A doninha é um bicho meio alienígena para os brasileiros: familiar por ser relativamente comum na cultura pop, estamos mais acostumados com as versões europeias e norte-americanas desses animais, sobretudo em suas alvas pelagens de inverno. O que poucos sabem é que o Brasil tem uma doninha pra chamar de sua: a doninha africana.
Isso mesmo, a nossa doninha, a doninha-amazônica, está eternamente associada ao continente africano por um erro cometido durante sua identificação formal. A espécie foi descrita em 1818 no Museu de História Natural de Paris pelo cientista A. G. Desmaret. Ao descrever uma doninha desconhecida, o holótipo (o espécime em que a descrição formal de uma espécie se baseia) que definiu era um indivíduo com uma misteriosa etiqueta indicando “Afrique” como sua procedência.
Notando a similaridade do novo animal com as doninhas europeias (do gênero Mustela), Desmaret cunhou o nome Mustela africana. Foi depois de décadas que o erro foi notado e a origem do holótipo corretamente identificada como “‘los arrabales de Belem, la antigua Pará”. Então a tal “doninha da África” nada mais era do que uma doninha-amazônica de Belém do Pará! Mais detalhes sobre esse evento podem ser lidos aqui e aqui.
Mais interessante que essa confusão taxonômica, no entanto, é a biologia da doninha-amazônica. Ou melhor, o fato de que não sabemos praticamente nada sobre essa espécie, uma história de quase 200 anos de inércia científica com um plot twist em 2024 graças à ciência cidadã. Mas antes de chegar lá, vamos começar do básico e responder à pergunta primária: o que é uma doninha?
Doninhas são mamíferos da ordem Carnivora (que inclui animais como gatos, cães, ursos, focas e quatis) e membros da família dos mustelídeos (formalmente Mustelidae, um grupo ao qual fazem parte texugos, iraras, lontras e furões). Mustelídeos são, de maneira geral, rebaixados: possuem corpo longo e patas curtas, como um cachorro salsicha. As doninhas levaram essas características “mustelísticas” ao extremo, sendo notoriamente compridas e, sobretudo, pequenas.
Não se engane pela carinha fofa: todas as doninhas são predadores extremamente especializados, donos de uma mordida fortíssima para um animal de seu tamanho e capazes de predar animais muito maiores do que elas mesmas. A pequena doninha-anã (Mustela nivalis) do Hemisfério Norte pode pesar o mesmo que um pardal, mas é capaz de matar coelhos com até 10 vezes o seu próprio tamanho, atacando estrategicamente o pescoço ou a nuca da presa na tentativa de esmagar o crânio ou deslocar as vértebras cervicais com sua possante mordida.
Sua agilidade também chega a parecer quase sobrenatural: valendo-se de seu tamanho e estrutura física única, elas são aptas a perseguir suas presas em tocas debaixo da terra, na neve, no meio da relva, dentro de troncos, entre rochas e sobre árvores. Em resumo, agradeça por elas serem pequenas!
A maioria das doninhas pertencem ao tradicional gênero Mustela, ao qual nossa própria doninha-amazônica foi originalmente incluída. No entanto, estudos recentes mostraram que uma linhagem de doninhas americanas forma um grupo tão distinto a ponto de ser realocada para seu próprio gênero, Neogale.
A essa linhagem estão inclusas quatro espécies: o vison-americano (N. vison), restrito à América do Norte; a doninha-de-cauda-longa (N. frenata), que ocorre do Canadá à Bolívia, a pequena doninha-colombiana (N. felipei), raríssima e restrita aos Andes da Colômbia e Equador, e nossa querida doninha-amazônica (agora rebatizada Neogale africana).
Se você considerar tudo o que foi publicado cientificamente sobre a doninha-amazônica nos últimos 206 anos, vai perceber que nosso conhecimento é bem limitado. Muito do que se sabe sobre a espécie é baseado em informações obtidas de indivíduos em museus, como sua pelagem estilosa (marrom escura com o “queixo”, garganta e barrigas mais claro e uma linha marrom correndo bem no meio do ventre), que poucos espécimes foram coletados (cerca de 30, uma contagem de 2014 sem muita esperança de ter aumentado), que foram avistadas em apenas 24 localidades e que quase tudo a respeito de seu comportamento é especulativo, para dizer o mínimo.
Especula-se que a doninha-amazônica seja uma especialista em roedores (porque outras doninhas de porte similar o são). Especula-se que ela vive em florestas primárias e próximas a áreas úmidas (porque foram capturadas ou avistadas nesses locais). Especula-se que seja diurna e possivelmente gregária (porque, certa feita, um grupo de quatro indivíduos foi visto ativo às 10 da manhã). Especula-se que ela nade e/ou escale bem (porque seus pezinhos são pelados e possuem membranas interdigitais, características comuns tanto a mustelídeos arborícolas quanto aquáticos) e que se abrigue no oco de árvores (porque sim).
