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ToggleUma área delimitada para salvar um macaco da extinção poderá ter obras de infraestrutura, exercícios militares e, no seu entorno imediato, até mineração. As autorizações prévias estão num decreto federal que pode fragilizar a área protegida, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação e o processo de licenciamento.
Uma das unidades de conservação criadas pelo governo federal no último 5 de junho, Dia Mundial do Meio Ambiente, foi o Refúgio de Vida Silvestre do Sauim-de-Coleira, na zona rural de Itacoatiara, no estado do Amazonas.
A medida foi comemorada por pesquisadores e ambientalistas, pois é considerada fundamental para a conservação de um dos macacos mais ameaçados do país. Afinal, a espécie (Saguinus bicolor) só vive numa pequena fração da Amazônia brasileira.
Contudo, o decreto pré-autoriza nos limites do Refúgio a “passagem do projeto gasoduto do Amazonas e as futuras expansões do sistema de transmissão”, a “implantação, operação e manutenção de instalações de transmissão de energia elétrica”, “exercícios programados pelas Forças Armadas” e, ainda, a “exploração mineral” em sua zona de amortecimento.
O texto cita, igualmente, que as atividades serão “licenciadas pelo órgão ambiental competente” e que o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o gestor do Refúgio, será comunicado das atividades pelas Forças Armadas “sempre que possível”.
“Nunca vi nada parecido”, resume Wendell Andrade, mestre em Desenvolvimento pela Universidade Federal do Pará (UFPA), ex-diretor de Gestão e Monitoramento de Unidades de Conservação Estaduais no Pará e especialista em Políticas Públicas no Talanoa, instituto que busca acelerar ações contra a emergência climática.
Doutora em Ciência Política, a coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima (OC), Suely Araújo, analisa que o decreto “antecipa, sem os estudos necessários, tanto o gasoduto quanto linhas de transmissão em uma unidade de proteção integral, voltada à proteção de uma espécie frágil”.
“O órgão ambiental será extremamente pressionado para conceder as licenças previstas no decreto, quando ocorrerão conflitos e provavelmente judicialização”, agrega Suely.
As faixas das zonas de amortecimento são delimitadas posteriormente pelos órgãos ambientais e devem funcionar como cinturões de proteção ao redor das unidades de conservação, com regras de uso para conter impactos negativos e garantir que essas áreas protegidas realmente mantenham a biodiversidade.
Os Refúgios de Vida Silvestre são os menos restritivos a ações humanas dentre as áreas de Proteção Integral listadas na lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) e não exigem a desapropriação de áreas particulares. A norma não cita obras de infraestrutura.
O ICMBio afirma que o decreto de 5 de junho é compatível com os Refúgios da Vida Silvestre. “Os artigos 3°, 4° e 5° elencam atividades que somente serão permitidas sob licenciamento do órgão ambiental competente, procedimento no qual o ICMBio se manifesta tecnicamente de acordo com o caso concreto e legislação que rege a matéria”, afirma a assessoria de imprensa.
O decreto também estabelece que um dos objetivos do Refúgio é “promover a adoção de práticas agrícolas compatíveis com a manutenção” do sauim-de-coleira. Em parte de seus 15,3 mil hectares vivem hoje agricultores familiares e assentados, que ali poderão permanecer se mantiverem usos compatíveis com a conservação da natureza estabelecida pelo refúgio. Da área total, 9.201,93 ha (60%) são de terras já repassadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA).
Outra ação listada no decreto são exercícios militares, que podem incluir desde um grande número de pessoas e de veículos, a tiros de armas com calibres variados e escavações.
“Os exercícios programados pelas Forças Armadas poderão ser realizados nos termos estabelecidos pela legislação. O ICMBio poderá exercer as ações de sua competência quanto às atividades eventualmente previstas, considerando os objetivos de criação da UC”, diz a assessoria de imprensa do órgão ambiental.
Enquanto isso, Wendell Andrade (Talanoa) projeta que, se a criação e implantação do Refúgio do Sauim seguirem como prega o decreto federal, a gestão da área protegida e o SNUC serão duramente prejudicados.
“Se toda norma de criação de unidades de conservação dizer logo de cara o que será permitido em seus limites e sua Zona de Amortecimento, elas em breve não protegerão e não amortecerão mais nada. Isso abre um precedente perigoso”, pondera.
