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Carbono: vozes excluídas - Amazônia Real

Carbono: vozes excluídas – Amazônia Real

Empresas privadas foram autorizadas pelo governo do Amazonas a gerar e vender créditos de carbono em unidades de conservação. Na RDS do Rio Negro, os comunitários foram ignorados na fase de discussão para as implementações dos projetos elaborados entre o Estado amazonense e a empresa Future Climate. A pressa em lucrar é tão grande que gerou uma febre nas empresas para fechar acordos com os povos tradicionais, inclusive povos indígenas. Ministério Público Federal, Funai e outros órgãos estão preocupados com acordos que cada Estado da Amazônia Legal está fechando.

Manaus (AM) – Quando entramos nos limites da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Rio Negro, é impossível não se admirar com a quantidade de lagos, praias, igarapés e igapós de águas escuras. O mosaico de 103 mil hectares de fauna e flora, nativas do interflúvio dos rios Negro e Solimões, forma uma terra pública preservada que atravessa os municípios amazonenses de Iranduba, Manacapuru e Novo Airão. Essa região do baixo rio Negro, plena de , é cobiçada pelo avanço do mercado de crédito de carbono na Amazônia. Podia ser uma boa notícia, mas os ribeirinhos da RDS não estão convencidos disso.

A cerca de 78 quilômetros de Manaus, a reserva abriga uma população de 600 ribeirinhos em 19 comunidades tradicionais. As RDS são um tipo de unidade de conservação que não impede a presença de moradores tradicionais. Mas estes, quase sempre, se preocupam com a preservação ambiental. Em agosto, a Amazônia Real percorreu a RDS do Rio Negro para conversar com quem vive nas comunidades. Eles afirmam ter sido excluídos da elaboração do edital e de acordos de carbono feitos pelo governo do Amazonas com empresas privadas. 

“Eu ainda estou bem desinformada, só sei o que ouvi pela televisão”, comenta Marlene Alves da Costa, 65 anos, liderança comunitária e artesã. O tal mercado de carbono que chegou aos ouvidos de Marlene tem sido vendido como uma solução para resolver a crise ambiental e ecológica na Amazônia, que enfrenta o seu pior momento com a aceleração do desmatamento, das queimadas e da crise climática.

Impulsionada pela realização da COP 30 em Belém, no Pará, a discussão do mercado da ”economia verde” e da “bioeconomia” do crédito de carbono está longe de trazer segurança. Ao contrário, as populações locais, que são peça-chave para esse mecanismo de compensação ambiental funcionar, ainda têm muitas dúvidas.

A comunidade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, onde a líder Marlene mora, é a maior da RDS do Rio Negro. Cerca de 85 famílias vivem às margens do Lago do Acajatuba, grande parte composta por aposentados, pescadores e agricultores que viviam ali antes da criação da reserva, em 2008. O lugar é conhecido pelo turismo ecológico, que mantém economicamente a maioria das comunidades. Turistas do e do mundo viajam para a RDS a fim de conhecer a Amazônia, os balneários e as pousadas do local.

Marlene confecciona bijuterias ao lado de 30 mulheres artesãs de outras comunidades. Também ajuda a vender os itens em sua loja. Liderança feminina à frente da economia criativa da reserva, a artesã desconhecia que entre março e abril o governo do Amazonas, por meio da Secretaria de Estado do (Sema), anunciou a aprovação de projetos de geração de créditos de carbono, na modalidade REDD+ (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal), em 21 Unidades de Conservação (UCs) estaduais, incluindo a RDS do Rio Negro.

O projeto REDD+ foi oficializado sob a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima com o objetivo de reduzir as emissões de gases de efeito estufa provenientes do desmatamento e da degradação das florestas. Esses projetos de crédito de carbono devem incentivar a conservação e o manejo sustentável das florestas, além do aumento dos estoques de carbono vegetal.

