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Gravuras rupestres sob ameaças no rio Negro

Gravuras rupestres sob ameaças no rio Negro

Depredação dos artefatos, garrafas de plástico, restos de comida, entre outros agentes poluidores, deixados por visitantes, causam impactos ao sítio de povos pré-colombianos no sítio arqueológico Lajes. Iphan decide agir e chama a Polícia Federal (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real).


Manaus (AM) – O afloramento rochoso com inúmeras gravuras e desenhos rupestres, a maioria de baixo relevo e gravadas nas pedras por povos  pré-colombianos entre 2.000 e 3.000 a. C no sítio arqueológico e geolégico Ponta das Lajes, localizado na margem esquerda do rio Negro, na zona leste de Manaus, está sob ameaças de depredação e vandalismo pelos visitantes do lugar. 

Como noticiou com exclusividade a agência Amazônia Real, após 13 anos submerso nas águas do rio Negro, o sítio reapareceu com a seca histórica deste ano. Nesta quinta-feira (26), o rio Negro atingiu a marca 12,70 m – o menor em 121 anos da medição realizada pelo Porto de Manaus. Na enchente, o manancial já subiu até 30,02 m, também considerado nível histórico no ano de 2021.

Como as águas do Negro continuam descendo, os afloramentos apontam para uma descoberta inédita no mundo de que o lugar teria sido um ateliê ou oficina de produção de peças como machados, mão de pilão, cunha para partir lenha e outras, segundo  arqueólogo Carlos Augusto da Silva, da Universidade Federal do Amazonas. 

Desde o dia 12 de outubro, a reportagem vem acompanhando um grande movimento de visitantes ao sítio arqueológico Ponta das Lajes. São pescadores amadores, religiosos, famílias de vários bairros da cidade, turistas, que fazem piquenique e deixam na área restos de comida, garrafas de plásticos e de vidro, fazem fogueiras para churrasco, entre outros resíduos. Pneus de borracha de uma obra da prefeitura de Manaus, realizada em 2021, também foram vistos nas águas do rio Negro, um impacto ambiental grave ao sítio milenar. 

No sábado (21), a agência Amazônia Real visitou novamente o sítio arqueológico. No local, que fica no bairro Colônia Antônio Aleixo, estava o motoboy Glafio Lima. Ele se dizia orgulhoso ao mostrar no celular uma fotografia de um pedaço de cerâmica milenar que levou como recordação do sítio. A cerâmica contém um desenho geométrico com traços circulares, diferentes das gravuras das caretas ou carinhas, comuns no Pontal das Lajes.

“Achei interessante a pedra [cerâmica], que tem desenhos e é diferente das outras. Levei para proteger, se eu não tivesse levado, vocês não estariam falando comigo agora”, disse Lima. Perguntado se ele poderia entregar o artefato ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). “Pensei nisso”. 

Veja o vídeo com o motoboy Glafio Lima:

O ambientalista Valter Calheiros, que fotografou as primeiras ocorrências de gravuras rupestres no sítio Lajes durante a seca de 2010 e deste ano também, disse que pedaços de cerâmica, como o encontrado pelo motoboy, foram avistados no barranco, constituído de terra preta (também conhecida como terra preta de índio, é um tipo de solo escuro, fértil e antropogênico de origem pré-colombiana encontrado na região amazônica). “Como o barranco está caindo, esse material (cerâmicas) desce da terra preta e vai se espalhando na praia”, disse, destacando:

“É necessária uma avaliação técnica de emergência por parte do Iphan no local para decidir sobre o resgate do material cerâmico que está na área em que o barranco está caindo”, afirmou Calheiros. 

Já na quarta-feira (25), circularam fotografias e um vídeo nas redes sociais mostrando Otoni Mesquita, historiador e professor aposentado do Curso de Educação Artística da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), fazendo o que ele denominou de “um método de contraste para registro” realizado no dia 24 em uma gravura rupestre encontrada em uma caverna na margem do rio Negro. O registro não teve autorização do Iphan. Procurado pela Amazônia Real, o professor disse que usou caulim para o registro da gravura e depois apagou. Devido à polêmica, ele removeu as fotos e vídeos das postagens que fez em sua página no Instagram. “O método de contraste é utilizado para realçar inscrições em material pétreo pela arqueologia. O caulim é uma espécie de pigmento arenoso da própria beira do rio Negro”, disse Mesquita. 