Outra vítima pode ser o processo de licenciamento ambiental, já que, pelo decreto, os empreendimentos têm uma espécie de autorização prévia. “Como fica o trabalho dos analistas? Não podem mais concluir que uma obra não é viável? O licenciamento virou mero carimbo mesmo?”, questiona Andrade.
“Agora os decretos já vêm com ‘limites e garantias’ que não combinam com conservação. Acho que diz muito sobre o Brasil que temos nos últimos anos, mas isso não pode ser naturalizado”, alerta o especialista em Políticas Públicas do Talanoa.
Uma resolução de 2010 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) determina que obras de grande impacto que afetem unidades de conservação ou suas zonas de amortecimento só podem ser licenciadas com sinal verde da administração da área protegida.
Um lar ameaçado
O sauim-de-coleira é um dos primatas com menor área de distribuição no país. Ele vive em apenas 8 mil quilômetros quadrados (km2) nos municípios de Itacoatiara, Rio Preto da Eva e Manaus, todos no Amazonas. A área representa menos de 1% do estado.
O decreto deste 5 de junho amplia para quatro as UCs (Unidades de Conservação) de “proteção integral” no território onde se distribui o primata. As outras três são dois parques municipais e um estadual, com pouco mais de 100 hectares somados e isolados no meio da crescente área urbana de Manaus.
Leia mais: Um refúgio para salvar o sauim-de-coleira
As demais áreas protegidas do sauim são de “uso sustentável”, menos restritivas à ação humana, como as estaduais Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Puranga Conquista e Área de Proteção Ambiental (APA) da Margem Esquerda do Rio Negro.O Refúgio criado quer garantir a conectividade entre outras florestas habitadas pelo macaco, como a Terra Indígena Rio Urubu, onde vive a etnia Mura, e o Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS), do Exército, cujos 100 mil hectares compõem o maior bloco contínuo no habitat do sauim-de-coleira.
Todavia, o desmatamento, queimadas e fragmentação florestal ainda são grandes ameaças ao futuro do macaco amazônico, sobretudo na Região Metropolitana da capital amazonense. Especialistas estimam que a espécie perde 250 km² anuais de floresta.
Essa perda acelerada expõe o sauim-de-coleira a atropelamentos por veículos, choques na rede elétrica e ataques de cães domésticos, principalmente na crescente zona urbana. A espécie é classificada como “Criticamente em Perigo de Extinção” na lista vermelha nacional de espécies ameaçadas.
“É assustador que a gente tenha assistido uma novela como essa de 10 anos para criar essa área para proteger um macaco ameaçado. E a ameaça continua existindo que é a destruição do habitat”, salienta o ambientalista José Pedro de Oliveira Costa, membro da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN).
Com vastas experiência e atuação em entidades conservacionistas e de governos, José Pedro acrescenta que, além dos artigos no decreto, sua principal inquietação “é que se comece a implantação da unidade de conservação, porque a preocupação é de que essa área seja invadida, mesmo com a unidade de conservação ali no papel”.
Horizonte de empreendimentos
A unidade de conservação é delimitada ao norte pela rodovia AM-010, entre Manaus e Itacoatiara, e pelo Linhão de Tucuruí, de onde estruturas menores levam eletricidade a municípios que, antes isolados do Sistema Interligado Nacional (SIN), geravam energia queimando combustíveis fósseis como o óleo diesel. O sistema conecta capitais como Manaus (AM), Boa Vista (RR) e Macapá (AP).À leste da área protegida, uma estrada de terra leva ao distrito rural de Novo Remanso, o maior produtor estadual de abacaxi. No entorno do refúgio também já cruzam ampliações do Gasoduto Coari-Manaus, o Gasoduto do Amazonas, que distribui gás natural pela Amazônia desde a província de Urucu.
Há mais de 10 requerimentos de pesquisa sobre a oferta de minérios dentro e no entorno imediato do Refúgio, de acordo com a base de dados da Agência Nacional de Mineração. Os maiores blocos somam cerca de 78 mil ha para extrair cassiterita, ouro, areia, nióbio, tântalo e sais de potássio. Uma parcela de 9.345 ha, com cerca de 3 mil deles sobrepostos à área protegida, teve pesquisas autorizadas até 2026.
Já a plataforma do Ibama exibe 37 empreendimentos com licenças federais em diferentes estágios nos três municípios amazonenses onde ainda vive o sauim-de-coleira. As obras vão de poços artesianos a linhas para transmissão de energia, de variadas extensões.
