Lush. Desde 2019, diminuiu muito a presença dessa semente. Por um instinto de sobrevivência, os animais não só estão apanhando a fruta que cai no chão, como estão devorando-a muito mais rápido. “Os Kayapó vão colher o cumaru, chegam lá e só encontram rastro de bicho. Antes não era assim”, explica o biólogo. Outras espécies também começaram a rarear. “Você vê a disputa pelo alimento. Já há um desequilíbrio.”

O canto das mulheres

A Amazônia Real chegou no território em um momento especial para a aldeia Baú. Dentro de poucos dias, ocorreria a disputa dos jogos indígenas com modalidades como pesca, arremesso de dardo, vôlei e futebol. Além dos treinos finais, os indígenas preparavam bandeiras das equipes com os famosos grafismos Kayapó. A pintura também é reproduzida na própria pele, feita com tinta orgânica de jenipapo e carvão.

Enquanto as artes eram reproduzidas nas bandeiras e na pele dos indígenas, as mulheres Kayapó cantavam. “É um ritual que fazemos porque nossas netas irão ganhar novos nomes. É uma festa”, explica a cacica Ngreitum. Parte do ritual acontece no meio da aldeia e o encerramento é feito depois de uma noite das avós com as netas e se estende até o amanhecer do dia seguinte.

Ngreitum também explica o significado dos grafismos feitos pelas mulheres Kayapó. “Temos vários tipos de pinturas corporais. Cada um faz do seu jeito. Fazemos [grafismos] de jabuti, também tem cabaça, nós também fazemos pinturas com nossos dedos, Amí Kakê Kati Kôt Adjuwa (…) também pintamos pintura de tamanduá, tem vários e com os seus significados”, afirma.

A luta para manter os costumes e tradições é constante dentro da aldeia Baú, chamada de “aldeia-mãe”. Não é uma tarefa fácil, quando os próprios jovens se sentem apreensivos pelo futuro. O jovem Takakrua Kayapó, que hoje é comunicador e fotógrafo do Instituto Kabu, cresceu na aldeia Baú e teme que não haja um futuro para a sua terra de origem. “Eu imagino que no futuro a terra indígena possa acabar com os desmatamentos que estão acontecendo. A gente tem poucos jovens que estão lutando para poder conseguir [manter] a floresta viva, os rios limpos, e no futuro, talvez, possa ter uma guerra, assim”, projeta o jovem comunicador.

Nas salas de aula da aldeia Baú, o professor de filosofia Valmir Cardoso, que tem 57 anos, 20 deles dedicado à educação indígena, prepara a próxima geração dos Kayapó. “Eu fico admirado, deslumbrado com toda essa cultura. Viver junto deles é usufruir dessa natureza linda e maravilhosa da Amazônia”, conta. A rotina de um educador dentro de territórios indígenas exige muito sacrifício e uma vocação para um comprometimento duradouro. Nos locais mais afastados, um professor precisa ficar até seis meses longe de sua casa. “Você paga um preço alto, mas os povos indígenas merecem respeito das nossas autoridades”, afirma.

Salta um novo traçado

Movimento de carretas ao longo da BR-163 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real).

Mas se depender da vontade do governo federal e das multinacionais a Ferrogrão começará a ser construída no ano que vem. A retomada do projeto ocorreu ainda no início do terceiro mandato de Lula, e com Renan Filho, como ministro dos Transportes. A decisão mais recente é a mudança no traçado, uma estratégia para tentar destravar as ações judiciais que tramitam no Supremo Tribunal Federal (STF). 

No ano passado, o STF determinou a retomada de estudos sobre o Ferrogrão antes de qualquer avanço nas obras. Em resposta, o Ministério dos Transportes formou um Grupo de Trabalho (GT), incluindo membros do governo e representantes das comunidades impactadas pelo projeto. 

Mas, em 29 de julho, organizações indígenas e ambientalistas anunciaram o rompimento com o GT. Em documento entregue pelo Instituto Kabu, pela Rede Xingu+, pela Aliança #FerrogrãoNão e pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol), as entidades denunciam desrespeito por parte dos representantes governamentais. “Continuaremos nossos esforços para impedir essa trilha de destruição e seguiremos dialogando com o governo federal por outras vias e em diferentes instâncias”, destacou a carta.

Poucos dias antes do rompimento, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e outros órgãos ligados ao Ministério dos Transportes haviam comunicado que os estudos finais sobre o Ferrogrão seriam apresentados, pegando as organizações sociais de surpresa. 