Nesta quinta (26), ele divulgou uma nota oficial em que esclarece que “recorri aos métodos aprendidos há três décadas na disciplina “Introdução à Arqueologia”, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, e na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)”. “Considerando a raridade do fato histórico, e antevendo que se trate de uma oportunidade rara, procurei recursos técnicos para realizar o registro. Ciente de que se tratava de um procedimento que não causaria risco ou dano, nem constituiria uma agressão ao bem artístico e cultural, eu tinha, portanto, a pretensão de ressaltar os atributos da obra primitiva. Considerava que a mesma se encontra localizada num local de penumbra dentro de uma pequenina caverna nas pedras. Por isso, procurei utilizar um método que evidenciasse o contraste das incisões que definem a face gravada no sentido parietal”, disse Mesquita na nota, da qual a íntegra pode ser lida neste link.

Veja o vídeo de Otoni Mesquita:

O arqueólogo Carlos Augusto da Silva, especialista em Amazônia Central, mais conhecido como Tijolo, se disse chocado com o registro de Otoni Mesquita. Ele disse que qualquer intervenção, mesmo com água, altera totalmente o significado das inscrições.

“Não pode interferir no patrimônio arqueológico sem autorização do Iphan com uma portaria a nível nacional, mesmo que ele seja um artista renomado. Isso é um absurdo no século 21, com a crise que estamos vivendo na seca, e um professor universitário pegar seu instrumento que não tem nada a ver com a arqueologia e faz aquilo! Só um arqueólogo pode dizer o que pode usar, pois tudo interfere no patrimônio arqueológico”, disse.

Segundo Tijolo, nem os arqueólogos usam mais material de pintura como gesso ou caulim para tirar o negativo de uma peça. “Nós desenhamos para deixar a peça como está, se não descaracteriza. O que ele [Otoni] fez foi descaracterizar a feição do registro arqueológico”.

A decisão de Otoni de fazer o registro com caulim teve grande repercussão e inúmeras pessoas questionaram a atitude dele no sítio arqueológico. O jornalista Cley Medeiros disse: “Manaus fez aniversário [no dia 24 de outubro] e um historiador decidiu pintar com “pigmentação natural” a gravura rupestre de 2 mil anos, no rio Negro. Parabéns, Manaus!”. Em outra postagem, o jornalista criticou: “Depois de tirar a foto, a pigmentação é removida. A pergunta que fica é: era mesmo necessário? Isso encoraja mais pessoas a meter a mão em algo que deveria estar sob proteção?”.   

Uýra, indígena artista e arte educadora reconhecida internacionalmente pelo filme “A retomada da floresta”, disse à Amazônia Real que o sitio arqueológico Ponta das Lajes é um patrimônio ancestral dos povos indígenas do rio Negro. “Hoje é um patrimônio cultural tombado. Toda vez que ele surge, com a seca extrema, ele é depredado por diversas vias, um reflexo de que é preciso maior atuação do Iphan do Amazonas. Desta vez, infelizmente, vemos um professor e historiador – ao que tudo indica, sem autorização legal, pintando as gravuras, que são raridades arqueológicas inalteráveis.”

Para a artista, “intervenções como essas, embora temporárias, acabam por estimular que mais gente vá ali e faça o que bem entender com algo ainda pouco conhecido. Imagina se eu pintasse de barro a estátua do Tenreiro Aranha, da Praça da Saudade? Eu poderia responder por um crime ao patrimônio público”, questiona Uýra, destacando: “então o que pedimos é respeito também aos  patrimônios de Memórias Indígenas. Esse é um direito nosso e dever de qualquer cidadão”.

Uýra atribui o que chamou de “toda essa bagunça” à responsabilidade do Iphan, “que precisa cumprir seu dever de salvaguarda do sítio, e produção de conhecimento por pesquisas respeitosas”.

A artista concluiu apelando que “nenhum desrespeito seja mais praticado contra esse território sagrado”. “Ele habita o fundo do rio, é a memória mais antiga da população originária do baixo rio Negro, e precisa ser preservado. Que após as secas, na enchente, esse território não vá mais uma vez triste para o fundo das águas”, disse Uýra.

O historiador Otoni Mesquita explicou, na nota de esclarecimento, como fez o procedimento na gravura rupestre: “foi realizado com um pincel de pelo, aplicando caulim, uma argila natural de coloração branca. Esse é um método que era bastante aplicado em intervenções arqueológicas para ressaltar traços de incisões, quando os pesquisadores fazem registro de sítios com incisões rupestres”.

Devido a repercussão negativa, ele pediu desculpas: “Em momento algum pretendi agredir a obra, ou ferir a memória de nossa ancestralidade.  Peço minhas sinceras desculpas àqueles que, por alguma razão, se sentiram ofendidos com a adoção do meu método de investigação, que está dentro dos pressupostos de formação acadêmica. Agradeço a todos aqueles que foram capazes de ouvir e compreender o fato, e reitero minha justificativa, com o presente esclarecimento”.