Também há licenças para infraestrutura e mineração na área de ocorrência do sauim-de-coleira emitidas pelo Governo do Amazonas, atualmente um entusiasta da extração de potássio, usado em fertilizantes agrícolas. A administração estadual igualmente não atendeu aos pedidos de entrevista de ((o))eco.
Membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT) na Prelazia de Itacoatiara (Amazonas), Jorge Barros alerta que a disseminação de gasodutos, linhões e mineração afeta pessoas, unidades de conservação e terras indígenas e pode amplificar a violência contra comunidades tradicionais na Amazônia.
“Muitas dessas obras são liberadas sem estudos efetivos de seus impactos e sem as devidas compensações aos ambientes e populações atingidas. Assim, o Estado [Poder Público] colabora diretamente para essas violações de direitos”, destaca.
Fontes ouvidas por ((o))eco apontam que o aval para gasodutos, linhões, mineração e exercícios militares teria sido uma exigência do Ministério de Minas e Energia (MME) e das Forças Armadas para dar sinal verde ao Refúgio do Sauim.
“Isso explicita a força do setor de minas e energia no governo e sua visão de eliminar regras ambientais de seu caminho”, diz Suely Araújo, do Observatório do Clima.
O ambientalista José Pedro explica que “essa é uma exigência que passou a existir desde o governo da Dilma Rousseff (2011-2016). Que para criar qualquer unidade de conservação é exigido na Casa Civil o ‘de acordo’ das áreas mais próximas [no governo]”. Governos estaduais também devem aceitar a criação de unidades federais de conservação.
“As tratativas com outros ministérios e com o governo estadual não foram lideradas pelo ICMBio, mas pelo MMA em função das distintas competências definidas em lei”, diz a Assessoria de Imprensa do ICMBio.
As pastas federais de Meio Ambiente, de Minas e Energia e da Defesa não atenderam aos pedidos de entrevista de ((o))eco. O MMA repassou a demanda ao ICMBio. A reportagem será atualizada caso os órgãos públicos respondam.
Contendo danos
A Assessoria de Imprensa do ICMBio afirma à reportagem que o órgão ambiental “está organizando o processo de implantação do Refúgio criado em articulação com as instâncias locais da autarquia”. Ao mesmo tempo, fontes listam medidas para conter eventuais impactos de gasodutos, linhões e mineração no Refúgio do Sauim.
José Pedro de Oliveira Costa admite que os gasodutos não causam grandes interferências na paisagem, já que trata-se de uma estrutura subterrânea que deixa apenas uma faixa descampada na superfície. Entretanto, diante do risco de eventuais acidentes e vazamentos, ele avalia que o ideal seria que o gasoduto pudesse desviar da unidade de conservação. “E há modelos de linhões [de energia] mais elevados, diminuindo os riscos”, como eletrocussão, em animais, aponta o ambientalista.
Biólogo, professor da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e coordenador do Projeto Sauim-de-Coleira, Marcelo Gordo espera que, se as obras forem executadas no Refúgio, sejam cobradas e executadas verdadeiras compensações ambientais para a espécie. O que não estaria ocorrendo.
“O linhão [de Tucuruí] pegou um pedaço da área de distribuição do sauim-de-coleira e não houve nenhuma medida compensatória para o sauim. De um linhão que vai de Manaus até Boa Vista [Roraima], só teve uma medida voltada para a espécie que é o monitoramento do macaco perto de Manaus. Não deram recursos para conservação da espécie, não criaram unidades de conservação, nada”, ressalta o pesquisador.
Nessa linha, o biólogo avalia que as medidas compensatórias por empreendimentos que impactem o refúgio poderiam incluir o aporte de recursos para própria implantação da área protegida, para fiscalização, para aquisição de equipamentos, compra de terras para criar outras UCs – públicas ou privadas –, implantação de passagens de fauna (no caso dos gasodutos) e o apoio a projetos de conservação do sauim-de-coleira.
Além disso, permissões para mineração deveriam ser acompanhadas de Projetos para Recuperação de Áreas Degradadas ou Alteradas, os PRADs, para que as áreas afetadas sejam restauradas com plantas que atendam ao sauim-de-coleira e outras espécies nativas.
“São coisas para mitigar, para diminuir os efeitos que esses empreendimentos podem ter. Essas ações compensatórias devem ser de preferência permanentes, porque o estrago [na área] vai ser permanente”, ressalta Marcelo Gordo.
As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site O Eco e são de total responsabilidade do autor.
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