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ToggleAo analisar alguns frascos contendo uma antiga coleção de pererecas no acervo do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo, o professor da UFRJ, José Pombal Jr., fez uma grande descoberta. Encontrou o segundo exemplar conhecido da perereca-de-fímbrias (Phrynomedusa fimbriata), uma das duas espécies de anfíbios consideradas extintas no Brasil.
“Estava simplesmente verificando os exemplares que tinham de uma outra espécie, P. appendiculata. Em um primeiro momento, achei que poderia ser uma espécie não descrita, nova para a ciência. Com uma comparação detalhada entre os exemplares disponíveis e a literatura, chegamos à conclusão que seria o segundo exemplar de uma espécie considerada extinta. Este achado é muito mais interessante do que uma espécie não descrita. Ficamos muito felizes!”, relatou Pombal Jr. sobre a descoberta.
A antiga coleção de anfíbios pertencia ao zoólogo brasileiro Werner Bokermann (1929-1995), um dos maiores especialistas em anuros do Brasil, e foi incorporada à coleção herpetológica do Museu de Zoologia da USP (MZUSP). Bokermann foi autor de mais de 100 artigos sobre os anuros e descreveu 61 espécies, sendo homenageado com a nomeação de todo um gênero de pererecas – Bokermannohyla – e de espécies icônicas como o soldadinho-do-araripe (Antilophia bokermanni) e o morcego-beija-flor (Lonchophylla bokermanni).
Para confirmar a descoberta, Pombal Jr. uniu-se ao pesquisador Délio Baêta, especialista no grupo ao qual pertence a perereca-de-fímbrias, associado ao CBioClima da Universidade Estadual Paulista e ao Museu Nacional da UFRJ. Eles compararam o animal com o holótipo (espécime a partir do qual é descrita a espécie) e único exemplar conhecido da espécie extinta – uma fêmea coletada pelo naturalista Hermann Luderwaldt em 1898 na região de Paranapiacaba, no município de Santo André-SP – e publicaram o achado.
A descoberta foi muito comemorada pela comunidade científica. Tanto que a capa do volume da revista Ichtyology and Herpetology, onde foi publicado o novo registro da espécie, foi ilustrada por um desenho realista da perereca-de-fímbrias, feito a partir dos espécimes do museu e da descrição original, visto que não existem imagens do animal vivo. Imaginado pela ilustradora Jamie Hefley, o desenho foi fruto do projeto “Extintos: Revelando a Beleza dos Sapos Extintos do Brasil”, uma iniciativa do Projeto DoTS, da California State University, nos Estados Unidos (Cal Poly Humboldt), liderado pelo biólogo brasileiro Pedro Peloso, que foca em ilustrar espécies muito raras ou extintas.
O que mais chamou a atenção dos pesquisadores é que o novo exemplar foi coletado em um local muito distante do primeiro, na região da Serra da Pedra Branca do Araraquara, no Paraná, a cerca de 350 km de distância, o que abre a possibilidade para o encontro da espécie em locais ainda não estudados e acende a esperança de a perereca-de-fímbrias não estar realmente extinta. “Esse registro da espécie fora da única localidade onde era conhecida é uma boa evidência de que essa perereca possa ocorrer em outras matas entre São Paulo e Paraná, como na Serra do Mar”, explica o Dr. Baêta. ((o))eco conversou com o pesquisador para saber mais detalhes sobre a descoberta e as possibilidades de encontro da espécie:
((o))eco: Como foi o encontro do exemplar de P. fimbriata?
Délio Baêta: Este exemplar foi encontrado na coleção herpetológica do Museu de Zoologia (MZUSP) pelo Dr. Pombal Jr. em uma de suas visitas a esta instituição. Infelizmente eu não pude acompanhá-lo, mas estava no Museu Nacional quando ele regressou e brincou: “achei uma coisa bem legal no MZUSP. Se adivinhar o que é, deixo você ver”. Óbvio que não acertei, mas ele me mostrou o exemplar e a princípio foi uma surpresa por se tratar de um registro de Phrynomedusa em uma localidade ainda não conhecida.
Notamos semelhança com a perereca-de-fímbrias (Phrynomedusa fimbriata), porém em um primeiro momento consideramos o exemplar como uma potencial nova espécie para o gênero. Foi uma atitude conservadora, pois a distância entre as duas localidades [Serra do Araraquara e Paranapiacaba, única localidade conhecida para P. fimbriata naquele momento] e a ausência de mais informações sobre a espécie nos impediu de fazer a identificação imediata.
Iniciamos então o estudo taxonômico detalhado do exemplar buscando elucidar a sua identificação. Foi um processo longo e minucioso que incluiu também a busca por mais dados precisos sobre sua procedência, data de coleta e coletor. Isto perdurou até batermos o martelo sobre a identificação como sendo o segundo exemplar da perereca-de-fímbrias. Neste momento ficamos bastante empolgados com a descoberta e com as possibilidades futuras para a espécie.
