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BTG Pactual apaga os indígenas

BTG Pactual apaga os indígenas

No Campo de Azulão, situado em uma área de vasta planície fluvial e vegetação florestal do município de Silves (AM), a exploração de gás e petróleo avança rapidamente. No centro do projeto energético da Eneva S/A, cujo principal acionista é o banco BTG Pactual, vivem indígenas e ribeirinhos. Essas populações não foram consultadas sobre o empreendimento ou os planos de expansão do gasoduto, óleo e usina termelétrica. Para a empresa e para o governo do Amazonas, que autorizou o uso de combustíveis fósseis, elas simplesmente não existem dentro da área afetada pelo empreendimento. O campo exploratório está sobreposto ao Aquífero Alter do Chão, que atravessa grande parte da bacia amazônica.

Manaus (AM) – O Censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) atesta que há 1.066 indígenas vivendo em Silves, cidade a 181 quilômetros de Manaus e localizada na região do Médio Rio Amazonas. Lideranças indígenas garantem que o número é maior porque os pesquisadores do IBGE não alcançaram todas as comunidades. Eles estimam em 1.500 pessoas indígenas em Silves. Um relatório de qualificação da reivindicação fundiária elaborado por um perito da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) em novembro de 2023 registrou sete aldeias indígenas em Silves: Gavião Real 1, Gavião Real 2, Vila Barbosa, Mura Carará, São Francisco, Santo Antônio e Lago das Pedras (ou Curuá). O povo Mura é predominante, mas também há indígenas Sateré-Mawé e Munduruku. No município de Itapiranga, adjacente a Silves, onde a Eneva planeja expandir sua atividade, há registro da aldeia Vila Izabel, também do povo Mura.

As evidências oficiais da existência de indígenas na região se materializam nos depoimentos de lideranças como Jonas Mura, 45 anos. Ele é porta-voz dos povos indígenas de Silves e guarda na memória as lembranças, ainda em sua juventude, da presença de trabalhadores da Petrobrás. Antiga dona da concessão, a estatal realizava pesquisas na região desde 1999, mas vendeu o campo exploratório de Azulão para a Eneva em 2017. No ano seguinte, após arrematar os primeiros blocos exploratórios nos leilões da Agência Nacional de Petróleo (ANP), a empresa perfurou o primeiro poço. Em 2021, o Sistema de Tratamento de Gás Azulão (STGA) entrou em operação.

O cacique Jonas Mura observa placas de informação que indicam os dutos de exploração de gás instalados pela empresa Eneva (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).

“A gente nunca pensou que isso aconteceria. A gente só veio saber disso quando as máquinas da Eneva chegaram aqui, uns quatro atrás. Tomamos um susto. As perfurações chegaram dois, três quilômetros perto das comunidades. Passamos a observar derrubadas de árvores, enormes clareiras na floresta. A gente ficou com medo de contaminarem o rio. As pessoas não sabiam o que era”, lembra Jonas Mura, cacique da aldeia Gavião Real 2 e líder da mobilização que há dez anos pede demarcação do território.

Organizações sociais e ambientais e o Ministério Público Federal (MPF) contestam na Justiça o empreendimento, justamente pela falta de consulta aos indígenas e irregularidades nos licenciamentos concedidos pelo Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), órgão licenciador estadual. Com uma área estimada em 57,70 quilômetros quadrados, a exploração do Campo de Azulão conta com apoio de empresários e de políticos do Amazonas. O governador Wilson Lima (União Brasil) é um obstinado defensor da exploração minerária, apesar de reproduzir um discurso ecológico em agendas nacionais e internacionais, e costuma cobrar apoio para proteger a floresta.

Licenças sem estudos

Vista aérea do local onde estão os dutos de exploracão de gás da empresa Eneva, na região do município do Silves, localizado no Médio Rio Amazonas. (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).

A Eneva conseguiu as licenças ambientais do Ipaam sem precisar apresentar o Estudo e Impacto Ambiental (EIA) para operar e transportar gás de abastecimento para Unidade Termoelétrica Jaguatirica II, em Roraima. O Ipaam exigiu apenas o Relatório de Controle Ambiental (RCA). Somente em dezembro de 2022, com uma atualização em março de 2023 (que excluiu trecho do duto referente ao município de Itacoatiara), é que a Eneva apresentou um EIA, porém para a segunda etapa do empreendimento, que está em análise pelo órgão ambiental estadual. A companhia estima um depósito de 10 bilhões de metros cúbicos de hidrocarbonetos na bacia do rio Amazonas. 

O Ipaam concedeu duas licenças de operação para exploração de poços profundos de gás natural e uma licença de perfuração de perfuração de poços profundos de petróleo e gás natural para fins de pesquisa. Outras cinco licenças de instalação autorizaram a perfuração de poços profundos de gás natural para fins de pesquisa. Durante a realização de supressão vegetal em área de poço exploratório de gás natural, o Ipaam concedeu uma licença com autorização ambiental para resgate, salvamento, transporte e destinação de fauna silvestre. Toda essa documentação está relacionada ao Complexo de Azulão.

Em dezembro passado, a Eneva arrematou novos blocos, em um campo exploratório denominado Japiim, em Itapiranga (leia reportagem da Amazônia Real), descoberto em 2001. A empresa planeja construir 18 estruturas (clusters) para perfurações de poços e dutos. Também tem projeto de usina termelétrica de 950 MW em Silves e Itapiranga para receber o gás por dutos subterrâneos. No dia 15 de fevereiro ela anunciou a comercialidade de novos campos de gás no Amazonas: Tambaqui e Azulão Oeste. Trata-se de uma série de documentos enviados pela empresa à ANP atestando a viabilidade comercial.

