Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors
A minha, a sua a nossa história?

A minha, a sua a nossa história?

A Associação Comercial e Empresarial de Santarém e o Conselho da Mulher Empresária fez a entrega da Medalha Mérito Cultural Wilson Dias da Fonseca a quatro personalidades, “que se destacam na arte sacra e tecelagem, comunicação e cultura carnavalesca”. Fui escolhido para receber a medalha por minha atuação jornalística. Foi a primeira vez que as duas entidades, em nome da sociedade santarena, me incluíram na iniciativa. Nasci em Santarém em 1949. Em 1955 me transferi para Belém, com toda família, porque meu pai foi eleito deputado estadual. Mas mantive meus elos com a terra natal. Agradecendo pela lembrança do meu nome, escrevi um texto, lido na ocasião, que reproduzo abaixo.


Minha família é um universo microscópico da história da Amazônia, integrada por migrantes e nativos. Meu avô materno era um português que foi ser guarda-livros (o atual contador) num seringal em Boca do Acre, onde o rio Acre (com 1.190 quilômetros de extensão) se encontra com o Purus (3.590 quilômetros).

Apesar do nome, o município fica no Amazonas. Manaus, a capital, está a mais de mil quilômetros em linha reta de Rio Branco e Boca do Acre a 145 quilômetros da capital acreana. Caso exemplar da irracionalidade na organização territorial centralizada, imposta a partir do topo do poder nacional (um Estado unitário numa federação de perna quebrada), incapaz de compreender e traduzir um espaço gigantesco como o da Amazônia.

José Gomes de Faria chegou ao seringal, um dos maiores dos altos rios, quando a produção de borracha estava em declínio. Casou com a filha do dono do seringal e se mudou para Santarém, onde o irmão mais velho crescia nos negócios ligados ao extrativismo, a atividade econômica predominante na região até os anos 1960. Manuel se tornou um dos homens mais ricos da cidade, que era a terceira mais importante da Amazônia, no meio do caminho entre Belém e Manaus.

Sua esposa morreu e a filha mais nova, minha mãe, com menos de um ano, foi mandada para ser criada por uma família estabelecida no Lago Grande de Franca. Numa paisagem típica da civilização ribeirinha amazônica, ela ficou por lá até os oito anos, convivendo com os animais, correndo pela mata, cujos segredos ia descobrindo, se alimentando de peixe, livre de convenções e regras urbanas. Uma cabocla aculturada, caiada de branco pela miscigenação.

Meu avô paterno era um típico habitante do sertão cearense. Sua mulher também era de São Francisco do Canindé. A seca nordestina e as notícias promissoras sobre a borracha o fizeram migrar por duas vezes para a Amazônia, também para os altos rios do Acre e, depois, para o Acará, uma área de grande tradição no Pará, berço da maioria dos líderes da sangrenta revolta da cabanagem (além dos cearenses), na qual se diz que morreram 20% da população (significaria, hoje, 1,6 milhão de mortos).

Na primeira vez, Raimundo fracassou. Voltou à terra natal. Mas nela não conseguiu mais se fixar. Retornou à Amazônia, desta vez abrindo comércio em Santarém, no bairro pobre da cidade (cidade orgulhosa de sua fisionomia portuguesa), sugestivamente chamado de Aldeia. Foi nesse local que se constituiu a mais importante civilização indígena da Amazônia, dos Tapajó, massacrada e extinta pelo colonizador português.

Filho de cearense como os demais nordestinos, era tratado como  arigó, Meu pai, que nasceu em solo paraense, conseguiu superar os preconceitos, fazer carreira empresarial e política, e se casar com a bela Iraci, de uma das mais influentes famílias locais. Uma das ramificações da família à qual minha mãe se incorporou, através da irmã mais velha, tinha raízes em um dos dois barões santarenos.

Não narro em resumo essa história por narcisismo ou pretendendo cobrir de lantejoulas minha ascendência. A consulta que tenho feito a fontes escritas, fotografias, mapas e noticiário da imprensa foram me conduzindo, do microcosmo familiar a uma constatação mais ampla e também desoladora, parcela de um universo caleidoscópico, como a Amazônia, está desaparecendo.

Embarcando no satélite do Google Earth, fui a Boca do Acre, Lábrea, aos rios Purus e Acre, a Santarém, à bacia do rio Arapiuns, do Tapajós, ao médio e alto Xingu. Busquei informações atualizadas sobre cada um desses locais. A conclusão: o processo de destruição da Amazônia nesses pontos cada vez mais a oeste e ao norte é o mesmo das partes a leste e ao sul: a devastação terrível dos vales do Araguaia, Tocantins e Xingu, do lado direito do rio Amazonas, com intrusões crescentes sobre os afluentes da margem esquerda.

O que mais se fala nesses locais é de grilagem de terras, desmatamento ilegal, trabalho escravo, crimes de encomenda, violência, brutalidade. Colocando abaixo a floresta, abrindo estradas que permitem a ocupação desordenada e caótica das suas margens, expandindo as frentes pioneiras numa velocidade muito superior à do aparato estatal, o que impede a vigência das leis e o respeito ao ser humano, bloqueando as verbas públicas, que possibilitariam conhecer melhor a maior reserva natural do planeta antes de explorá-la, a expansão da atividade econômica é a decretação do fim da Amazônia, tal como ela é, tal como nela viveram meus antepassados vindos de fora ou nascidos em seu ventre fecundo. A Amazônia está virando sertão.

Em 1953, o governo federal decidiu que essa imensa combinação de água, vegetação e luz tinha que ser incorporada à máquina de produção do país. Para realizar a tarefa, criou o primeiro órgão de planejamento regional do Brasil, a SPVEA (Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia), depois substituída pela Sudam. A Amazônia cresceu quantitativamente como nunca. Para se distanciar do que era e se tornar o que o poder central quer que seja.

Coincidentemente, nesse mesmo ano foi lançada a edição em língua portuguesa Uma comunidade amazônica –Estudo do Homem nos Trópicos, do antropólogo norte-americano Charles Wagley, que viveu no Pará. Seu livro é um dos clássicos da antropologia e da bibliografia amazônica. Com a sabedoria que uma longa convivência com os mais antigos moradores da Amazônia, estabelecidos nas margens dos rios, em secular processo de acomodação, Wagley observou, quase 80 anos atrás:
“Uma nova sociedade não pode nascer do nada; deve ser construída a partir de antecedentes históricos.

A nova sociedade que o Brasil pretende criar na Amazônia terá por base o conhecimento que o povo dessa região acumulou durante séculos, dos tempos aborígenes ao presente”. Acrescentou que essa “é uma herança rica que jamais deverá ser ignorada na moderna conquista da Amazônia”.

Lamentavelmente, a conquista da Amazônia é uma atualização ampliada e piorada do passado colonial, que ignora a herança da história. Seus habitantes, nós temos o dever de defender essa história. Como garante um velho ditado: ela é do homem e o bicho não come.


A imagem que abre este artigo é de autoria de Charles Wagley (Universidade da Flórida) e mostra Cecília Roxo Wagley: mulher e menino posam no cais perto do barco “Marcolno Candau” (Gurupá, Pará, 1942).


O post A minha, a sua a nossa história? apareceu primeiro em Amazônia Real.

As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
Ver post do Autor

Postes Recentes