“Rompemos [com o GT] e a gente vai continuar falando que a gente não quer mais a ferrovia porque estão atropelando o nosso direito”, relata à Amazônia Real o diretor-presidente do Instituto Kabu, Doto Takak Ire, sobrinho de Paulinho Paiakã, morto em 2020 por Covid-19. Em janeiro, a ANTT enviou um pedido de retratação ao Instituto Kabu, admitindo a “inobservância da Convenção 169 da OIT”.

O advogado do Instituto Kabu, Melillo Dinis, acusa o governo federal de tentar usar a Lei 13.452/2017, que altera os limites do Parque Nacional do Jamanxim e cria a Área de Proteção Ambiental Rio Branco, para justificar esse novo traçado. Essa lei, contudo, foi suspensa pelo ministro do STF Alexandre de Moraes, em março de 2021

Dinis explica que a União tenta burlar a suspensão da lei ao propor um novo traçado da Ferrogrão que, na verdade, é o mesmo, apenas mais próximo da BR-163. O governo argumenta que pode usar a faixa de domínio da rodovia, mas esquece que a lei que permite isso está suspensa. “Esta posição do governo é de desespero do setor de infraestrutura e da consultoria privada que quer, na verdade, continuar a ter o lucro de cerca de 300 milhões de reais com o projeto”, dispara Melillo. 

Imagine a rodovia BR-163 como um corredor que corta o parque. A faixa de domínio da rodovia seria como as paredes desse corredor, que originalmente ocupam 80 metros de cada lado. Para construir a Ferrogrão, o governo quer aumentar a largura desse corredor, derrubando mais árvores e impactando uma área ainda maior do parque, explica Melillo, advogado do Instituto Kabu. “Assim, a faixa de domínio ficaria com cerca de 120 metros do lado em que seria implantada a ferrovia e outros 40 metros do outro lado da rodovia. Esse ajuste retira uma parte do Parque Nacional do Jamanxim e daí a necessidade da Medida Provisória.”

Em resumo, o governo federal tenta usar uma lei suspensa para justificar a construção da Ferrogrão dentro do Parque Nacional do Jamanxim. Dinis critica essa manobra e afirma que a União age de forma obscura, sem apresentar os estudos de impacto ambiental à sociedade. “Um projeto pensado no Sul do País e é feito no universo da Amazônia, sem nenhum diálogo com os povos, sem nenhum diálogo com os moradores da Amazônia, não é tolerado mais. Não há obra na Amazônia, se você parar para pensar, que foi feita dialogando com os povos.” Sobre os próximos passos do processo, o advogado informa que o STF aguarda a posição da Procuradoria Geral da República (PGR) sobre o caso.

Aliança contra a Ferrogrão

Vista da TI Baú, do povo Kayapó (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Na contramão do governo federal e do agronegócio brasileiro, está a união de 39 entidades que compõem a chamada Aliança contra a Ferrogrão, um grupo formado por organizações como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a Associação Xavante, Amazon Watch e o Instituto Kabu. Na visão das lideranças destas organizações, todos os territórios na Área de Influência Regional do Corredor Logístico de Exportação do Interflúvio Tapajós-Xingu estão na área de influência da ferrovia e serão severamente afetados, justamente um dos locais atuais e mais críticos de desmatamento da Amazônia, segundo dados do governo apresentados no PPCDAm 5ª Fase.

Três dos dez municípios com maior focos de queimadas em 2022 estão nessa área: Altamira, Novo Progresso e Itaituba. E, não por coincidência, quatro das dez Unidades de Conservação federais com maiores focos de queima — Flona do Jamanxim, APA do Tapajós, Rebio Nascentes Serra do Cachimbo e Flona de Altamira; e três das dez Glebas Públicas Federais mais desmatadas de acordo com o Prodes 2022 — Sumaúma, Gorotire, Curuaés, fazem parte dessa área de influência.

Nesse quadro, reitera a advogada da organização Terra de Direitos, Bruna Balbi, é necessário considerar o imediato reconhecimento de direitos territoriais, no caso dos povos indígenas, na área de influência da Ferrogrão (identificação, delimitação, demarcação, homologação e regularização). Isso permitiria frear o ímpeto de invasores em 16 terras indígenas (Reserva Indígena (RI) Praia do Mangue, RI Praia do Índio, TI Sai Cinza, TI Sawré Apompu (Km 43) / atual Sawré Ba’Pim, TI Sawré Juybu (São Luiz do Tapajós / atual Sawré Ba’Pim), TI Sawré Muybu (Pimental), TI Baú, TI Menkragnoti, TI Panará, Território Indígena do Xingu (PI Xingu, TI Batovi, TI Wawi, TI Pequizal de Naruvôtu), TI Roro-Walu (Jatobá/Ikpeng), TI Rio Arraias, TI Capoto Jarina, TI Apiaká do Pontal e Isolados , TI Apiaká/Kayabi , TI Batelão). 

