Índice
Toggle
Da varanda de sua casa de madeira de dois andares, Aurélio Marques olha para o Rio Amazonas, que flui como um fio. O piloto de barco calcula quanto tempo levará para que a maré do Oceano Atlântico chegue ao leito do rio, aumentando o nível da água e permitindo que ele navegue até uma comunidade próxima. “Parece que a natureza está revoltada, com raiva da gente”, diz ele. “Nós vivemos de ler a natureza desde que nascemos, mas não estamos mais conseguindo decifrá-la.”
As mudanças climáticas, aliadas às ações antrópicas no Arquipélago do Bailique, um grupo de ilhas na foz do Rio Amazonas, no Amapá, alteraram o ciclo da água e tornaram a vida cada vez mais árdua nos últimos quatro anos. Os fenômenos naturais estão se tornando mais agressivos e imprevisíveis, e os moradores do Bailique estão agora vivendo o que milhões pessoas de outras partes do mundo provavelmente enfrentarão no futuro.
Ao sul do arquipélago, fazendas de pecuária e represas hidrelétricas desviaram gradualmente o curso de igarapés e afluentes do Rio Amazonas. O aumento da correnteza fluvial está acelerando os deslizamentos de terra, que engolem as casas às margens. Isso também está afetando as ilhas ao norte, onde o rio e seus afluentes estão se tornando mais fracos, em parte devido à terra que está sendo arrastada do sul e deixando os moradores muitas vezes encalhados.
Como resultado, a água do Oceano Atlântico, que está aumentando seu nível, se infiltra nas ilhas vindo do norte. Um fenômeno que ocorre durante um período cada vez mais longo a cada ano, salinizando a água disponível.
Mudanças mais amplas na Amazônia também contribuem para isso. Nas últimas estações chuvosas da floresta tropical, as temperaturas foram mais altas do que o normal, e a Amazônia teve uma das estações secas mais severas em 2023. Foi a pior seca já registrada no Rio Amazonas, o que fez com que o oceano empurrasse o rio ainda mais para dentro do continente.
A principal atividade econômica do arquipélago, o açaí, está se tornando salgado devido à água salobra. Enquanto isso, as palmeiras de açaí estão sendo devoradas por deslizamentos de terra nas margens do rio, em ritmo acelerado.
O governo do Amapá e o município de Macapá, do qual Bailique é distrito, não conseguem mitigar os efeitos das mudanças ambientais que expulsaram parte da população do arquipélago.
No ano passado, as autoridades locais estimaram que cerca de 13 mil pessoas viviam nas oito ilhas do arquipélago, a cerca de 180 km (ou 12 horas de barco) de Macapá. No entanto, o censo de 2023 registrou não mais do que 7.300 pessoas vivendo na região.
“Há muito foco sobre a floresta amazônica em si, mas pouca coisa sobre sua costa, que se estende do estado do Maranhão até a Venezuela, sendo um dos ecossistemas mais dinâmicos do mundo em termos de sensibilidade às mudanças”, disse à Mongabay Valdenira Ferreira, pesquisadora do Instituto de Pesquisas Científicas do Estado do Amapá (IEPA), que há duas décadas pesquisa o Bailique.
“Essa é uma das regiões mais vulneráveis do continente, mas o governo está atuando no escuro. Não há medições ou dados além do superficial para elaborar planos de adaptação a essas mudanças, que estão se tornando cada vez mais comuns a cada ano”, afirma.
Aurélio Marques, o condutor do barco que estava calculando quando a água do mar entraria no leito do rio em frente a Livramento, comunidade fundada por seu pai em meados do século passado, diz que os moradores do Bailique estão divididos sobre o que fazer nesse cenário. Seus filhos foram estudar e trabalhar em Macapá, mas seus pais idosos não querem deixar o local.
No final de 2023, quando a Mongabay visitou a área, Livramento estava isolada do mundo exterior durante algumas horas por dia. Nenhum barco podia entrar ou sair do local por causa da seca do Rio Amazonas, algo que nunca havia acontecido antes — não há estradas de acesso ao arquipélago.
O dilema entre ficar ou ir embora é reforçado pelo recente declínio nas condições de vida. A comunidade de Filadélfia, mais ao norte de Livramento, suportou os últimos sete meses de 2023 sem chuvas “realmente fortes”, como dizem os moradores, necessárias para aguentar um período de rios com águas cada vez mais salgadas.
“A gente aprendeu a pegar a água da chuva e filtrar”, diz Francidalva Farias, moradora de Filadélfia, enquanto mostra uma mangueira improvisada que liga a calha do telhado de sua casa a uma cisterna tapada por um cobertor no quintal. Quase todas as casas do Bailique têm três tanques de água: um com água salgada, que é usada para tomar banho e lavar louça, e dois com água doce, usada para beber e cozinhar.
Segundo Francidalva, “a gente aprendeu a pegar a água da chuva e filtrar”. “Quando a sujeira assenta, a gente passa para a segunda [cisterna], que usamos para beber e cozinhar. A água está cada vez mais salgada. Se não chover, não temos água para beber.”