O banco BTG Pactual detém quase 50% de participação da Eneva. Outro acionista é o Fundo Cambuhy, pertencente ao banqueiro Paulo Moreira Salles, um dos donos do Itaú Unibanco. A empresa já pertenceu ao empresário Eike Batista e se chamava MPX Energia. A Eneva também possui ativos no Maranhão.

Os investimentos no Campo de Azulão serão de 5,8 bilhões de reais, segundo informou a Eneva à Amazônia Real. Uma parte deste valor – 1 bilhão de reais – virá de empréstimos junto ao Banco da Amazônia (Basa) com juros subsidiados pelo Fundo Constitucional do Norte (FNO) e que podem ser pagos em até 16 anos, de acordo com o site Poder 360. O empréstimo foi tomado em 2020, autorizado pelo então ministro Paulo Guedes. O ex-ministro da Economia do governo Bolsonaro foi cofundador de um banco de investimento que se tornou o BTG Pactual. No fim de 2023, a Eneva divulgou novos empréstimos de bancos públicos destinados a “desenvolvimento regional” com vigência de 17 anos.

Pressão econômica

Agricultor é visto preparando jenipapos colhidos para venda na cidade de Itacoatiara (AM), vizinha de Silves (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).

Aproximadamente cinquenta comunidades ribeirinhas de Silves e Itapiranga são afetadas pela exploração petrolífera, segundo levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT), entidade do movimento social ligada à Igreja Católica que atua em conjunto com outras organizações na defesa dos indígenas. Em agosto do ano passado, membros da CPT avistaram um grupo de indígenas isolados. Em ação civil pública, de fevereiro deste ano, o MPF solicitou a suspensão do empreendimento na Justiça Federal do Amazonas (Leia mais neste texto).

Para Jorge Barros, agente da CPT em Itacoatiara, a exploração de gás e petróleo trará apenas lucros para empresários e políticos, com retornos superficiais à população. Os custos ambientais, segundo ele, são muito mais expressivos. “Pode trazer benefícios para alguns, mas às custas do meio ambiente e da saúde dos moradores locais.”

O cacique Jonas Mura confronta a versão do governo e da empresa de que não tem indígenas em Silves e cobra uma ação urgente do governo brasileiro e da Funai para iniciar os estudos de delimitação territorial. “Sou Mura, meu pai era Mura, nasci nessa região. O próprio governo federal reconhece que somos indígenas. Aqui tem polo base da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Se não existissem indígenas, como o governo federal faria esses investimentos?”, questiona ele, que em 2021 chegou a participar de um protesto em frente da sede do BTG Pactual, em São Paulo.

Polo base de saúde indígena, mantido pela Secretaria Especial de Saúde Indígena, na comunidade Gavião Real1 (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).

No final de janeiro, a Amazônia Real esteve em comunidades indígenas e ribeirinhas de Silves. Os moradores avisaram que os impactos negativos da exploração dos combustíveis vão contaminar as águas, fontes de alimentos, saúde local e a principal fonte de subsistência – os peixes – e levar doença e caos à vida comunitária.

Silves é um dos menores municípios do Amazonas, mas com uma vida aquática privilegiada e uma diversidade de micro-bacias. É cercado pelos rios Anebá, Urubu, Uatumã, Jatapu, Sanabani e Itanapani. O lugar possui significativos divisores de igapós, igarapés e lagos, entre eles Saracá e Canaçari. A floresta é rica em espécies nativas da região, incluindo os castanhais, considerada ameaçada de extinção.

“Como vai ficar nosso ar? Que gás é esse? Nosso medo são as doenças, não sabemos que impacto teremos. Será que os peixes vão sumir, as ‘caças’ vão embora? Vai demorar a demarcação? Tenho medo que os jovens passem a se envolver com drogas. Aqui no interior a gente não quer isso.” São muitas as dúvidas de Rosa da Silva Marques, 50 anos, cacica da aldeia Vila Barbosa, onde vive desde o final da década de 1970.

A cacica Rosa da Silva Marques, do povo Sateré Mawé, posa para foto na aldeia Vila Barbosa, no rio Anebá (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).

Na comunidade de 21 famílias, o trabalho é produção de farinha e cultivo de castanha e tucumã. O território não tem conflito, segundo Rosa. A aldeia Vila Barbosa foi fundada por seu pai, que veio de Barreirinha (AM), onde fica o território ancestral dos Sateré-Mawé. Como sempre foi comum na história amazônica, os deslocamentos fazem parte das práticas de territorialidade dos povos originários. “A gente aguarda há mais de dez anos pela demarcação. A gente tem só um documento do Incra, mas não é demarcado. Mesmo assim, cada um tem um pedaço de terra que meu pai dividiu. Estávamos tranquilos quando soubemos dessas atividades do gás”, afirma.

Segundo ela, quando chegaram as primeiras notícias do empreendimento, muitos acharam que traria benefícios apenas pelos rumores. “Mas nunca vieram aqui explicar para a gente o que é. Só sabemos quando alguém vai em Silves, na cidade, e falam com conhecidos. O que sabemos é que pode aparecer negócio de química que pode afetar a água que a gente usa e bebe.

Mário Jorge Pinto, 50 anos, cacique da aldeia Mura Carará, preocupa-se com as ameaças aos castanhais. Além de estar atento às invasões em seu território, que são comuns, agora ele também tem medo de haver contaminação das águas pela exploração da Eneva. Em sua aldeia, moram 25 famílias.