Preocupação com o futuro

Inscrições rupestres no Sítio da Ponta das Lajes (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real).

No alto do barranco no qual fica o Mirante Encontro das Águas, obra inacabada da Prefeitura de Manaus que, em 2005, contratou o arquiteto Oscar Niemeyer (1907-2012) para fazer o projeto. Desde o ano de 2021, já na gestão do prefeito bolsonarista David Almeida (Avante), o barranco vem cedendo após uma obra de substituição do acesso de terra batida à praia do rio Negro por uma escada feita com mais de mil pneus de borracha da marca Goodyear. “O barranco está caindo por causa da pressão dos pneus. Já encontramos vários pneus dentro do rio Negro”, disse o ambientalista Valter Calheiros. “Isso é um impacto ambiental gravíssimo para o sítio arqueológico e para as águas do rio”.

Ao lado da obra inacabada do Mirante do Encontro das Águas fica uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) do Centro de Projetos e Estudos Ambientais do Amazonas (Cepeam) da organização japonesa Associação Soka Gakkai Internacional (SGI). Em 2010, o ex-subgerente do Cepeam, engenheiro florestal Akira Tanaka, foi o primeiro a fotografar as gravuras das carinhas com rostos humanos nas pedras do sítio Lajes e encontradas por seis pescadores em 25 de outubro daquele ano.   

Em 21 de outubro, a reportagem encontrou Milton Massayuki Miyahara Fujiyoshi, vice-presidente do Instituto Soka Amazônia, visitando o sítio arqueológico Ponta das Lajes. Ele revelou em entrevista à Amazônia Real que a Prefeitura de Manaus não pediu autorização ao Cepeam para fazer a obra com os pneus, que provocou impacto ambiental na RPPN. “De forma alguma demos autorização [para a obra da escada com pneus no mirante]. Acabou passando um pedaço dentro da RPPN e desde essa instalação nos preocupa porque intensificou a frequência de pessoas na área e fizemos uma cerca para preservar a RPPN”, afirmou.

Fujiyoshi disse que está preocupado com o futuro do patrimônio arqueológico do sítio Lajes, onde estão inúmeras gravuras rupestres. “A gente fica preocupado porque é um patrimônio de todos nós. A nossa RPPN está na frente da praia, na nossa frente. Então, neste sábado (28), com empresas parceiras e o Iphan faremos uma grande ação de limpeza nesta área com a coleta de resíduos na praia e no sítio”, disse.

Veja o vídeo de Milton Fujiyoshi:

O Mirante Encontro das Águas já foi denominado de memorial e fan fest, evento da Fifa para exibição de jogos durante a Copa do Mundo de 2014, no Brasil –  essas ideias nunca saíram do papel. 

Em 2021, quando o barranco cedeu por causa dos pneus, o prefeito David Almeida disse à  imprensa que a obra do Mirante Encontro das Águas “deve custar R$ 35 milhões”. A obra está parada, mas ele mudou o nome do local: “vai se chamar Parque Rosa Almeida”, em homenagem à mãe dele, que morreu em 2020, aos 84 anos.

Procurado pela reportagem para falar sobre as obras com pneus próxima a RPPN do Instituto Soka Amazônia, o Instituto Municipal de Planejamento Urbano (Implurb), da Prefeitura de Manaus, disse, por meio da assessoria de imprensa, que “desconhece qualquer construção neste sentido, inclusive, no dia 28 de agosto passado, foi feita uma reunião técnica para apresentação do projeto ao diretor-presidente do Soka Amazônia, Luciano Gonçalves do Nascimento, e do vice, Milton Massayuki Miyahara Fujiyoshi, e nenhuma situação foi apresentada pelo instituto. Na área de intervenção devidamente licitada para a obra há, inclusive, sobra de terreno de propriedade da prefeitura”.

Sobre o barranco onde fica o mirante Encontro das Águas, o Implurb informou em nota que “no dia 25 de setembro de 2023 a Prefeitura de Manaus assinou a ordem de serviço para a construção do parque Encontro das Águas Rosa Almeida, e as intervenções no local seguem o cronograma previsto, incluindo instalação de canteiro, planejamento, análise arqueológica e operações para que tão logo seja iniciada a construção”.

