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As maiores águas do planeta

As maiores águas do planeta
Por Amazonia Real

A maior enchente do rio Amazonas aconteceu em 1953, desde que, em 1931, o serviço hidrográfico foi instalado em Santarém, cidade que fica no meio do curso do rio, entre Belém e Manaus, quando muda de nome, passando a se chamar Solimões. O nível máximo das águas, de 6,67 metros acima do nível normal, foi alcançado em 12 de maio. Até então, a maior cheia havia sido a de 1950, quando o nível chegou a 6,39 metros, em 7 de maio. O Amazonas enche durante seis meses, depois de um semestre de vazante.
A cheia do ano anterior foi a terceira maior, com 6,32 metros; e a quarta, a de 1950, com 6,10 metros. Ao longo das décadas de 1930 e 40, a altura máxima ficou sempre abaixo de seis metros, exceto em 1944, quando ultrapassou em dois centímetros esse nível.

Por causa dessa característica, de cheias maiores, na transição entre os anos 1940 e 50, surgiram interpretações, como a de Paul Le Cointe. Ele atribuía o fenômeno ao assoreamento na foz do Amazonas. Com menos saídas para o Atlântico, as águas represadas provocariam a elevação do nível. Essa interpretação se revelou insustentável nos anos seguintes.

É sempre temerário fazer afirmativas com base em observações durante curtos períodos na Amazônia. Ou sem a amplitude que a dimensão, a complexidade e as especificidades da região exigem.
Um ano depois, em 1954, o presidente da comissão criada em Belém para tratar do problema da cheia, Amintor Bastos, mandou avisar às pessoas que haviam preenchido os questionários enviados da capital que a verba destinada à indenização dos prejudicados já estava depositada no Banco do Brasil, “aguardando estudos” que a comissão efetuaria. Depois das águas, a burocracia inundava tudo.

Visão errada da várzea


Fui contemporâneo das duas maiores enchentes da Amazônia no século passado. Na de 1953 eu estava em Santarém e ainda não completara quatro anos de idade. O que lembro é retrospectivamente, a partir de fotos que vi depois.

A principal rua do comércio estava coberta de água. Pranchas faziam a ligação entre as casas. O velho mercado ficou ilhado. Não houve tragédia. Mas, como sempre, políticos e demais intermediários angariaram dinheiro e produtos para os “flagelados”. E, como sempre, só uma parte da colheita chegou aos destinatários.

Da grande cheia de 1976 eu participei intensamente. Saí de avião de Belém para Altamira. De Altamira, por terra, até Porto Vitória. Fretei um barco (por coincidência, de uma pessoa conhecida: o comerciante e prefeito de Alenquer, Édson Macedo). Desci o Xingu, passei por Porto de Moz e fui chegar a Almeirim de madrugada.

Sempre de barco, com muitas escalas, fui até Manacapuru, no Amazonas, em 12 dias de viagem marcante. Escrevi várias reportagens para O Estado de S. Paulo e O Liberal. Parte delas foi aproveitada em meu primeiro livro, Amazônia: o anteato da destruição.

Minha maior preocupação foi desfazer a imagem da cheia do rio como uma calamidade, que criava flagelados e tornava quase impossível a vida nas várzeas amazônicas. Ao contrário dessa imagem, a enchente é um fenômeno de ocorrência certa, com duração previsível, que acompanha a vida humana desde que ela se estabeleceu na Amazônia, 10 mil anos atrás, mais ou menos.

Durante seis meses o Amazonas, o mais extenso e mais caudaloso rio do mundo, sobe, inundando terras marginais; nos seis meses seguintes, desce, deixando a descoberto as áreas que fecundou com os seus nutrientes.

Em 1921, o cientista suíço Hans Bluntschli disse que este ciclo das águas, que vem “do mar pelos ares à terra coberta de floresta e voltando da floresta pela planície fluvial ao mar eterno”, é, na verdade, “o grande acontecimento que domina a imagem da Amazônia, a sua vida e o seu caráter”.

A maioria dos varzeiros observa com espanto – e também com certa malícia – o súbito interesse que as enchentes provoca em pessoas, desinteressadas pelas várzeas durante o ano inteiro, mas que as “descobrem” quando as águas cobrem as casas e avançam sobre dezenas e dezenas de quilômetros de áreas que são firmes no verão.

Há uma correria nesse pique das cheias: autoridades prometem providências, grupos de trabalho circulam pelo mundo das águas, políticos discursam e os de sempre tiram vantagem disso tudo. Não são os tradicionais moradores das áreas “flageladas”.

