Há cerca de 20.000 anos, no final do último ciclo glacial, quando humanos já haviam atravessado o Estreito de Bering e habitavam o continente sul-americano, a temperatura média do planeta era seis graus mais fria e o nível do mar estava 120 metros abaixo do atual. Com o aumento na temperatura, ao longo do Holoceno, praias, estuários e florestas foram gradativamente engolidos pelo mar, com períodos de afogamento muito rápido, de até 6 cm por ano, associados ao derretimento de grandes plataformas de gelo.
Na medida em que o mar avançava sobre as planícies costeiras, parte da topografia da costa foi sendo arrasada pelas ondas, soterrada por sedimentos, ou simplesmente afogada pelo mar. Feições topográficas maiores e constituídas por rochas resistentes foram preservadas, tais como os morros rochosos que hoje são as centenas de ilhas, lajes e parcéis que pontuam a costa entre Santa Catarina e o Espírito Santo.
Atualmente, ilhas com tamanho suficiente para abrigar pequenas porções de Mata Atlântica possuem dezenas, ou talvez centenas, de espécies endêmicas de animais e plantas que evoluíram em isolamento da costa. Dezenas de milhares de aves marinhas utilizam essas ilhas e lajes como local de reprodução, longe dos predadores da costa, e o relevo complexo da sua porção submersa funciona como atrator de organismos marinhos. Boa parte das Unidades de Conservação marinhas do Sudeste brasileiro foi estabelecida nesses ambientes insulares, reminiscências do clima frio de um passado não muito distante e hoje repletas de atributos que justificam atenção especial.
Nos últimos anos, nos dedicamos a estudar outra relíquia do Último Máximo Glacial, menos conhecida do que os morros que viraram ilhas, mas igualmente fascinante e importante. Trata-se das cicatrizes deixadas pelos rios nas planícies costeiras, as quais foram caracterizadas detalhadamente em artigos recém publicados nas revistas científicas Frontiers in Remote Sensing e PLoS ONE.
Apesar de rios ocorrerem ao longo de toda a costa, apenas alguns vales fluviais escavados durante os períodos glaciais restaram preservados, e isso ocorreu especialmente onde a planície costeira era estreita e resultou em incisões profundas próximo das fozes, onde hoje está o talude continental. Nessas áreas, mais afastadas das regiões média e interna da plataforma, a sedimentação não foi intensa a ponto de recobrir os vales. Melhores preservações de vales e outras estruturas típicas de borda de plataforma também estão ligadas a cotas afogadas rapidamente durante pulsos de degelo, hoje entre 45 e 90 m de profundidade, e a locais com maior abundância de bio-mineralizadores, que transformam suas paredes em recifes avermelhados, dado o recobrimento predominante por algas coralináceas com pigmentos vermelhos, adaptadas a condições limítrofes de luz para a fotossíntese. Num ambiente dominado pelo espectro azul da luz, abaixo do qual resta a escuridão, pigmentos vermelhos conferem maior eficiência na utilização da energia solar.
No norte do Espírito Santo, próximo à foz do rio Doce, um conjunto espetacular de pelo menos 5 rios submarinos marca o extremo sul do Banco Abrolhos, numa área que batizamos de Plataforma dos Paleovales. Como os satélites não enxergam o fundo do mar com nitidez, essas feições, conhecidas há gerações pelos pescadores artesanais capixabas, só foram alcançadas pela ciência após a realização de amostragens com sonares. Aliás, vale lembrar que SONAR é uma sigla que diz muito sobre esses instrumentos (“SOund NAvigation and Ranging”). Os sonares, de vários tipos, criam imagens com base na interpretação da velocidade e da energia com a qual ondas acústicas lançadas contra o fundo retornam à origem, emulando o aparato de ecolocalização que morcegos e golfinhos utilizam para caçar há dezenas de milhões de anos.
As imagens acústicas obtidas na Plataforma dos Paleovales revelaram os cursos e a morfologia meandrante dos rios submarinos, que chegam a ter 600 m de largura e estão surpreendentemente bem preservados entre 30 e 80 m de profundidade, guardando semelhança notável com os rios Piraquê-Açú e Piraquê-Mirim, que desaguam no litoral adjacente e representam um dos estuários mais bem preservados do norte capixaba (FIGURA 1).