O cacique Mario Jorge Fernandes Pinto, do povo Mura, durante manobra da voadeira na comunidade Mura Carará (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).

“Minha mãe é Mura, ela é veterana daqui. Já tem muita invasão e agora para piorar tem o problema da exploração do gás. Se chegar a vazar e contaminar o rio Urubu ou o rio Anebá vai adoecer todo mundo”, diz Mário. O receio dele se baseia nas mudanças na coloração do rio que ele tem percebido ultimamente. Se houver um acidente ambiental, o risco é de ele se espalhar para outras calhas. “Pode cair no Anebá, no Macuarazinho, no Capirava, vai atingir esse mundão todo de água. Vai se espalhar por quilômetros e seguir por dentro.”

Mário diz que somente a demarcação do território pode frear o avanço da atividade exploratória. “A Eneva não quer que a gente esteja aqui. Falam que nunca viram índio aqui, os políticos dizem que nunca viram. E nós, quem somos? Se a Funai não demarcar, vamos ficar doentes, com diarreia, vômito. A água não é mais como era antes”, diz.

Audiências à revelia

Vista aérea da comunidade indígena Gavião Real 1, localizada em Silves (AM). (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).

Pouco antes de uma audiência marcada para ocorrer em Silves em maio de 2023, a Associação de Silves pela Preservação Ambiental e Cultural (Aspac) e Jonas Mura entraram com uma ação na Justiça Federal do Amazonas apontando irregularidades no licenciamento. A audiência foi suspensa pela Justiça, mas a decisão foi derrubada pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Em setembro, o Ipaam autorizou novas audiências, desta vez em Itapiranga e novamente em Silves, à revelia de recomendações do MPF para não realizá-las e de ofícios enviados pelo Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e pela Funai.

Durante as audiências contestadas, o Relatório de Impacto Ambiental (Rima), uma versão compacta do EIA (que tem 2 mil páginas), foi apresentado publicamente. Importante frisar que as primeiras licenças concedidas pelo Ipaam, além de terem sido liberadas sem o necessário EIA, também não foram submetidas à audiência pública. Nos ofícios das licenças, o órgão limita-se a impor algumas condicionantes, que estão em uma página de cada cópia da licença.

“As referidas licenças ambientais prescindiram de audiência pública visto as fases dos respectivos licenciamentos não impactarem diretamente na realidade socioambiental, tanto do ecossistema quanto das populações do entorno, ressaltando-se que as Terras Indígenas estão localizadas a grandes distâncias do empreendimento”, diz o Ipaam, em documento interno obtido pela Amazônia Real.

Em julho e novamente em agosto de 2023, a Funai solicitou do Ipaam envio de informações sobre o empreendimento e o perímetro completo de suas atividades para a verificação das distâncias em relação às terras indígenas.

“Tendo em vista o relato de impactos do empreendimento às comunidades indígenas da região, com preceito nos princípios da Prevenção e da Precaução, recomendamos a suspensão do curso do processo de licenciamento ambiental das atividades de exploração de gás denominada Campo de Azulão, localizadas nos municípios de Silves e Itapiranga, no Estado do Amazonas, até que seja devidamente regularizado o Componente Indígena”, diz trecho. De acordo com a Funai, em manifestação ao MPF, o Ipaam não respondeu ao pedido.

No final de agosto, o MPI reiterou o pedido da Funai ao Ipaam e à Eneva. Também solicitou o cancelamento das audiências – reforçando recomendação do MPF – marcadas para setembro em Silves e em Itapiranga, na qual seria apresentado o projeto da Usina Termelétrica Azulão (UTE), encabeçado pela Sparta 300, subsidiária da Eneva. O Ipaam ignorou a solicitação e autorizou as audiências.

No ofício, o MPI diz: “conforme relatos enviados por lideranças indígenas e organizações locais, o clima de aflição e incerteza impera nas aldeias e nas comunidades, inclusive com o acirramento de conflitos na região, sobretudo em razão do avanço do licenciamento, sem que tenha havido, até agora, maiores informações e esclarecimentos acerca de eventuais impactos/repercussões nos modos de vida dos povos indígenas que habitam na área de influência do Complexo, bem como de medidas compensadoras, mitigadoras e/ou indenizatórias a serem previstas”.

Ameaças de morte

Jonas Mura observa dutos de exploração de gás instalados pela empresa Eneva em área de indígena. (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).

Jonas Mura culpa o Ipaam pela interferência e ausência de consulta e liberação das licenças. “A empresa diz que só entrou porque foi licenciada. O Ipaam, que deveria apoiar a população local, os indígenas, os ribeirinhos, não teve respeito de procurar a gente. Nem o Ipaam e nem a empresa nunca vieram aqui. Nem em uma audiência que teve ano passado tivemos oportunidade de falar. Eu fui difamado pelos políticos, me senti envergonhado”, desabafa o líder.

Sofrendo ameaças desde 2023, Jonas Mura entrou no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH) do governo do Amazonas. Raramente sai de casa. Quando precisa se afastar toma submete-se a rigorosas ações preventivas.

Quando a reportagem da Amazônia Real esteve na aldeia, Jonas tomou medidas de proteção para circular, pois sabe que é vigiado e teme por mais perigo à sua integridade física e de sua família – tem um filho de 10 anos e sua esposa é do povo Baré.

