No Brasil, a visão cristalizada sobre a ayahuasca contrasta com o crescente interesse que a bebida de ação psicodélica tem despertado no meio científico. Recém-lançado pela Editora da Unicamp, o livro ‘Visões Multidisciplinares da Ayahuasca’ evidencia o olhar plural dessa produção, que se debruça sobre os componentes, os usos e os potenciais terapêuticos do chá milenar. A coletânea não se restringe à botânica ou à antropologia, áreas que renderam os primeiros estudos sobre a beberagem. Compreende campos tão distintos quanto a psiquiatria, a ecologia, a química e a bioética, atravessando ainda a psicanálise e a comunicação, entre outras disciplinas.
A palavra ayahuasca, originária da língua quechua, é apenas um dos nomes populares dessa decocção desenvolvida por povos amazônicos. Entre seus nomes conhecidos no Brasil, estão nixi pãe, hoasca, santo daime e vegetal. Por aqui, seu preparo mais difundido leva dois ingredientes obrigatórios: as folhas da árvore Psychotria viridis (a chacrona ou rainha) e o lenho do cipó Banisteriopsis caapi (conhecido por mariri, jagube e caapi).
Visões Multidisciplinares da Ayahuasca deriva de um projeto encampado pela Cooperação Interdisciplinar para Pesquisa e Divulgação da Ayahuasca (Icaro, na sigla em inglês), coletivo fundado por Tófoli e sediado no Departamento de Psiquiatria da FCM. O grupo agrega também cientistas de outras instituições do Brasil e do exterior. “Contamos com pesquisadores de lugares como Minas Gerais, Rio Grande do Norte e Nova Zelândia”, cita o docente.
A iniciativa pretende, diz o médico, conectar pessoas que compartilhem o mesmo entendimento multidisciplinar e que possuam interesses científicos comuns. “Essa diversidade envolve várias áreas do conhecimento, abrangendo desde as ciências humanas até quem queira trabalhar laboratorialmente”.
Essa visão fez do coletivo um dos principais expoentes brasileiros da chamada Renascença Psicodélica, movimento global que teve seu ápice na década passada e que pôs fim a um longo embargo às pesquisas com substâncias alucinógenas – como a DMT. “Fomos um dos agentes [dessa transformação]. Já estávamos discutindo e elaborando nossa produção científica quando as coisas começaram a acontecer”, pontua o professor. Exemplo desse pioneirismo: a criação, em 2017, do curso Perspectivas Interdisciplinares da Ayahuasca, voltado sobretudo para estudantes estrangeiros.
Desenvolvido a partir de um processo coletivo, o curso contou com três edições na FCM, entre 2017 e 2019, e outra na Universidade de Tartu, na Estônia (em formato reduzido), no ano de 2022. Antes, porém, serviu de inspiração para um curso de extensão universitária, que recebeu o mesmo nome. Agora em parceria com a Escola de Extensão da Unicamp (Extecamp), essa iniciativa regressou em 2021, portanto durante a pandemia, em versão remota. “Para o Icaro, essa foi uma oportunidade de expandir visões e conhecimentos”, observa o biólogo Luis Valêncio, doutorando do programa de pós-graduação em saúde coletiva da Unicamp.
Segundo Tófoli, a experiência do coletivo no curso de extensão serviu como base para a construção dessa que é a primeira coletânea em livro do grupo. Um projeto capitaneado pela mestre em ciências farmacêuticas Camila Dias, o doutor em saúde mental Lucas Maia, Valêncio e o próprio Tófoli. A esse quarteto coube a organização da coletânea, um total de 13 textos assinados por 18 pesquisadores. Trata-se do primeiro volume acadêmico de fôlego lançado em 22 anos no país sobre a bebida. Mais do que atualizar a bibliografia científica, o conjunto de artigos expõe a complexidade do tema, traçando um panorama amplo a respeito dele, mas sem a pretensão de esgotá-lo. Para a próxima edição, o objetivo é incluir a perspectiva dos povos originários. “Algo a ser contado pelos próprios pesquisadores indígenas que estão estudando a temática”, sublinha Tófoli.