“Existem diversas comunidades quilombolas, ribeirinhos, extrativistas e pequenos agricultores que seriam profundamente afetados pelo projeto”, acrescenta a advogada. Em sua análise, é urgente o reconhecimento e a regularização fundiária na região, garantindo o direito das comunidades quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais de acordo com prioridades definidas pela Secretaria Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais e Desenvolvimento Rural Sustentável.

Outra preocupação da Aliança é com relação aos novos estudos apresentados sobre a Ferrogrão, feitos pela empresa EDLP, que já havia produzido os primeiros relatórios. “Estes são igualmente falhos, incompletos e totalmente parciais”, afirma Pedro Charbel, coordenador de campanhas da Amazon Watch. Ele acrescenta que a Aliança não medirá esforços políticos e jurídicos para barrar o desenvolvimento da Ferrogrão, que classifica como um projeto “tão absurdo e destrutivo, em pleno estado sede da COP 30”.

Maiores impactados

Alessandra Munduruku, liderança indígena do Tapajós (Foto: Fred Mauro/Terra Floresta Filmes/ISA)

O território Munduruku será potencialmente o mais impactado pela Ferrogrão. Todas as comunidades estão na rota do empreendimento. Em Miritituba, distrito de Itaituba, a ampliação dos portos já afeta a vida e o cotidiano dos Munduruku. O local é conhecido pela intensa movimentação de caminhões de transportes de grãos para exportação do agronegócio. Os portos são controlados por empresas estrangeiras.

A liderança indígena Alessandra Korap Munduruku, presidente da Associação Pariri [que também integra a Aliança], faz parte de uma mobilização de seu povo para tentar impedir o empreendimento. “Não vamos deixar isso acontecer, porque sabemos que se acontecer haverá sangue indígena, ribeirinho, quilombola e extrativista que vai escorrer nos trilhos da destruição dessa ferrovia”, diz. 

Alessandra Korap Munduruku alerta que o rio vai secar mais, o clima vai ficar mais quente, a floresta vai estar no chão. “E onde tem vida, haverá apenas soja para exportação. A Cargill e grandes empresas vão lucrar e quem vive nesse território vai sofrer”, afirma. “Nosso País está tomado por queimadas e pela seca. Os impactos das mudanças climáticas serão cada vez piores se continuarem olhando para a floresta querendo transformá-la em pasto e soja.”

Para Alessandra, a Ferrogrão é parte de um movimento de destruição dos direitos indígenas, que está aliado à imposição de um marco temporal. Ela afirma que a falta de diálogo com as populações locais é “um absurdo” e até o momento o direito à consulta e veto não foi respeitado. “E todas as pessoas deveriam se preocupar com isso. Porque nós, povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e outros povos tradicionais estamos protegendo a natureza para garantir o futuro do planeta. Nós estamos na linha de frente de uma batalha global”, finaliza.

O que dizem Funai e Ministério dos Transportes 

Movimento de carretas na BR-163 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real).

O Ministério dos Transportes afirmou à Amazônia Real que o Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental da Ferrogrão foi atualizado, considerando as contribuições recebidas pelo Grupo de Trabalho, criado em outubro de 2023. Esses estudos foram protocolados em 2 de setembro de 2024, no STF, e apresentados ao Ministério do e Mudança do Clima.

A Amazônia Real procurou também a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e questionou como o órgão está acompanhando os desdobramentos da obra, levando em conta a ruptura do povo Kayapó com o Grupo de Trabalho (GT) do Ministério dos Transportes.

A Funai ratificou a necessidade de atualização do Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental antes de retomar o processo de licenciamento, contemplando também o dimensionamento de impactos cumulativos e a redefinição da área de influência. O órgão também aguardava a conclusão dos encaminhamentos do GT para acompanhamento da estruturação e recebimento de sugestões para o projeto EF-170, instituído por meio da Portaria Nº 994, de 17 de outubro de 2023.

Mas, para a Funai, a participação dos Kayapó no GT, do qual a Funai não faz parte, é opção da própria comunidade. Segundo o órgão, ainda não foram definidas as terras indígenas a serem incorporadas ao processo. Procurado, o Ministério dos Povos Indígenas não deu retorno à reportagem.


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