Ele conta que ano passado recebeu ameaças de morte; avisos alertaram que sua casa seria incendiada. Jonas denunciou o fato no MPF e chegou a ficar três meses fora da aldeia. “Ficavam rondando minha casa, armados. Uma vez alguns carros apareceram aqui, com pessoas à minha procura. Mas isso não me amedrontou. Apenas me incentivou a continuar lutando pelos nossos direitos, que é ter a nossa terra demarcada.”

Funai diz que criará GT

Mapa de autodemarcação realizado pelos indígenas da Terra Indígena Gavião Real(Cortesia: Jonas Mura).

Toda essa história poderia ser outra, caso o pedido por demarcação tivesse avançado. Em agosto de 2015, um servidor da Funai já havia visitado as comunidades indígenas. O caso ficou parado no órgão desde então, sem explicação. As seis aldeias registradas pelo servidor naquele ano (atualizada agora para sete) foram agrupadas sob uma só denominação: Terra Indígena Gavião Real, que é o mesmo nome de uma das aldeias.

Os indígenas aguardam que a Funai constitua o Grupo de Trabalho (GT), o primeiro passo do processo de demarcação de um território indígena, na qual é iniciada a delimitação da área pleiteada.

O líder Jonas Mura faz parte de uma rede de organizações sociais (entre elas a própria CPT, a ong 350 e a Aspac) para que o empreendimento cumpra tratados de direitos humanos, realize consultas prévias e analise os riscos de estarem realizando obras em áreas próximas ou mesmo sobrepostas às dos indígenas. Também cobram que o empreendimento realize o Estudo de Componente Indígena (ECI) e que o licenciamento seja analisado pelo Instituto Brasileira de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), por se tratar de área federal e estar em comunidades indígenas.

Mas em parecer elaborado ano passado, o Ibama não se interessou pelo assunto. O órgão encaminhou nota ao MPF informando que, “após a análise da não sobreposição da área do empreendimento com terras indígenas”, com base em informações da Funai, “o empreendimento em questão não é de competência da União”.

À Amazônia Real, a Funai informou que em 2024 espera constituir o GT “para condução dos estudos multidisciplinares necessários à identificação e delimitação da área reivindicada pelos indígenas”. A Funai disse que “o caso é prioritário, considerando a situação de vulnerabilidade da comunidade diante do empreendimento”. Indagada sobre o motivo da demora em iniciar a qualificação, parada desde 2015, a Funai não respondeu.

Um laudo do MPF no Amazonas de 2023 atesta que “o Projeto de Produção e Escoamento de Hidrocarbonetos do Complexo de Azulão e adjacências, na Bacia do rio Amazonas, tem vindo a acirrar o clima de tensão e insegurança na região, marcado por episódios de hostilidade, ameaças e confronto”. O laudo indica ainda que “há incalculáveis comunidades ribeirinhas e extrativistas ao longo daquelas águas fluviais, cujo mais empenhado trabalho de campo talvez não pudesse alcançar”.

O procurador da República Fernando Merloto Soave, do MPF no Amazonas, reforça a necessidade de instaurar, com urgência, o GT de delimitação do território. “Há uma pendência da própria Funai em criar o GT para criar o estudo necessário. O GT é urgente. Tem outros territórios [indígenas] além dos de Silves. Tem em Itapiranga também”, disse procurador em entrevista à Amazônia Real.

Em parecer do processo que tramita agora na segunda instância do caso, o procurador Felício Pontes Júnior, da Procuradoria Regional da República da 1ª Região, manifesta-se dizendo que a “Eneva S/A e o Ipaam erraram ao não contemplar no licenciamento o estudo das terras indígenas existentes na região, ainda que não homologadas, o que poderia ser realizado pelo simples atendimento das informações solicitadas pela Funai e pelo MPI, ao invés de estudar apenas o mapa oficial das terras indígenas homologadas.”

Para o procurador, embora não estejam com o processo de demarcação finalizado, as terras indígenas de Silves e Itapiranga estão na Área Diretamente Afetada (ADA) ou na Área de Influência Direta (AID). Quando era procurador da República no MPF do Pará, Felício Pontes Júnior notabilizou-se por sua atuação contra a hidrelétrica Belo Monte e os danos nas populações indígenas e tradicionais.

Fim do pescado

Pessoas são vistas em uma canoa no lago do Canaçari, próximo à comunidade Santa Fé, em Silves (AM) (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).

A vegetação florestal ainda é exuberante no entorno da comunidade ribeirinha Santa Fé do Canaçari, fundada há mais de 50 anos. Silves tem uma característica privilegiada na vastidão aquática amazônica. Quem visita o local, como fez a Amazônia Real, observa as embarcações navegando diariamente nas plácidas águas da vida ribeirinha.

No final de janeiro, as áreas começam a ficar alagadas com a subida dos rios e, as inúmeras ilhas que formam a comunidade estão menos extensas. Trata-se de um local rico em provisões naturais de caça e os imensos lagos retêm grandes quantidades de peixe.

Raimundo Nonato Vasconcelos, conhecido como Naca, aprendeu a conviver neste ecossistema de floresta tropical. Presidente da comunidade e, como agente ambiental, é o protetor e fiscalizador do manejo de preservação, subsistência e pesca na região do chamado Lago do Canaçari. Em 2023, na seca histórica, o lago baixou muito.

“Isso mexeu comigo. A gente sofreu com a estiagem. Nunca tinha visto. E agora, vem essa tal de Eneva. Não sei o que pode acontecer. Vai piorar. Vão destruir. Planejam colocar uma plataforma no meio do lago, mas o Caçanari é muito raso”, ressalta.