Leitura acessível
O professor da FCM revela a preocupação do grupo com elaborar um livro didático, que pudesse ser utilizado como bibliografia para cursos dedicados às áreas exploradas pelos autores. “Temos material para quem quiser trabalhar o tema a partir das perspectivas da botânica, da antropologia ou da psicanálise. Se alguém fizer um curso sobre medicina psicodélica, temos uma parte específica sobre o chá no campo da saúde.” Embora seja uma obra acadêmica, sua escrita visa não apenas aos pesquisadores, estudantes e profissionais técnicos, mas também ao leitor comum. A fim de ser compreensível para esse público heterogêneo, o livro combinou densidade científica e linguagem acessível.
“Esse cuidado permite, ainda, que um psicanalista seja capaz de entender a parte bioquímica do livro ou que um químico familiarizado com experimentos consiga compreender aspectos abordados na seção de saúde”, complementa o médico.
O livro se divide em três seções temáticas, integrando conteúdos que dialogam entre si. “É preciso entender, primeiro, que a ayahuasca é uma prática social e não seria estudada se não fosse conhecido seu uso humano. Por isso, partimos de um contexto mais amplo, tratando-a como um fenômeno, e vamos afunilando até chegar ao micro, ou seja, ao nível molecular”, sintetiza Maia.
Portanto, o leitor é apresentado à bebida e aos ingredientes utilizados para o seu preparo, conhecendo sua origem, além de seus diferentes usos. Em um capítulo assinado pela antropóloga Sandra Goulart – uma das pioneiras no estudo desse tema no campo das ciências sociais –, o livro trata da criação e da disseminação das religiões ayahuasqueiras (como Santo Daime, União do Vegetal e Barquinha).
O doutor em saúde mental destaca a importância da atuação de Goulart e da antropóloga Beatriz Caiuby Labate, que deu início aos estudos sobre a beberagem nas ciências sociais, como influência e inspiração para a elaboração da coletânea. “Nosso livro é resultado da busca de trazer algo complementar ao que elas fizeram. O livro O Uso Ritual da Ayahuasca, lançado pela Bia Labate em 2002, é referência até hoje no Brasil. Nossa contribuição é atualizar a literatura, pois a situação [do chá] mudou no país”, reconhece o pesquisador. “O objetivo é complementar. Apesar de já ter 20 anos, o livro escrito pela Bia, que fez doutorado na Unicamp, tem leituras que são contemporâneas”, conclui o docente.
Os impactos do aumento do consumo da bebida no Brasil é um assunto discutido, na obra, por Dias e pelo professor Ricardo Monteles, da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Um texto fala sobre as ameaças à diversidade das duas plantas mais utilizadas para a preparação do líquido. “Muitos grupos, religiosos e não religiosos, estão se comprometendo com a ideia de ter uma sustentabilidade na sua matéria-prima. Porém ainda não há conversas muito claras sobre a melhor forma para cultivar a planta. Essa articulação é necessária porque a qualidade da matéria-prima depende da diversidade e da variabilidade genética. Já o cipó tem sofrido uma pressão de extração predatória muito grande. Como as pessoas estão pagando pela bebida, sua extração se tornou o ganha-pão de muitas famílias que vivem nas bordas das matas e conhecem a planta”, afirma a pesquisadora.
Nos centros urbanos, o problema é de outra ordem, descreve Dias. “É possível que estejam consumindo ayahuasca sem o devido rastreamento das matérias-primas”, alerta a bióloga. A falta de informação não se restringe à procedência dos seus ingredientes, como mostra a análise do jornalista Nathan Fernandes sobre o tratamento reservado à beberagem por alguns dos principais veículos de comunicação do país – como a Folha de S.Paulo e o portal G1. Resgatando a construção do discurso da imprensa norte-americana contra as drogas, Fernandes aponta o papel da mídia para sedimentar o estereótipo associado ao chá. “Além de ser um contraponto interessante aos textos mais acadêmicos, esse capítulo importa por mostrar o sensacionalismo e o quanto isso modela a forma como o público vê o assunto”, observa Tófoli.
O uso da bebida em contextos tão variados – como o científico, o religioso e o terapêutico – produz tensões éticas que estão sendo investigadas por Valêncio. No livro, o mestre em psicologia e saúde examina diferentes concepções de bioética para articular um uso seguro da substância. “Antes da Renascença Psicodélica, episódios graves de abuso foram relatados em estudos com prisioneiros de guerra e [em terapias] de ‘cura gay’. Mesmo atualmente há casos do tipo, seja no contexto terapêutico, seja no religioso”, lembra.