Uma vez que os paleovales estavam localizados e mapeados, o próximo desafio da nossa pesquisa foi amostrá-los em escalas mais finas e em profundidades além dos limites do mergulho convencional, utilizando uma abordagem “multi-proxy”, ou seja, com diferentes tipos de instrumentos. As ferramentas mais essenciais foram equipamentos de mergulho que empregam misturas de gases com alta concentração de hélio e menores concentrações de nitrogênio e oxigênio. Esses últimos gases, embora sejam componentes majoritários do ar, têm que ter suas frações reduzidas na mistura para poderem ser respirados sob alta pressão, abaixo dos 30 m de profundidade.
Os mergulhos com esses aparatos, conhecidos como “rebreathers” (FIGURA 2), nos revelou mais surpresas, dessa vez no campo biológico, uma vez que os paleovales, quando comparados com os bancos de rodolitos adjacentes, agregam uma diversidade muito maior de peixes e outros organismos.
Para registrar a comunidade de peixes, utilizamos câmeras de vídeo lançadas ao fundo em estruturas metálicas atadas à superfície por cabos e boias. Essas câmeras especiais, construídas no nosso laboratório, permitem estimar o tamanho e o peso dos organismos que passam diante delas, tendo sido essenciais para mostrarmos que os vales funcionam como agregadores de biomassa de peixes. A comunidade de peixes que amostramos, com quase 70 espécies, inclui desde garoupas e badejos cobiçados pela pesca até cardumes com milhares de pequenos planctívoros multicoloridos que não ocorrem, ou que são extremamente raros, nos recifes mais rasos. As paredes dos paleovales também revelaram grande profusão de gorgônias e corais-negros que lembram cabos telefônicos espiralados, boa parte típicos das águas mais fundas e frias do talude continental.
A água coletada dentro do vale também foi peculiar, rica em organismos planctônicos característicos do oceano aberto, contrastando com o plâncton dos bancos de rodolitos. Por fim, para fechar um quadro mais holístico sobre os paleovales, os mergulhadores fundearam sensores no seu leito e na planície de rodolitos adjacente, permitindo leituras contínuas das variações na direção, velocidade e características físico-químicas da água, durante vários dias. Essa caracterização revelou que os vales funcionam como canais transversais à Corrente do Brasil, que flui para o sul e domina toda a margem continental do leste do Brasil.
Especificamente, os rios submarinos, que há muito deixaram de escoar água doce para o oceano, continuam funcionando como conduítes de água, mas agora trazem a água fria, densa e rica do talude continental, mais pesada do que a água da superfície do mar, para dentro da plataforma continental. E, junto com essa água mais fria, chegam ovos e larvas de muitas espécies, criando um belo, diverso e enigmático mosaico, do qual ainda conhecemos muito pouco.
Apesar de avanços notáveis no conhecimento sobre a biogeodiversidade marinha brasileira, nossos mares ainda escondem formações gigantescas da mais alta relevância enquanto provedoras de serviços ecossistêmicos e repositórios de biodiversidade com alto potencial biotecnológico. Exemplos recentes incluem os bancos de rodolitos de Abrolhos que, apesar de serem maiores que o estado da Paraíba, foram descritos em 2012, bem como os recifes da Costa Amazônica, descritos apenas em 2016, e que, mesmo assim, permanecem insuficientemente conhecidos. Os rios submarinos se somam a esses achados recentes, os quais revelam o quanto nosso país tem sido negligente com as Ciências do Mar e, como consequência, com o uso sustentável dos recursos do mar.Colocar rios submarinos e outras feições geomorfológicas relíquias do Último Máximo Glacial no mapa da costa brasileira é essencial para o sucesso da recente iniciativa de Planejamento Espacial Marinho (PEM), que promete ser um dos processos mais importantes da Década do Oceano, no sentido de organizar a distribuição espacial e temporal das atividades humanas no mar. No caso da Plataforma dos Paleovales, já parcialmente protegida pela APA Costa das Algas, local com a maior biodiversidade de plantas marinhas do país, o desafio urgente é incorporar essas feições no plano de manejo da Unidade de Conservação e monitorar, mitigar e compensar os efeitos da crescente poluição marinha que assola o norte do Espírito Santo e sul da Bahia.
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