O líder ribeirinho e agente ambiental Raimundo Notato Vasconcelos, conhecido como seu Naca, na comunidade Santa Fé do Canaçari, em Silves(AM) (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).

O ribeirinho afirma que, pelo que observou em um projeto apresentado a ele, quando esteve em Silves, a plataforma vai ficar a apenas 5 quilômetros da comunidade. Seu medo é estourar um cano e dizimar o equilíbrio ecológico. “Sabe lá que fundura eles estão fazendo isso. Já pensou botarem uma plataforma no meio do nosso lago?”, indaga.

Naca nasceu e se criou na margem dos rios de Silves – Anebá, Canaçari e tantos outros lagos que rodeiam a cidade. Não imaginava que, aos 65 anos, teria de se preocupar tanto quanto agora com o empreendimento da Eneva. “Mas nem todos pensam como eu. Tem gente que acha que tem benefícios. Estão se enganando. Ano passado fui numa audiência em Silves. Botaram um minuto para eu falar. Eu ia desbulhar tudinho, mas não deixaram. Desligaram o som. Queria dizer que não consultaram as comunidades tradicionais para botar a plataforma. Prometeram naquela audiência ir nas comunidades e nunca vieram. O que estão fazendo aqui é um crime. A nossa Amazônia não precisa que tirem petróleo dela”, lembra.

A área ribeirinha em Silves tem acordos de pesca criados pelo Ibama em 2008, com abrangência no rio Urubu e todo o complexo do Lago do Canaçari. A área também tem uma proposta de criação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Saracá-Piranga. De acordo com uma nota da Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema), a Área de Influência Direta do empreendimento sobrepõe 84,33 hectares da área destinada à RDS Saracá-Piranga. Curiosamente, a Sema afirma que “não afeta diretamente a proposta de criação da Unidade de Conservação” e que “o poder público pode limitar temporariamente o exercício de atividades e empreendimentos que possam causar danos graves aos recursos naturais ali existentes se, a critério do órgão ambiental competente (Sema ou Ipaam), houver risco de dano grave aos recursos naturais”.

No seu EIA, a empresa Eneva indica que na área direta de influência há 438 espécies de peixes, 45 de anfíbios, 48 de répteis, 180 de aves, 41 de mamíferos terrestres e 19 de mamíferos voadores (morcegos). Entre os impactos ambientais adversos apontados nesse estudo estão “alterações nas características químicas do solo devido a acidentes que porventura provoquem derrames acidentais de óleos e graxas, produtos químicos diversos armazenados nas instalações, equipamentos e veículos” e “alterações nestes ambientes também são possíveis de ocorrer nos casos em que haja falhas nos processos de gestão de resíduos e efluentes, principalmente durante as fases de Instalação e operação, por isso, é importante o correto controle destes processos, a fim de evitar estes impactos relacionados à contaminação”.

Segundo o estudo, também podem ocorrer “impactos relacionados à alteração na qualidade das águas superficiais e subterrâneas que estão relacionados a possíveis acidentes envolvendo vazamento de óleo ou de combustíveis / lubrificantes de veículos automotores utilizados nas atividades”.

Território ancestral

Os ancestrais dos Mura contemporâneos dominaram durante séculos grandes porções desta parte da Amazônia, desde o Médio Rio Amazonas até o rio Madeira. Os Mura são um dos povos mais resistentes ao processo de colonização pelos invasores europeus; confrontaram várias ameaças de dizimação nos últimos séculos.

Silves, com o município vizinho de Itacoatiara, possui uma reconhecida diversidade de registros arqueológicos e é referência para estudar o passado dos ancestrais dos indígenas da atualidade. A Eneva afirma em seu EIA de 2023 que dados realizados no Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos (CNSA) informam que há registro de 27 sítios arqueológicos localizados nos municípios de Itapiranga e Silves.

Placa do Iphan indica o “Sítio Arqueológico Piquiá”, que encontra-se abandonado e sem nenhuma proteção, localizado na comunidade São José de Piquiá, na divisa de Silves com Itacoatiara. (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).

A arqueóloga Helena Lima, do Museu Emílio Goeldi, em Belém (PA), pesquisou durante anos os sítios localizados em Silves. O trabalho resultou no livro Fronteiras do Passado – aportes interdisciplinares sobre arqueologia do Baixo Rio Urubu, Médio Amazonas, Brasil, publicado em 2023 pela Edua (Editora da Universidade Federal do Amazonas).

A região do rio Urubu, segundo Helena Lima, tem uma grande potencialidade para se conhecer mais sobre a história indígena da Amazônia. O local tem sítios arqueológicos de grandes proporções e diferentes quantidades de cerâmicas e terras-pretas. 

“É um local que a gente interpreta dentro da arqueologia como uma fronteira cultural. Ali aparecem tradições indígenas antigas concomitantes, com cerâmicas antigas, com terras-pretas. A região de Silves, na foz do rio Urubu, e nos lagos, que é o que a gente chama de tradição regional Saracá. É um exemplo maravilhoso de contatos interétnicos desses povos do período imediatamente próximo ao contato durante a invasão europeia. Nessa região tem vários sítios diferentes”, explica. “A gente até nomeou como fase Silves, que é a fase relacionada aos primeiros anos de antropização da região, em torno de 2 mil anos atrás”, completa. 

Caminhões na estrada

Caminhões de gás e de transporte da madeiras são vistos transitando pela rodovia AM-363, próximo à área indígena, zona de interesse para a exploração de gás pela empresa Eneva (Foto: Bruno Kelly/ Amazônia Real).