A execução dos projetos de carbono no Amazonas foi concedida para cinco empresas privadas, entre elas a Future Climate, antes conhecida como Future Carbon. Como intermediadoras, elas vão negociar a venda de créditos no mercado internacional e voluntário a partir de projetos de compensação ambientais realizados nas RDS do Rio Negro e do Juma, no município de Novo Aripuanã.

A realização do edital, lançado em junho de 2023 para contratar as empresas, é motivo de desconfiança dentro da RDS do Rio Negro. Lideranças e moradores garantem que não foram consultados sobre a escolha da empresa, o que viola os termos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que exige consulta prévia, livre e informada para qualquer intervenção em territórios tradicionais.

Um ano depois, em junho de 2024, a Sema anunciou a assinatura de um pré-contrato com a Future Climate para iniciar a fase de consultas prévias, livres e informadas junto às comunidades, nos termos da Convenção 169 da OIT. Mas essas consultas, na verdade, são sobre a implementação das iniciativas de geração de créditos de carbono. Os acordos prévios foram feitos sem consulta às comunidades. Ou seja, para os ribeirinhos, o processo já começou de forma nebulosa.

“Quando vem uma decisão dessa para dentro de uma reserva, os nossos governantes já decidiram sem nos consultar. É muito investimento na nossa Amazônia, mas não lembram que aqui existe gente, que no Amazonas tem também o ribeirinho”, observa Marlene. De acordo com o edital, as empresas só precisam comprovar a realização das consultas na última fase do processo, após o envio das propostas e a aprovação.

Três bilhões de reais

A Future Climate foi fundada em 2021 por Fábio Galindo, ex-presidente do conselho de administração da Aegea, uma das maiores empresas privadas de saneamento do Brasil. É ela quem opera a concessão de distribuição de água e saneamento básico em Manaus. Outras quatro empresas de créditos de carbono concentram os projetos aprovados em unidades no Amazonas: Ecosecurities, Carbonext, Permian Brasil e brCarbon. 

O mercado de crédito de carbono permite que grandes multinacionais poluidoras, como a Amazon, Microsoft, Shell, Meta e Latam, comprem e invistam em projetos para “compensar” suas emissões de gases de efeito estufa (GEE). Elas continuam poluindo o ar, mas financiam iniciativas que mantêm o carbono na Terra. No atual sistema,  essas empresas precisam comprar os créditos das empresas intermediadoras.

De acordo com o governo do Amazonas, os projetos nas RDS do Rio Negro e do Juma podem gerar mais de 3 bilhões de reais em novos créditos de carbono. Metade desses recursos captados deverá ser investida nas unidades de conservação, com foco em atividades que incentivam cadeias produtivas, fortalecem as associações de base comunitárias e melhoram a infraestrutura. Os outros 50% serão direcionados ao Fundo Estadual de Meio Ambiente e Unidades de Conservação (Femucs), para melhorar a gestão ambiental e garantir a financeira do Programa Guardiões da Floresta

Na RDS do Rio Negro, o governo estima que a geração de créditos de carbono pode chegar a 1,1 milhão de tCO2e (toneladas de CO2 equivalente e outros gases de efeito estufa convertidos em CO2) com captação estimada em 132 milhões de reais. 

O edital não especifica o valor que as intermediadoras vão receber para desenvolver os projetos ou se elas terão exclusividade para negociar os créditos gerados. Já a maior preocupação de lideranças como a artesã Marlene Alves é simplesmente saber o que é um projeto de carbono e como ele irá funcionar. 

“Quais são as consequências? Todo progresso traz as duas partes, o bom e o ruim. A gente tem que saber para se prevenir e aprender a viver com isso, porque não dá mais jeito de cancelar nada”, diz ela.

Quase cancelada 

Marlene Alves da Costa, 65 anos, liderança comunitária e artesã (Foto: Alberto César Araújo/ Amazônia Real).

O caminho sem volta imaginado por Marlene e outros comunitários da RDS do Rio Negro não é real, justamente porque todo o processo ainda é questionável. Pelo menos é com esse entendimento que, em agosto, o Ministério Público Federal (MPF) recomendou a  suspensão de todos os projetos de REDD+ no Amazonas até que as comunidades sejam devidamente ouvidas. 