Mesmo ao considerar que essa espécie seja uma das maiores doninhas do mundo (com quase 60 cm de comprimento corpo-cauda), ainda é um animal pequeno e serelepe. Parte da dificuldade de estudar a doninha-amazônica se deve ao seu comportamento tipicamente arisco, ao pouco que sabemos sobre seus hábitos e à sua associação a florestas bem preservadas e de difícil acesso da Bacia Amazônica. Sim, aparentemente o bicho está distribuído por quase toda a extensão da floresta ao sul do Rio Amazonas, mas isso não aumenta as chances de pesquisadores encontrá-las por aí valendo-se apenas de esforço amostral e força de vontade.
Mas detalhe: você não precisa ser um pesquisador para procurar bichos. E, às vezes, nem é preciso procurá-los, eles te encontram primeiro. É o que aconteceu com a doninha-colombiana. Ainda mais rara que sua xará doninha-amazônica, ela é considerada a mais misteriosa espécie sul-americana de Carnivora. Descrita apenas em 1978, por décadas não tivemos registros dessa espécie em vida. Até que, em 2011, um arquiteto colombiano encontrou um animal misterioso em cima de sua privada. Ele fotografou o inusitado visitante e fez o upload das imagens no site iNaturalist, conhecida comunidade de ciência cidadã. E não é que, para a alegria geral, o bichinho se provou uma doninha-colombiana? Foi o primeiro registro da espécie viva!
Considerando a facilidade de acesso à informação atual, iniciativas de ciência cidadã podem ser de grande valia para expandirmos nosso conhecimento sobre espécies de difícil estudo. Em 2011 foi a vez da doninha-colombiana; em 2024, a estrela foi ninguém mais, ninguém menos que nossa doninha-amazônica!
A imagem (à direita) acima é um print de uma filmagem feita por um fazendeiro no norte da Bolívia e representa o primeiro vídeo da espécie! Dada a localização da fazenda, o registro quebrou recordes sobre nosso conhecimento da distribuição da doninha-amazônica: agora sabemos que ela existe ainda mais ao sul, em altitudes de até 1400 metros e em áreas de floresta de yungas.
Assim, após mais de 200 anos, a história científica da doninha-amazônica vem ganhando mais detalhes graças ao esforço combinado de naturalistas, sejam eles profissionais ou não, e aos potenciais tecnológicos e de comunicação do séc. XXI. Tal qual no caso da doninha-colombiana, foi graças a uma iniciativa de ciência cidadã que hoje podemos vislumbrar a nível global este que é o mamífero predador mais enigmático do Brasil, quiçá da América do Sul. Um lembrete de como nosso continente ainda guarda inúmeras surpresas biológicas e um brinde à ciência cidadã, cada vez mais presente na construção do nosso entendimento do mundo.
Leia mais:
Bernal-Hoverud, N., Morales-Moreno, D., Quispe, E. E., Rojas, J., Torrico, O., Wallace, R. B., & Salazar-Bravo, J. (2024). First record of Neogale africana (Desmarest, 1818), Amazon Weasel (Carnivora, Mustelidae), in Bolivia. Check List, 20(3), 828-832.
Göldi, E. A. (1897). Ein erstes authentisches Exemplar eines echten Wiesels aus Brasilien. Zool. Jahrb., Abt. f. systematik, geogr. u. Biol., 10:556-562, pi. 21.
Lima, L. (2009). Arquivo Z – Mustela africana, a doninha-amazônica. Caapora. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/caapora/2009/08/23/arquivo_z_-_mustela_africana_a/. Acesso em: 04 dez. 2024.,
Lima, L. (2021). A doninha da Amazônia que para sempre será ‘africana’. Terra da Gente. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/terra-da-gente/noticia/2021/06/02/a-doninha-da-amazonia-que-para-sempre-sera-africana.ghtml. Acesso em: 04 dez. 2024.
Macdonald, D. W. (1992). The Velvet Claw: A Natural History of the Carnivores. BCA, 256 pp.
Patterson, B. D., Ramírez-Chaves, H. E., Vilela, J. F., Rodrigues Soares, A. E., & Grewe, F. (2021). On the nomenclature of the American clade of weasels (Carnivora: Mustelidae). Journal of Animal Diversity, 3(2), 1-8.
Ramírez-Chaves, H. E., Arango-Guerra, H. L., & Patterson, B. D. (2014). Mustela africana (Carnivora: Mustelidae). Mammalian Species, 46(917), 110-115.
Rodrigues, L. A. (2013). Avaliação do risco de extinção da doninha-Amazônica Mustela africana (Desmarest, 1818) no Brasil. Biodiversidade Brasileira, 3(1), 191-194.
Wilson, D. E.; Mittermeier, R. A. (2009). Handbook of the Mammals of the World: vol. 1, Carnivores, Lynx Edicions, 727pp.
As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.
As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site O Eco e são de total responsabilidade do autor.
Ver post do Autor