Desde que as obras da Eneva começaram, Jonas Mura afirma sentir tristeza ao ver o avanço das máquinas na floresta para derrubar as árvores. Clareiras foram formadas a apenas 3 quilômetros das comunidades para perfurações. “Fiquei emocionado de ver grandes clareiras dentro da mata e não ter nenhum efeito no governo [municipal, estadual e federal]. Derrubaram mais de 100 mil árvores dentro dos blocos. O roçado do índio é menor do que aquilo ali. Nunca foi explicado como fazem a extração, a gente tem medo de se contaminar porque não sabemos como é esse sistema”, diz Jonas.

De acordo com Jonas, a aldeia mais afetada é Gavião Real 2, que fica a apenas 2 quilômetros dos dutos concluídos ano passado para a próxima etapa do complexo. A Amazônia Real esteve em três blocos com esses dutos e válvulas (também chamadas de ‘cabeçotes’) instaladas nos poços. O acesso é por ramal do Anebá, estrada de terra aberta pela Mil Madeiras para escoamento de produtos da empresa. O cenário indica que são campos exploratórios prontos para explorar. 

Jonas afirma que outra preocupação é com o tráfego de veículos pesados na AM-363 para o transporte de gás até Roraima diariamente. “São muitos caminhões rodando a estrada. Deveriam fazer uma só para isso. A gente utiliza essa estrada para escoar nossa produção até Itacoatiara e Silves, mas com essa intensa movimentação de caminhões pode ocorrer acidentes”, diz.

A reportagem da Amazônia Real avistou em diferentes momentos ao menos três comboios com dez caminhões circulando pela AM-363 em pouco tempo de diferença, ocupando grande parte do espaço da estrada.

De sua chácara à margem da estrada, Sebastião Monteiro Gil, 63, observa apreensivo, sucessivos comboios desde a manhã até o final da tarde. “Essa estrada não é adequada para transporte de gás. Deveriam fazer uma exclusiva para isso. Já trabalhei em mineradora na Serra dos Carajás, no Pará. Esse tipo de transporte é um grande risco para quem mora aqui. Tem vezes que a gente vê 15 caminhões juntos. Vai um colado no outro. Eles arriscam se acidentar e ainda vão nos atingir”, alerta.

Sebastião Monteiro Gil, em frente de seu sítio, na rodovia AM-363, região de interesse para a exploração de gás pela empresa Eneva (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).

Sebastião não quer sair de sua moradia, mas teme pelo futuro próximo. Também não vê benefícios para a população local. “Tenho medo de explosão, do gás tóxico. Quando começaram a trabalhar, estavam descarregando a pressão do gás dos veículos em qualquer lugar, paravam na beira da pista. O gás não tem cheiro, tem mau cheiro. As coisas não podem acontecer dessa maneira”, diz.

Presença de indígenas isolados

Em meados de 2023, Jorge Barros, membro da CPT de Itacoatiara, fazia uma expedição na área de exploração minerária junto a um amigo da organização quando avistou a menos de 40 metros um homem despido, com uma peça amarrada na cintura e segurando um pedaço de galho. Minutos depois, se juntaram ao homem uma mulher, um idoso e dois adolescentes. Ele e sua equipe acharam que era uma onça. 

Jorge gesticulou e tentou se comunicar. Ele também tentou fazer uma fotografia pelo celular, mas o gesto irritou o indígena à frente e Jorge registrou uma imagem distante que não ficou perfeita. Dez minutos depois dessa interação, o grupo de indígenas sumiu na mata. “Fiquei arrepiado. Ele ficou olhando de longe, com aquele pedaço de pau levantado. Parecia assustado e gritava.”

Indígena em isolamento voluntário na região de exploração de gás da Eneva (Foto: CPT)).

Jorge prefere não dizer a área exata onde se deu o rápido contato para evitar que outras pessoas tentem encontrar o grupo, mas ele incluiu este episódio em um dossiê da CPT, elaborado em agosto do passado, e em um dossiê mais detalhado enviado ao MPF no Amazonas e à Funai.

No dia 1º de fevereiro de 2024, o MPF entrou com uma ação na Justiça Federal como parte da ação inicial ingressada pela Aspac em 2023. Na ação de 2024, o MPF trata como “fatos novos e urgentes” e informa que “há grave e iminente risco à vida de povos isolados localizados na área de exploração de gás e petróleo pela companha Eneva na região de Silves e Itapiranga/AM, exigindo urgente intervenção judicial”.

Um dos pedidos do MPF é “a imediata suspensão da exploração de poços gás e/ou petróleo incidentes sobre as referidas áreas apontadas no relatório CPT, incidentes sobre os territórios indígenas, extrativistas e de povos isolados” e também de todos os processos de licenciamento ambiental perante o Ipaam.

O procurador afirma que a Funai se faça presente urgente em campo para, se confirmados os vestígios, efetuar a restrição de uso do território por meio de ato normativo.

Apreciação judicial

Placa da empresa Eneva instalada em área de dutos de exploração de gás, em um dos blocos exploratórios. (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).

Em despacho de 9 de fevereiro, o juiz Rodrigo Mello solicitou que os “réus (Eneva e Ipaam) se manifestem se consentem ou se opõem aos fatos relacionados aos povos indígenas”. O juiz também solicita informações da Funai relativas à delimitação da área ocupada por indígenas e que Ipaam e a Eneva enviem documentos solicitados pelo órgão indigenista.