Dois meses antes, a Polícia Federal havia realizado uma operação no sul do Amazonas, onde empresários foram presos por fraudes no mercado de crédito de carbono. A investigação, batizada com um nome sem rodeios, “Greenwashing”, revelou que cerca de 530 mil hectares de terras públicas pertencentes à União foram grilados, com valor estimado em 800 milhões de reais. 

A recomendação do MPF foi enviada ao governador do Amazonas, ao secretário de Meio Ambiente e aos representantes das empresas, instituições,  organizações não-governamentais e certificadoras. O documento enfatizou a necessidade de comprovação científica da eficácia dos projetos de créditos de carbono e REDD+ para a redução dos impactos climáticos. 

O MPF exigiu por meio do documento que fossem realizadas as consultas prévias e informadas, conforme a Convenção 169 da OIT, e a regulamentação adequada que garanta segurança jurídica e a aplicação dos princípios da prevenção e precaução na implementação desses projetos que estão em fase inicial, em andamento ou finalizados.

Em resposta à Amazônia Real, o MPF afirmou que identificou irregularidades e riscos no projeto da Sema nas UCs do Amazonas contempladas pelo edital. Além de não terem sido ouvidas, as lideranças tradicionais relataram atritos ocorrendo dentro das comunidades. Eles preferiam debater esse tema em outro momento, pois agora enfrentam as queimadas e a seca. 

Comunitários endividados

Moradores da Comunidade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, no Lago do Acajatuba (Foto: Alberto César Araújo/ Amazônia Real).

Também há uma denúncia em andamento no 15º Ofício da Procuradoria da República no Amazonas sobre o pagamento das bolsas do programa Guardiões da Floresta, que é feito pela Sema e pela Fundação Amazônia Sustentável. Os pagamentos das bolsas foram suspensos, deixando os comunitários endividados. Foi por causa do programa que eles tiveram de abrir contas bancárias e passaram a enfrentar cobranças de tarifas, mesmo sem receber os valores prometidos. 

A Sema agora diz precisar dos recursos gerados pelos créditos de carbono para retomar os pagamentos. “Ou eles aceitam ou não têm pagamento de Guardiões da Floresta, sendo que o projeto foi idealizado antes do crédito carbono.  Tal argumento é pouco crível, considerando que um projeto de crédito carbono demora muito tempo para ter início e retorno financeiro geralmente”, contradisse o MPF. 

Numa reviravolta desse imbróglio, em setembro, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), concedeu liminar para suspender os efeitos de recomendação do MPF. A justificativa é que os projetos não podem ser suspensos por eles estarem alinhados a um programa mundial desenvolvido pela Convenção Quadro das Nações Unidas, que passou a integrar a política nacional do meio ambiente.

“Como ficam as violações em andamento contra os povos? Não seria mais possível investigá-las no Amazonas? Quem deve decidir isto é o CNMP mesmo ou os procuradores naturais nos Estados designados pela Constituição para tanto?”, questiona o MPF. 

Ainda em agosto, a empresa Future Climate havia emitido um comunicado sobre a recomendação do MPF, assegurando que apoia a participação dos órgãos de controle, como o Ministério Público, “por entender que isto garante maior legitimidade, sendo uma camada importante na construção do pretendido mercado de carbono 2.0, baseado em alta integridade, alta qualidade, transparência e benefícios sociais concretos”.

A Future Climate também afirmou no documento que já estava prevista como requisito do Edital de Chamamento Público Sema/AM no 002/2023 a etapa de consultas às comunidades. A empresa disse que aguardará os desdobramentos dos diálogos entre o Estado e os órgãos de controle e que, de acordo com sua política de “compliance”, só vai iniciar o desenvolvimento dos projetos quando todas as salvaguardas sociais e ambientais estejam devidamente respeitadas, e após uma posição consensual entre os órgãos de Estado.