Caminhando pela sua comunidade, constituída por uma dúzia de casas de madeira esparsas conectadas por passarelas de madeira, Francidalva diz que nunca tinha visto tantas mudanças ao mesmo tempo na região, que agora depende muito de suprimentos externos.
Em dezembro, apenas pequenos barcos conseguiam navegar, durante algumas horas por dia, até chegar à comunidade. Devido ao calor acima da média registrado nos últimos invernos, quando a chuva era escassa, as vespas se tornaram mais agressivas, picando os moradores com mais frequência e se multiplicando mais rapidamente, a ponto de formarem várias colônias na escola da comunidade.
“Ir para a escola está perigoso [por causa das vespas]. E temos que economizar o máximo de água potável que pudermos. Tomamos banho com água salgada, que dá coceira. Nas crianças chega a dar queimadura leve. Usamos ela também para lavar louça e as roupas, que tem que secar logo senão fica com cheiro ruim. O sabão não faz espuma como na água doce, é esquisito”, conta Francidalva.
Algumas famílias conseguem comprar água potável em Macapá, mas outras têm que enfrentar o período de salinização da água — que chega a ser de oito meses por ano no norte do arquipélago — exclusivamente com a água coletada da chuva. Quando ela acaba, eles não têm escolha a não ser beber a água salgada.
“A intrusão de água salgada está ocorrendo ao longo de toda a foz do Rio Amazonas, assim como a erosão costeira”, diz Valdenira Ferreira. “Ambos têm a ver com o aumento do nível do mar e com as mudanças na bacia do Rio Amazonas. Se a descarga de água na foz diminui, o mar avança mais. Se as cargas de sedimentos aumentam ao longo dos rios devido ao desmatamento, por exemplo, mais terra é levada para a foz do Amazonas, o que, por sua vez, aumenta o assoreamento.”
Doenças e negligência governamental
Luiz Velázquez Tito, um médico cubano que trabalhou em sete países antes de se estabelecer no Brasil, relata que diarreia, doenças de pele e parasitas são os problemas de saúde mais comuns no arquipélago.
Tito chegou ao norte das ilhas em meados do ano passado e mora em um quarto de uma casa de madeira, sem eletrodomésticos e nem sequer uma cama. Ele afirma que o governo estadual e a prefeitura de Macapá não lhe ofereceram uma estrutura de saúde adequada ou medicamentos básicos. Tito é o primeiro médico a trabalhar na região Norte em oito anos.
“Me jogaram aqui e foram embora. Não deram nada. Eu trabalho em uma sala que eu tive que improvisar uma cortina como parede para separar os pacientes sendo atendidos, a triagem e aqueles que estão na espera. Já trabalhei em Angola, Venezuela, Haiti, mas aqui é o lugar com mais condições adversas para trabalhar. Nunca tinha visto tantos problemas tão recorrentes assim não, sobretudo por causa da água”, diz.
A salinização das águas do arquipélago já foi um fenômeno raro, restrito ao norte das ilhas, lembram os anciãos que falaram com a Mongabay. Segundo eles, ocorria uma vez a cada poucas décadas, resultado de alguma seca severa no Rio Amazonas.
O desmatamento da floresta, o aumento geral da temperatura na região e o aquecimento dos oceanos tornaram o ciclo de enchentes e secas do maior rio do mundo cada vez mais extremo.
Mas a Companhia de Água e Esgoto do Amapá (Caesa), responsável pela gestão do abastecimento de água do Bailique, começou a lidar com a salinização periódica do arquipélago somente em 2023, quando instalou usinas de dessalinização na principal comunidade, a Vila Progresso. Desenvolvidas para um ambiente diferente, elas não funcionaram devido ao nível de salinidade e sedimentos da água do Bailique, maior do que as máquinas eram capazes de filtrar.
De acordo com a empresa, um estudo está sendo realizado para medir o nível atual de salinização e resíduos. Espera-se que novas plantas, mais adequadas às condições locais, sejam instaladas em várias comunidades até o final do ano.
Enquanto isso, a Prefeitura de Macapá passou o segundo semestre de 2023 enviando água potável da capital em barcos ou em garrafas plásticas após declarar estado de emergência no arquipélago — o que permite que os funcionários públicos adquiram serviços e bens com menos burocracia e controle de gastos, entre outras coisas.
Algumas famílias do Bailique receberam apenas um pacote com seis garrafas de 1,5 litro, pois os barcos ficaram encalhados nas margens dos rios devido à seca.
O governo estadual e o prefeito de Macapá foram questionados pela Mongabay sobre o abastecimento de água, o abandono das instalações de saúde e se eles têm planos para mitigar os efeitos das mudanças no meio ambiente do arquipélago, mas não houve resposta.
Valdenira Ferreira e outros especialistas do IEPA estão aguardando financiamento do Governo Federal para realizar uma medição contínua da salinização e erosão do Bailique. O recurso foi prometido em julho de 2023 pelo Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional, liderado por Waldez Góes, que foi governador do Amapá por quatro mandatos.