Na viagem de 1976 encontrei pessoas aflitas, os problemas se avolumavam, mas ninguém falava em flagelo. As enchentes, de fato, condicionam a vida nos alagados durante quase seis meses, mas os problemas só se tornam graves por falta de previsão e antecipação.

Vi, nessa época, que muitas vezes não há tempo para transferir o gado para terreno seguro: as pastagens na margem do rio ficam rapidamente submersas e os animais têm que ficar abrigados nas “marombas”, currais improvisados de madeira sobre um tablado, onde o gado fica sujeito ao ataque de outros bichos, como as cobras, à febre aftosa e à desnutrição. Mesmo quando sobrevive, perde muito peso.

As poucas culturas agrícolas que são desenvolvidas na várzea, apesar de sua grande fertilidade, como a juta, o arroz, a melancia ou o tomate, são também afetadas. Elas devem ter um ciclo de até 120 dias para que possam ser colhidas antes das grandes águas.

O homem é também acometido de doenças (principal gripe e tifo) e sua moradia é destruída ou avariada pela ação da água, que às vezes atinge ou cobre o teto. Nas cheias normais, é comum que uma família fique confinada durante dois meses a uma pequena área, na cumeeira, dependendo de uma canoa para quebrar o completo isolamento e conseguir algum peixe, que se torna muito difícil nesse período, porque se esconde nos furos, paranás e lagos.

Todos esses inconvenientes são absorvidos porque quando a água baixa a terra está pronta para cultivar e o rio volta a ser o caminho da vida, a ser gratuitamente usufruído. Por que deixar esse paraíso aquático?

Ao fazer as reportagens, tive acesso a um recenseamento feito pela Igreja na várzea de Santarém depois da cheia de 1974, que também foi grande. Pela primeira vez o varzeiro foi ouvido e manifestou suas expectativas e reivindicações sobre a mudança de residência, que era uma das soluções mais apresentadas pelos ditos conhecedores do problema.

Das 986 famílias consultadas, 681 tinham permanecido na várzea durante a enchente, 175 se transferiram para áreas próximas de terra firme a apenas 86 procuraram a cidade de Santarém. Respondendo a outra pergunta, 832 famílias afirmaram que iriam permanecer na várzea e 151, mas não de forma incisiva, manifestaram o desejo de sair.

Precavidas, 137 famílias já possuíam casa em Santarém e 123 também já mantinham uma moradia na terra firme, porém depois da cheia continuam a voltar ao seu terreno. A casa, além de abrigo para os momentos mais críticos, era construída para que os filhos pudessem estudar na capital. A educação não passava ainda pela várzea.

Outro cientista estrangeiro, o alemão Harald Sioli, que esteve várias vezes em Santarém, em 1951 definiu a várzea como a área mais importante para a agricultura no vale amazônico. Previu que nos anos seguintes essa importância seria reconhecida.

Parecia que sua previsão se realizaria quando o milionário norte-americano, contrariando todos os “grandes projetos”, estabeleceu uma área de várzea, em Almeirim, seu audacioso arrozal. Com investimento de 50 milhões de dólares, pretendia produzir 120 mil toneladas de arroz por ano, em duas safras, produzindo cinco toneladas por hectare em cada safra. Mas cometeu erros primários e o projeto acabou falindo.

O Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, com sede em Manaus), realizou experimentos para introduzir novos cultivos na várzea. Um deles foi com a soja. A variedade Júpiter teve produtividade, numa várzea próxima a Manaus, só obtida na Indonésia, a mais alta até então. Mas a soja acabou alcançando a terra-firme amazônica, o lugar menos indicado para ela. Infelizmente, tem sido assim na região: uso errado do local certo. A várzea é um exemplo. Mas, desgraçadamente, não o único.


A imagem que abre este artigo mostra uma vista do centro de Santarém, em 1953 durante a cheia (Foto: Tibor Jablonsky/Acervo IBGE)


Além de colaborar com a agência Amazônia Real, Lúcio Flávio Pinto mantém quatro blogs, que podem ser consultados gratuitamente nos seguintes endereços:

lucioflaviopinto.wordpress.com – acompanhamento sintonizado no dia a dia.

valeqvale.wordpress.com – inteiramente dedicado à maior mineradora do país, dona de Carajás, a maior província mineral do mundo.

amazoniahj.wordpress.com – uma enciclopédia da Amazônia contemporânea, já com centenas de verbetes, num banco de dados único, sem igual.

cabanagem180.wordpress.com – documentos e análises sobre a maior rebelião popular da história do Brasil.

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