Procurada pela reportagem da Amazônia Real, a empresa declarou que o projeto REDD+ ainda não teve início na RDS do Rio Negro e que a consulta às comunidades só começará depois do aval do governo do Amazonas. A Future Climate alega que as consultas vão obter o consentimento livre, prévio e informado (CLPI), em conformidade com as diretrizes da Convenção 169 da OIT e os padrões do Verra e requisitos do Climate, Community and Biodiversity Standard (CCB) e do Verified Carbon Standard (VCS).

A Future Climate afirmou que o projeto deve beneficiar as comunidades ribeirinhas com programas de proteção florestal e desenvolvimento, alinhados ao Plano de Gestão das UCs e acordos do CLPI. A empresa afirmou que nenhuma implementação social será realizada sem o consentimento da Sema e das comunidades.

A empresa também garantiu transparência na condução do processo, de acordo com os mecanismos de gestão de conflitos alinhados aos padrões VCS e CCB, além da fiscalização dos recursos pelo Tribunal de Contas do Estado.

Sem transparência

Nonato Carlos da Costa, conhecido como Vicente, presidente da comunidade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro (Foto: Alberto César Araújo/ Amazônia Real).

Viceli Costa, 35 anos, liderança comunitária e presidente da Associação das Comunidades Sustentáveis da RDS do Rio  Negro, reforça que os moradores das 19 comunidades só foram chamados para participar da divulgação do resultado do edital do governo. Eles não souberam da assinatura do pré-acordo em junho. “Construir junto às implementações? Eu, na função de líder, não fui convidado. Ainda não aconteceu nada, está tudo parado e sem informações”, disse Viceli.

Nonato Carlos da Costa, conhecido como Vicente, tem 68 anos e é presidente da comunidade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Ele afirmou que, no geral, os moradores ficaram animados com a possibilidade de o projeto ser desenvolvido na RDS, mas que ainda não houve uma reunião com todas as lideranças para decidir sobre a proposta. “A gente sempre acredita na melhoria não só da nossa comunidade, mas de toda a unidade de conservação.” Vicente aguarda agora pela data da reunião de consulta para oficializar o projeto e “levar o povo para que a gente possa entender realmente o que é isso e para que serve”.

Na comunidade São Francisco do Bujaru, os moradores vivem de auxílios como o Bolsa Família, que paga 684,27 reais, e o Programa Guardiões da Floresta, uma reestruturação do antigo Bolsa Floresta, que pagou por 14 anos aos moradores das unidades de conservação estaduais 50 reais mensais. Na prática, as populações tradicionais que assumirem o compromisso formal do desmatamento ilegal zero e a participação em atividades que promovam a conservação serão recompensadas pelo serviço ambiental prestado. O valor do benefício do Guardiões da Floresta é de 12 parcelas de 100 reais por família.

O governo do Amazonas fez a liberação do lote final do primeiro pagamento do programa em setembro de 2023, retroativo a 12 meses. O governo de Wilson Lima afirma que 8.207 famílias foram beneficiadas com um total de 9,8 milhões de reais. 

Em 2024, 2.992 famílias receberam o pagamento, também referente a 12 meses, totalizando 3,6 milhões de reais. A iniciativa está inserida no Programa Amazonas 2030, para ser financiado a partir da venda de créditos de carbono.

Melhoria das condições

A jovem liderança e ativista ambiental Yane Araújo (Foto: Alberto César Araújo/ Amazônia Real).

Os comunitários de São Francisco do Bujaru trabalham com turismo, serraria de madeira e produtos de agricultura familiar. A presidente da comunidade, Juliane Silva de Oliveira, de 36 anos, afirma que o dinheiro do projeto de crédito de carbono poderia ajudar a construir um posto de saúde, melhorar a infraestrutura de saneamento básico e oferecer empregos aos jovens e mulheres. 

Na seca de 2023, a comunidade, que fica mais no centro da RDS, sofreu com a falta de uma unidade de saúde. “Quando está seco, a gente anda duas horas e meia com uma criança desfalecendo. Não tinha como sair da sua casa para chegar até a cidade”, relembra a liderança.