“Até o momento, não recebemos nenhuma resposta [sobre quando o governo enviará os recursos]. Precisamos de financiamento para pesquisa, porque as políticas atuais para o Bailique estão sendo feitas sem medições precisas e contínuas. Tudo está sendo feito dentro de um quadro de emergência, mas o que estamos vendo é que esses fenômenos não desaparecerão nos próximos anos. Muito pelo contrário, na verdade”, diz Valdenira.
Ao sul: terras caindo, casas engolidas
Como outros moradores, Erielson Pereira dos Santos não depende da ajuda do governo para sobreviver. Ele vive com sua família em uma casa às margens do Rio Amazonas, na parte sul do arquipélago. Há cerca de uma década, ele começou a manejar de forma sustentável as palmeiras de açaí em suas terras.
Há quatro anos, no entanto, a margem do rio começou a cair com frequência, especialmente durante a estação chuvosa, levando consigo as palmeiras e seu sustento. Assim como Aurélio Marques olha para o rio seco em frente à sua casa, Santos vê sua terra sendo corroída por um rio com uma correnteza mais forte dia após dia.
“Eu tinha 400 metros de açaizeiro plantados, contando da margem do rio até a ilha”, diz ele. “Agora tenho menos de 50 restantes. No próximo ano, todas essas palmeiras de açaí terão desaparecido. E na safra o açaí vai dar salgado ainda por cima, o que antes não acontecia nessa parte da ilha”, diz.
Se a água estiver salgada na época da colheita, as palmeiras de açaí absorvem o sal, alterando o sabor e dificultando a venda da safra. Erielson está plantando mais açaizais o mais longe possível da margem do rio, na esperança de que o fenômeno dos deslizamentos de terra diminua sua intensidade nos próximos anos. Caso contrário, ele planeja partir para Macapá com sua família.
Alguns institutos e universidades da região estão tentando monitorar o fenômeno, mas há poucos estudos sobre a escala do que está acontecendo no Bailique. Um relatório de 2018 do IEPA calculou que, em algumas comunidades, a erosão comeu dez metros de terra da margem do rio naquele ano. Erielson estima que o deslizamento de terra anual em seu terreno é quatro vezes maior agora.
A Amazonbai, uma cooperativa de produtores de açaí, tem ajudado os ribeirinhos desde 2017 a gerenciar de forma sustentável a principal atividade econômica do arquipélago. Em 2022, eles abriram uma fábrica de processamento de açaí em Macapá e começaram a vender a polpa de açaí orgânica industrializada para outras partes do Brasil e para os Estados Unidos, Inglaterra e França.
“A gente está preocupado com essas mudanças”, diz Amiraldo Picanço, presidente da Amazonbai. “Sabemos que o nível do oceano vai aumentar e com certeza vai empurrar um pouco mais a água do rio para dentro. Deve haver mais secas e inundações no Rio Amazonas. É um pouco da característica do arquipélago cair um pouco a terra em um lugar e aparecer em outro, mas agora há pressão por todos os lados para que isso aconteça, não apenas da mudança do clima.”
Búfalos e represas, um cenário cada vez pior
A cerca de 30 minutos de barco do arquipélago, a partir da comunidade principal, um grande rio deságua no Amazonas, formando um dos muitos afluentes principais do maior rio do mundo.
É o Rio Araguari, que corre paralelamente ao Rio Amazonas, mais ao norte, e vem sofrendo com o assoreamento. Um boom de fazendas de búfalos que foram poupadas nas margens continentais do Amapá nos últimos anos, além da construção de barragens hidrelétricas no Araguari, prejudicou seu fluxo para o Atlântico, criando um novo curso de água que corre para o Rio Amazonas antes de chegar ao mar.
Há dez anos, o Rio Urucurituba era um pequeno riacho que alimentava o poderoso Amazonas. Atualmente, é um grande e profundo rio marrom que ajuda a acelerar a erosão da terra no sul do arquipélago, de acordo com especialistas e ribeirinhos.
Quanto maior a erosão, mais rapidamente as casas às margens do rio estão caindo. Erielson, por exemplo, já perdeu quatro casas na última década. Um morador de Vila Progresso, com mais de mil habitantes, disse que está morando em sua sexta casa nos últimos oito anos.
À medida que a terra cai, os moradores levam o que podem de suas casas de madeira para mais longe nas ilhas, mas muitas comunidades estão começando a ser encurraladas por fazendas de búfalos de propriedade privada. Alguns vilarejos estão desaparecendo.
“Como você pode investir em sua terra nesta ilha se sabe que pode perder sua casa?”, questiona o piloto de barco Aurélio Marques, avaliando a crescente imprevisibilidade do ambiente no arquipélago das “águas dançantes”, como seus moradores às vezes o chamam. Ele dá outra olhada no rio e calcula que a maré não deve encher o leito do rio em frente a Livramento até o amanhecer. A viagem para a próxima comunidade é adiada para o dia seguinte.
“Fico pensando: Estamos cercados pelo maior rio do mundo, mas temos que trazer água potável da capital ou nos deslocar como nômades”, disse ele. “Vou esperar os próximos anos, mas se continuar assim, vou vender meu barco. Não gostaria de fazê-lo, mas vou ter que partir.”
As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Portal Amazônia e são de total responsabilidade do autor.
Ver post do Autor