Procurada, a Justiça Federal respondeu, via assessoria de comunicação, que o prazo expirou no último dia 18 e que todas as partes, com exceção da Aspac, apresentaram manifestação. Agora o processo será submetido a nova apreciação.

Em um documento interno, a Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC) da Funai afirma que é preciso realizar atividades de qualificação em campo para prosseguir com os estudos de localização que possam confirmar ou não a presença de indígenas isolados na área abrangida pela exploração de gás e petróleo. A promessa é que essa ação ocorra ainda neste ano.

“Caso confirmada a presença de indígenas em isolamento na região, o empreendimento deve ser interrompido, sob risco de grave violação à vida de tal população”, diz a CGIIRC.

Na guerra judicial, um dos argumentos utilizados pela Eneva foi a necessidade de abastecimento energético em Roraima. A empresa recorreu à chamada ‘lei de suspensão de segurança’, um dispositivo do ordenamento jurídico brasileiro criado em 1964, na ditadura militar, e que tem sido utilizado por tribunais regionais federais em situações que causem “grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas”.

Para o procurador Fernando Merloto Soave, essa justificativa cai por terra quando há outras opções de energia – como eólica ou solar – e o início das obras do Linhão do Tucuruí, aprovadas em 2022, depois de muitos anos em conflito com os Waimiri-Atroari. 

“Um dos argumentos usados é o prejuízo à economia, a exigência de ter gás em Roraima, de ter energia elétrica no estado. Mas é o mesmo argumento que usaram por mais de uma década no caso do Linhão de Tucuruí, com inúmeras pressões aos Waimiri Atroari. Falas como ‘o Linhão vai resolver o problema de Roraima que fica isolada do sistema nacional’, eram sempre usadas para isto. E agora? Não ia resolver? O Linhão já está em construção. Pergunta-se: onde está a política de transição energética? Onde está o compromisso do Brasil com a crise climática? Mais grave do que isto, ainda por cima, com pressões e violações ao território tradicional sobre povos indígenas e tradicionais como neste caso da exploração em andamento pela empresa Eneva”.

Ameaças e doenças

Moradores da comunidade indígena Gavião Real 1 passeiam no fim de tarde (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Rea).

Jorge Barros acrescenta que o governo do Amazonas apresenta o empreendimento como a salvação econômica do Estado, mas ignora os efeitos no meio ambiente e em quem habita o território. “Nada foi comunicado. Isso tem gerado muitos impactos culturais, psicológicos, adoecimentos em massa, uma vez que a segurança é muito grande. As pessoas não sabem o que vai acontecer. Se vão precisar sair da área um dia, o que o empreendimento vai causar”, diz.

Segundo o membro do CPT, esses povos tradicionais têm uma relação próxima com as águas abundantes da região, mas só o anúncio do empreendimento já afetou os hábitos deles. Alguns relatam adoecimento, sintomas de diarreia e uma parte dos moradores do rio Sanabani já não toma mais banho. 

Barros critica o formato das audiências realizadas em 2023 e o pouco tempo para os participantes falarem. Relata que os comunitários tinham, no máximo, um minuto para falar. “A principal violação de direitos é do Estado. O principal culpado é quem licenciou. A empresa, de fora, sabia que estava cometendo injustiça porque utilizou dados ultrapassados, não atualizados sobre as comunidades indígenas e não indígenas nos pedidos de licenciamento. No fundo, foram licenças políticas. Não foram licenças técnicas”.

Barros também está no programa de proteção desde o ano passado e tem pouco contato social. Barros foi ameaçado e teve sua casa invadida. Ele não dá mais detalhes sobre o programa por motivo de segurança. Diz apenas que as ameaças estão sob investigação e que segue protocolos.

Como em Vaca Muerta

Especialista em impactos de exploração de combustíveis fósseis em comunidades tradicionais, Luiz Afonso Rosário aponta uma série de danos ambientais e sociais causados pela mineração: acúmulo de metais, contaminação da biota e dos peixes e toda a cadeia alimentar. Luiz é ativista da organização global 350, que faz parte da aliança de movimento social que questiona as licenças concedidas à Eneva.

Nesta segunda-feira (25), a 350 está lançando o relatório “Situação dos povos indígenas e comunidades tradicionais afetadas por ações da Empresa ENEVA nos municípios de Itapiranga e Silves”.

“O primeiro ponto é que não é gás natural, é gás fóssil. Petróleo e gás são metano. A indústria criou essa fantasia, essa nomenclatura, de que é ‘natural’, mas está poluindo do mesmo jeito. Liberaram licenças com base em um estudo de 2013, feito pela Petrobrás. Estamos falando de dez anos, mudou toda a dinâmica”, inicia.

Vista aérea da comunidade Santa Fé do Canaçari(AM), rodeada por água e floresta. O projeto de exploração de gás da empresa Eneva, também impacta a comunidade. (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).

Ele acredita que o há risco de se repetir na região de Silves e cidades vizinhas o mesmo que ocorre na zona petrolífera de Vaca Muerta, na província de Neuquém, na Argentina, onde gasodutos avançaram sobre territórios dos indígenas Mapuche e têm causado um rastro de contaminação e doenças naquela área.

“Acompanho os grandes desastres no Brasil desde a época do vazamento da Baía de Guanabara em 2000. Depois, a explosão do navio Vicunha, o derramamento em Santos, o caso da Chefron. A gente sabe como funciona. Não tem como operar aquela estrutura com segurança absoluta. Faz parte da atividade, ela é poluente”, alerta.