Oliveira reivindica que uma reunião deveria ter sido feita com todos os líderes das comunidades da RDS do Rio Negro para repassar os detalhes da implementação. “Como que vai ser? Vai ter fiscalização para ver se estão realmente preservando a floresta? O dinheiro vai ser repassado de forma correta? Não tem uma clareza”, comentou.

Na tranquila comunidade 15 de Setembro, onde vivem 55 famílias, o turismo é a maior fonte de recursos. A alta temporada de visitação ocorre entre maio e agosto. Os moradores também vivem de plantações de subsistência, como a mandioca.

A jovem liderança e ativista ambiental Yane Araújo, 25 anos, diz ter dúvidas sobre como os recursos gerados pelos créditos de carbono serão distribuídos e se vão mesmo beneficiar as populações locais. “Será que esse crédito de carbono vai realmente ser investido de forma correta dentro da unidade e para a finalidade do que ele realmente é feito?”, questiona.

A percepção da comunidade de Yane é a de que o mercado do carbono vai alavancar as oportunidades de empreendedorismo. No entanto, a liderança, que nasceu na 15 de Setembro, cobra que a empresa e o governo consultem as 19 comunidades da RDS do Rio Negro, “porque temos uma população que precisa estar por dentro de todas as ações que vão ser feitas, do que vai ser investido, do que vai retirado”, manifesta.

Assédio aos indígenas 

Indígenas do Acre na Aldeia Raimundo Vale (Foto: Paulo Henrique Costa/OPIRJ).

Os projetos de carbono viraram febre nas empresas, que correm para fechar acordos diretamente com os povos tradicionais, inclusive em aldeias indígenas, como as que ocorrem agora junto aos povos Ashaninka e Munduruku. Em abril, diante do crescimento de casos de assédio a comunidades, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) publicou uma nota reforçando orientações para que lideranças indígenas não participem de negociações de crédito de carbono nos territórios.

No ano passado, povos originários e comunidades tradicionais dos estados do Acre, Amazonas, Mato Grosso e Rondônia lançaram um manifesto onde repudiaram os modelos de “economia verde” como o REDD+. “Estes projetos apresentados como ‘verdes’ são modelos de falsas soluções para a crise climática, que desrespeitam os direitos dos povos estabelecidos constitucionalmente e em convenções e declarações internacionais, tais como: o direito de consulta livre, prévia e informada e a autodeterminação dos povos. Estas empresas e governos apresentam uma imagem irreal de como seriam implantados os projetos, para enganar e assediar nossos povos e lideranças a aceitarem como única possibilidade de defesa da natureza”, diz um trecho do manifesto.

Sem regulamentação

Comunidade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, no Lago do Acajatuba (Foto: Alberto César Araújo/ Amazônia Real).

O mercado de carbono foi criado em 1997 como um mecanismo que faz parte do Protocolo de Kyoto, tratado internacional que estabeleceu a redução das emissões de gases de efeito estufa responsáveis pelo aquecimento global. Os créditos de carbono são as cotas de emissão desses gases, que podem ser compradas e vendidas por governos e empresas. 

Cada crédito representa uma tonelada de dióxido de carbono (CO2) que deixou de ser emitida. São duas as modalidades em que este mercado opera: o mercado regulado e o voluntário. O regulado é gerido pelos governos e busca cumprir metas de redução de emissões estabelecidas pelo País. Já o voluntário abrange empresas que compram créditos de carbono para compensar suas emissões ou revender os créditos para outras companhias privadas e países.

No Brasil, o mercado de carbono ainda não é regulamentado. Em outubro de 2023, o Projeto de Lei 412/2022 para realizar a  regulamentação foi aprovado no Senado e seguiu para apreciação na Câmara dos Deputados. 

O modelo adotado pelo governo do Amazonas difere de outros projetos da Amazônia Legal. 