O exemplar estava sem data de coleta e sem coletor. Seria possível inferir quando foi coletado ou qual era o contexto da coleta?
Infelizmente não podemos estimar com certeza. Antigamente havia o costume da coleta e envio de material biológico a museus e/ou coleções particulares por parte de diversas pessoas. Hoje, buscando preservar nossa biodiversidade, esta é uma prática proibida, sendo a coleta de espécimes e estabelecimento de coleções zoológicas regulamentadas por leis federais e estaduais.
Muitas vezes estes exemplares enviados chegavam ao seu destino sem dados detalhados, como por exemplo o local e data de coleta, nome do coletor, ambiente, etc., e este é o caso deste importantíssimo exemplar onde conhecemos apenas a procedência. Porém, como é um exemplar proveniente da antiga coleção Werner Bokermann – hoje incorporada à coleção do Museu de Zoologia da USP – podemos supor que foi coletado e enviado durante o período em que Bokermann esteve ativo incorporando espécimes em sua coleção.
De acordo com os dados referentes ao antigo número deste exemplar na coleção Bokermann, e cruzando com informações presentes nos seus diários, podemos apenas supor que o espécime tenha sido enviado para Bokermann em algum momento durante as décadas de 50 e 60.
Qual a importância de coleções históricas como as de Bokermann e de coleções com a do MZUSP para as pesquisas sobre biodiversidade?
Pensando no cenário atual das constantes mudanças climáticas que ameaçam a sobrevivência dos ecossistemas e das espécies (o que inclui nós, o Homo sapiens), as coleções históricas possuem uma importância inestimável para as pesquisas sobre Biodiversidade. Por exemplo, elas são um registro histórico de como se encontrava a biodiversidade de uma determinada região em um determinado intervalo de tempo.
Regiões antigamente preservadas que hoje foram substituídas por cidades, plantações, ou simplesmente tiveram a sua vegetação natural removida sem motivo claro. Se hoje estas áreas preservadas não existem mais, como saber quais espécies a ocupavam? Qual época do ano elas eram encontradas? Elas se reproduziam nestes locais ou apenas usavam como ponto de passagem? São inúmeras perguntas…
Outro aspecto interessante é que as coleções são baús de surpresas guardando tesouros que hoje não são mais encontrados na natureza (p.e. considerados extintos, desaparecidos ou com populações reduzidas), como é o caso da perereca-de-fímbrias. Como disse acima, supondo que o segundo espécime tenha sido enviado para o Bokermann em algum momento durante as décadas de 50 e 60, temos um intervalo de tempo de mais de 75 anos onde este indivíduo ficou nas prateleiras de uma coleção, identificado como outra espécie. Imagine então quais surpresas outras coleções históricas como a do Museu Nacional e do Museu Goeldi nos guardam!
Existe alguma esperança de encontrar exemplares vivos da espécie após essa descoberta?
Sim! Temos exemplos de espécies sumidas a mais de 100 anos que foram reencontradas na natureza. Uma rã não é como um elefante, ela pode simplesmente passar sua vida toda no alto de uma árvore e nunca ser encontrada. Apesar de essa descoberta se tratar de um espécime de coleção, sem uma localidade precisa e data de coleta, ainda sou otimista quanto à possibilidade de encontrar espécimes vivos e explico alguns motivos.
Durante a revisão do gênero no qual a perereca-de-fímbrias pertence, nós descrevemos uma nova espécie (Phrynomedusa dryade), encontrada em diversas localidades no estado de São Paulo. Posteriormente, encontramos no sul de São Paulo uma nova população de outra espécie do gênero (Phrynomedusa appendiculata), que não era registrada há mais de 50 anos.
Estes dois registros em áreas que possuem uma ampla cobertura vegetal protegida por Unidades de Conservação, algumas delas historicamente amostradas em relação aos anfíbios, mostram que, apesar dos avanços científicos, ainda sabemos muito pouco sobre a biodiversidade brasileira e a sua distribuição.
Outras perguntas também me deixam otimista, como por exemplo: Porque estas espécies desaparecidas “reapareceram” e uma nova espécie foi descrita? Seriam variações populacionais naturais? Estávamos amostrando em ambientes diferentes do que elas ocorrem? São realmente raras na natureza? Não sabemos ainda…
Estes novos registros trazem uma luz no fim do túnel para responder estas questões, abrindo a possibilidade para realizarmos pesquisas, e assim traçar estratégias para conservação in situ e ex situ, avaliando as ameaças a estas espécies que por natureza são raras e pouco conhecidas. Resta saber se ainda teremos tempo de implementar estas ações frente à grande ameaça ambiental e negativismo científico que permeia nossos dias atuais.
As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site O Eco e são de total responsabilidade do autor.
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