O Implurb negou risco de acidente no barranco e nas escadas de pneus que dá acesso à praia do rio Negro, na zona leste de Manaus. “O barranco não tem situação de acidente. O que existe no local é um desmoronamento, decorrente da instabilidade do talude, que terá estabilização e recomposição já previstas nas obras de construção do parque. A estrutura existente no entorno, com a escada de pneus, será removida assim que iniciarem as intervenções. A licitação teve como vencedor o consórcio Encontro das Águas, formado pelas empresas F N Crespo Neto e Cia Ltda. e RED Engenharia Ltda. O prazo para construção da obra licitada é de 360 dias, com valor de R$ 79.917.965,96”, finaliza a nota oficial.

A Amazônia Real solicitou por meio do whatsapp a assessoria de imprensa do Instituto Soka Amazônia para repercutir a questão da obra dos pneus próximo a RPPN e pediu uma cópia da documentação em que Milton Fujiyoshi diz que a organização japonesa não autorizou a prefeitura a fazer a construção das escadas. A assessoria disse que “qualquer documento ou informações só poderão ser fornecidas por via oficial”, mas não explicou se era por via judicial ou Lei de Acesso à Informação. A assessoria também disse que Milton não autorizou a publicação de sua entrevista em vídeo. “Reforçando que a gravação com fala do Milton não está autorizada a ser divulgada”, disse a assessora Dulce Moraes, que estava ao lado do vice-presidente quando ele falou com a reportagem no último sábado (21) no sítio arqueológico Ponta da Lajes.   

Em nota à imprensa emitida na noite desta quarta (25), o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) de Brasília decidiu tomar providências contra a depredação no sítio arqueológico Ponta das Lajes. “O Iphan procurou os órgãos competentes para evitar possíveis danos aos bens arqueológicos, especialmente a Polícia Federal, o Batalhão de Polícia Ambiental e a Secretaria Municipal de Segurança Pública. Esta, por sua vez, deverá realizar patrulhas de modo a impedir qualquer dano ao Patrimônio Cultural brasileiro”.

Outras providências, segundo o Iphan, foi a organização de um Plano Emergencial devido à estiagem, incluindo a instalação de um grupo de trabalho para gestão compartilhada do sítio, envolvendo diversos órgãos. “Importante destacar que todos os bens arqueológicos pertencem à União, sendo que a legislação veda qualquer tipo de aproveitamento econômico de artefatos arqueológicos, assim como sua destruição e mutilação. Além disso, para realização de pesquisas de campo e escavações, é preciso o envio prévio de projeto arqueológico ao Iphan, que avaliará e, só então, editará portaria de autorização. Assim, qualquer pesquisa interventiva realizada sem autorização do Iphan é ilegal e passível de punição nos temos da lei”.

Sobre a produção de pesquisa no sítio arqueológico Ponta das Lajes, o Iphan afirma que, atualmente, “está em execução um Plano de Ação cujo objetivo é pesquisar e cadastrar sítios arqueológicos no estado do Amazonas. Com isso, pretende-se produzir conhecimento sobre o Patrimônio Arqueológico da região amazônica, promovendo, ao mesmo tempo, ações educativas que, também, são uma forma de prevenir futuros prejuízos a esses bens”.

Polêmicas e descasos a parte, já se sabe que o sítio Pontas das Lajes é uma raridade. O geólogo Emílio Soares, professor do departamento de Geociências da UFAM, disse que o afloramento tem relevância para os estudos geológicos, paleontológicos e arqueológicos da Amazônia Central, em função da grande extensão em área e espessura aflorante das rochas. “As rochas sedimentares do afloramento de Lajes representam o registro de um antigo sistema fluvial que se implantou na região no período geológico Cretáceo (120 a 65 milhões de anos), sendo representativas da unidade geológica denominada de Formação Alter do Chão da Bacia do Amazonas”, disse o geólogo à Amazônia Real.

Um exemplo de preservação do patrimônio arqueológico e geológico no mundo é em  um dos maiores Núcleos de Arte Rupestre e a nova Rota, que fica em Valença, em Portugal. Lá, foram descobertos 115 afloramentos rochosos, com gravuras. Algumas das gravuras remontam à Idade do Bronze – Ferro (1800 a.C. – 218 a.C.), tendo sido identificadas, catalogadas, fotografadas e decalcadas pelo Serviço Municipal de Arqueologia, no âmbito da Carta Arqueológica Municipal, em parceria com a Unidade de Arqueologia da Universidade do Minho. “Pinturas, gravuras, baixos-relevos… a produção artística na pré- é intensa e está para sempre gravada na pedra”, diz o site de Valença.  (Colaborou Elaíze Farias)

Sítio arqueológico da Ponta das Lajes (Foto cedida por Valter Calheiros).

As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
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