No Acre, optou-se pela criação de uma empresa pública de capital misto para a negociação de créditos de carbono, com a estruturação da CDSA (Companhia de Desenvolvimento de Serviços Ambientais). A Global Environmental foi contratada para a oferta nos mercados nacional e internacional. 

No Tocantins, o governo fez um acordo com a Mercuria Energy Trading S/A, uma empresa suíça de energia, para a comercialização do crédito de carbono no mercado internacional. A ação, que faz parte do Programa REDD+ Jurisdicional do Tocantins, estruturou uma SPE (Sociedade de Propósito Específico) entre a Companhia Imobiliária de Participações, Investimentos e Parcerias (Tocantins Parcerias), o Governo do Estado e a Mercuria. A Tocantins Carbono será responsável por conduzir os processos de certificação e tornar o Estado elegível para geração de créditos de carbono.

Em setembro, o Pará, sede da COP 30 em 2025, divulgou a venda de créditos de carbono para a Coalizão LEAF por 180 milhões de dólares.

Preservação ameaçada

Material de construção entra para a RDS (Foto: Alberto César Araújo/ Amazônia Real).

Cientistas alertam para o risco de as atividades do crédito de carbono intensificarem as outras ameaças que a RDS do Rio Negro enfrenta, como a especulação imobiliária, o desmatamento,  a venda ilegal de terras e a exploração ilegal de madeira. Em 2020, uma operação conjunta de órgãos ambientais do Amazonas desarticulou um grupo criminoso que atuava em ações de desmatamento ilegal dentro da reserva. 

A pesquisadora Aretha Guimarães, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), trabalha há dois anos na reserva e elabora estudos sobre os impactos das mudanças climáticas nas plantas tropicais, com particular interesse nas dinâmicas de carbono da floresta.

Guimarães destaca que um dos riscos identificados nos projetos de crédito de carbono na RDS do Rio Negro pode ser a implementação de um plantio insuficiente em termos de biodiversidade. Na maioria das vezes, os projetos preveem o plantio de seis a dez espécies de árvores, o que, em uma escala amazônica, é completamente insuficiente.

Embora plantas nativas sejam utilizadas nesse processo, dificilmente ela conseguirá refletir a biodiversidade da região, que abriga de 400 a 60 mil espécies. Isso resulta em uma homogeneização do ambiente, comprometendo a ecologia, a fauna e a flora, além de impactar o modo de vida das comunidades locais. A ocorrência das mesmas espécies de árvores em toda a floresta não é um padrão natural da RDS do Rio Negro. 

“A floresta nativa em pé tem outras funções ecológicas para os animais, para as pessoas e para o clima que não são só o sequestro de carbono. Corre o risco de acontecer uma homogeneização daquele ambiente que antes era diverso e isso traz uma série de consequências para o ambiente, como a perda de biodiversidade, a princípio de árvores e de espécies de animais”, explica.

A pesquisadora indica ainda a entrada de uma série de problemas sociais associados com a chegada do desenvolvimento social prometido pelo mercado de carbono, o que pode acarretar situações de ameaça aos ribeirinhos.

“Essas questões estão afetando a biodiversidade e o modo de vida das comunidades tradicionais da RDS. Elas começam a não poder andar com liberdade interagir da mesma forma com a natureza, porque têm medo da entrada ilegal de pessoas”, analisa a pesquisadora.

À reportagem, o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) declarou que a Comissão Nacional de REDD+ (CONAREDD+), presidida pelo MMA, é responsável pela coordenação desta política e está atualizando a Estratégia Nacional para REDD+. O objetivo é estabelecer diretrizes para o desenvolvimento de múltiplas abordagens para esses tipos de projetos,  gerando a mitigação climática e a proteção e garantia de direitos territoriais de povos indígenas e comunidades tradicionais.

Na Secretaria Executiva da CONAREDD+, o MMA declarou estar direcionando as discussões para definir regras e diretrizes para programas jurisdicionais de REDD+ e projetos privados de carbono florestal que sigam a Estratégia Nacional para REDD+ (ENREDD+).