Luiz Afonso afirma que não é possível negar o risco de contaminação por vazamentos dos fluidos nos dutos para os rios, igarapés e até mesmo o Aquífero Alter do Chão, sobre o qual o campo exploratório está sobreposto. Ele lembra que no local são jazidas da bacia sedimentar do rio Amazonas muito profundas, entre 1.100 a 3.200 metros de profundidade. 

Ele diz que a empresa Eneva afirma que os canos são revestidos de cimento, mas lembrou que is revestimentos são passíveis de fissura. “Não existe exploração de petróleo e gás segura. Se não tiver um trabalho muito cuidadoso de substituição dos equipamentos não têm como [não escapar].”

Luiz Afonso diz que a alegação de desenvolvimento econômico é uma armadilha que não traz resultados para a população. “Eu até gostaria, mas não conheço, região do Brasil ou da América Latina, onde a indústria do petróleo e do gás trouxe riqueza para a população. Se assim fosse, Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, seria uma Dubai. Mas tem prostituição, droga, violência. Não tem creche, tem esgoto a céu aberto. Madre Deus, na Bahia, seria um brinco. Não seria essa miséria. Santos? Quem conhece Santos, Guarujá, São Vicente, com bolsões de pobreza absoluta. Falar que vão transformar Silves é um delírio”, analisa.

O receio de Luiz Afonso é que, futuramente, a empresa passe a utilizar o faturamento hidráulico, conhecido como fracking, que consiste em aplicar produtos químicos para a perfuração. A Eneva nega em seus documentos que pretende utilizar esse método de perfuração na bacia do Médio Rio Amazonas.

“Esses clusters se exaurem muito rapidamente. Quando começam a não ser mais economicamente interessantes a partir do segundo ou terceiro ano, daí vem o perigo do faturamento hidráulico. Tirar o máximo possível, não importando o custo ambiental. Cluster são unidades pré-moldadas que são transferidas para outra região e começa tudo de novo. Eles vão avançando no território. Imagine o impacto que gera dentro da floresta?”, questiona.

Em um documento, o Ipaam informa que “em relação à atividade de fracking a empresa não informa em nenhum local, nem por indícios que pretende realizar a atividade citada”. Segundo o órgão estadual, o fracking não está autorizado e que é preciso um outro licenciamento, caso essa técnica seja utilizada.

Benefícios sociais e royalties

Alex da Costa Pinto, filho da liderança Mário Jorge Fernandes, ambos do povo Mura, observa a comunidade da varanda de sua casa, na comunidade Mura Carará (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).

A Eneva afirma que a exploração de gás e petróleo trará benefícios sociais e econômicos. Uma das principais transferências destes benefícios são os royalties, previstos para serem repassados para o município. A empresa quer abrir novas áreas de perfuração e já adquiriu blocos na bacia do rio Amazonas. “A UTE Azulão congregará um conjunto de usinas, no Campo de Azulão, necessárias para evitar um déficit de energia no Sistema Interligado Nacional (SIN) previsto para 2026, segundo o Plano Decenal de Expansão de Energia 2030 (PDE 2030), elaborado pela Empresa de Pesquisa (EPE), aprovado pela Portaria Normativa 2/GM/MME”, diz trecho de um recurso judicial ingressado pela empresa ano passado, para contestar ação da Aspac.

À Amazônia Real, a Eneva respondeu que “ressalta que os procedimentos de licenciamento seguem todas as etapas necessárias e previstas em lei e as normativas dos órgãos ambientais competentes, sempre de modo transparente e com o mais alto rigor técnico.” A empresa também diz, em nota, “cabe destacar que não há terra indígena demarcada ou em estudo na área do empreendimento, conforme dados da própria Funai, que são públicos e constam dos processos de licenciamento”.

Questionada sobre os terrenos adquiridos para o empreendimento, a empresa disse que “todas estão regulares e orientam pelas melhores práticas de transparência e ritos legais estabelecidos.” 

Em ofícios que a Amazônia Real teve acesso, o Ipaam informa negociações de sítios e localizações nos arredores de Silves, mas não fala em preços. A agência apurou que a Eneva alugou áreas de três locações para perfuração de poços da empresa Mil Madeiras, que extrai e comercializa madeira na área.

João Cruz, diretor da empresa, disse à reportagem que as três áreas alugadas para Eneva eram “objeto de contrato firmado com a Petrobrás”, que já havia feito estudos sísmicos e perfuração de poços nas mesmas locações. Ele não informou o valor.

O que diz o Ipaam

O Ipaam foi procurado pela reportagem da Amazônia Real para responder sobre a liberação dos licenciamentos contestados e demais assuntos tratados nesta reportagem, mas não respondeu.

Em um dos documentos internos do Ipaam, ao contestar ação civil pública da Aspac, o órgão é taxativo: “segundo o Ministério das Minas e Energia, a Funai e a ANP, e também nos termos da Portaria Interministerial 60/15, de lavra dos Ministérios do Meio Ambiente, da Justiça, da Cultura e da Saúde, NÃO EXISTEM QUAISQUER POPULAÇÕES INDÍGENAS na área de influência, direta ou indireta, do empreendimento da Eneva. Em tais condições, não há que se falar no Estudo de Componente Indígena reclamado na inicial.”

O Ipaam diz ainda que “não há vício na concessão das licenças e na análise do pedido de licenciamento para produção e escoamento, por gasoduto de gás natural, do Campo de Azulão, pois trata-se de atividade que não está em terras indígenas, não está em imóvel da União e não afeta dois ou mais estados da Federação”.


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