O Ministério explicou que, no nível federal, a estratégia de REDD+ é focada em pagamentos por resultados, que envolvem a cooperação entre países, mas sem acordos comerciais diretos para a venda de créditos de carbono. Ou seja, o governo federal não se envolve diretamente em projetos de mercado de carbono.

As estratégias que envolvem projetos de mercado voluntário de créditos de carbono, como o REDD+, são geridas pelos Estados e outras organizações de maneira independente. Isso significa que cabe aos governos estaduais, como o do Amazonas, implementar e gerenciar seus próprios projetos de REDD+, consulta e os benefícios às comunidades locais. O Ministério atua de forma indireta nesses projetos, deixando a responsabilidade da implementação aos Estados.

“Finanças climáticas”

O governador Wilson Lima assina o pré-contrato para iniciar consultas públicas em áreas de projeto de REDD+ na foto  o secretário de Estado de Meio Ambiente Eduardo Taveira; e os representantes da empresa Future Carbon Holding S.A e os deputados estaduais Adjuto Afonso e Felipe Souza,(Foto: Alex Pazuello/Secom AM /05/06/2024),

O governo do Amazonas defende o projeto como estratégia para a preservação e geração de recursos. O secretário do Meio Ambiente no Amazonas, Eduardo Taveira, afirma que o mercado de crédito de carbono é essencial para as “finanças climáticas” do Estado.

Em maio, o governador Wilson Lima apresentou os projetos à Verra, maior certificadora de créditos de carbono do mundo, em um encontro com representantes do Banco Mundial em Washington, Estados Unidos.

A Secretaria de Estado do Meio Ambiente (Sema) informou à Amazônia Real que o processo de Consentimento Livre, Prévio e Informado (CLPI) será iniciado quando a seca amenizar e os rios voltarem a níveis que possibilitem o tráfego fluvial entre as comunidades. As primeiras reuniões junto às lideranças comunitárias devem ocorrer a partir de novembro na RDS do Rio Negro, com objetivo de mobilizar os moradores para as consultas, previstas para iniciar em fevereiro de 2025. 

O órgão estadual reforçou que todos os moradores que usufruem da RDS do Rio Negro serão incluídos nas consultas públicas, nos termos da Convenção 169 da OIT, observando as peculiaridades e os requisitos normativos e culturais junto aos povos e comunidades tradicionais na área de abrangência. As reuniões terão calendário amplamente divulgado pela Secretaria e com apoio das lideranças e associações de base, “de modo a garantir as salvaguardas socioambientais e a repartição justa de benefícios para as populações tradicionais das localidades em questão”.

O contrato definitivo de implementação só será firmado após o CLPI, com a aprovação e anuência das comunidades em plenária. O órgão ambiental ressaltou que as ações relacionadas a crédito de carbono e REDD+ no Amazonas seguem todas as legislações aplicáveis ao mercado voluntário e jurisdicional, “em uma construção técnica e legal que ocorre desde 2019, sendo feita de forma cuidadosa e criteriosa”.

As comunidades da RDS do Rio Negro, por sua vez, resistem. Para elas, a floresta não é uma mercadoria e a preservação já faz parte de seu cotidiano. A degradação da floresta não apenas acabaria com a economia do turismo ecológico, mas também com a principal fonte de sobrevivência das comunidades ribeirinhas que dependem do ecossistema da RDS.

“A morte da floresta é a morte da nossa vida, a gente vive dentro da floresta e a floresta traz os benefícios para que a gente possa se auto sustentar”, afirma a jovem ativista ribeirinha Yane Araújo, em meio ao sentimento de incerteza e luta que permeia as margens do rio Negro.

Marlene Alves da Costa é esperançosa na nova geração e cobra pela formação dos jovens ribeirinhos da comunidade em cursos, para informar sobre os procedimentos do mercado de crédito de carbono. “Hoje nós temos água, ar bom, mas e no futuro? Minha preocupação é que formem meus filhos e outros jovens para eles adquirirem esse conhecimento e preservarem o futuro dessa reserva.”


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