Apesar das tensões provocadas quando o uso científico se choca com a medicina tradicional indígena, por exemplo, o pesquisador aponta a existência de diálogos para a construção de uma conduta ética. “Em um dos casos, integrantes de um grupo de pesquisa sobre a ayahuasca foram buscar informações sobre a aparência do chá e qual a dose certa a ser tomada”, relata. Sem se limitar a protocolos e guias, Valêncio busca conceitos éticos diversos, pautados mais no cuidado e nas relações e menos nas regras e normas. O pesquisador reflete ainda sobre a criação de espaços de consumo da beberagem que sejam mais protegidos, nos quais as pessoas possam transitar e refletir a respeito de sua experiência espiritual. “Não podemos ser guiados apenas por essa noção da regra, porque ela falha em muitos sentidos e deixa de fora uma série de valores”.
A segunda seção do livro se concentra em pesquisas que tratam dos potenciais da substância para a psiquiatria e a psicanálise. Um campo em que a produção científica brasileira desponta como protagonista.
Fora do Brasil, a medicina e a psicologia também têm se mostrado campos efervescentes para os pesquisadores interessados em explorar a ayahuasca, sobretudo na Espanha, na Austrália, na Holanda, na Inglaterra e nos Estados Unidos.
Para além das provas sobre a eficácia da bebida ao mitigar sintomas depressivos em pacientes resistentes a outras formas de tratamento, a coletânea destaca estudos que sugerem benefícios da ayahuasca quando se trata da dependência de substâncias e do transtorno de estresse pós-traumático. Há, ainda, resultados indicando uma ação benéfica para pacientes com doenças graves ou terminais. Esses efeitos relacionam-se ao processo de autoanálise (ou autoterapia) propiciado pela ação de psicodélicos. “Pesquisas mostram que muitos se referem à experiência psicodélica como uma terapia de muitos anos dentro de poucas horas”, esclarece o doutor em saúde mental.
Sob a ação dos compostos psicodélicos da decocção, a pessoa consegue observar seus próprios pensamentos e emoções, além de lembrar fatos que aconteceram, encontrando novas explicações para tais eventos. “O potencial transformador dessa ação é muito grande, pois, quando memórias ou traumas reprimidos vêm à tona, existe a oportunidade de ressignificá-los. Trata-se de uma catarse”, resume o pesquisador. Segundo Tófoli, esse efeito pode encontrar aplicações diversas, como ajudar na busca por autoconhecimento.
“A psicoterapia assistida pela ayahuasca ainda é um campo muito pouco explorado e que poderia ser mais estudado”, avalia. A esse potencial de autotransformação, soma-se um efeito classificado como transpessoal, em que pode ocorrer a dissolução do ego. Nesse estágio, a pessoa tem uma experiência de transcendência, na qual se expande para além do seu corpo e do seu ser, passando a se sentir parte do universo.
Para além de seus efeitos sobre a psique, são comuns reações somáticas como náusea, vômito, tontura e diarreia. Nas tradições religiosas, a ocorrência desses eventos costuma ser encarada como parte da ação terapêutica da bebida e não puramente como um efeito colateral de seu consumo. “Muitas vezes, esses episódios estão conectados a conteúdos mentais. A pessoa pode visitar conteúdos desagradáveis, emoções e pensamentos negativos e, por meio desse processo de limpeza, estaria realmente limpando e purificando esses conteúdos”, descreve o doutor em saúde mental.
Embora os estudos sejam promissores, Tófoli adverte que a ayahuasca não deve ser consumida por qualquer um. Seu uso não é indicado para quem teve um ou mais episódios psicóticos ao longo da vida e por pessoas que apresentem histórico pessoal ou familiar de transtornos psicóticos, como a esquizofrenia e o transtorno afetivo bipolar. “Lembrando que a ayahuasca não é uma panaceia. Ela não funciona para todo mundo e não resolve todos os problemas”, conclui.
Se inicialmente o interesse pela beberagem na academia brasileira centrou-se na área das ciências sociais – e se voltou principalmente para o estudo das religiões ayahuasqueiras –, nos últimos 15 anos as áreas da saúde tomaram a dianteira. Esse movimento engloba a química e a biomedicina, além da medicina. “O foco passou a ser aspectos bioquímicos moleculares, processos celulares e o potencial terapêutico para transtornos psiquiátricos”, sintetiza Maia. Essas pesquisas experimentais são tratadas na terceira (e última) seção do livro, que incorpora uma nova área de investigação científica, a metabolômica – dedicada ao estudo do conjunto dos metabólitos, ou moléculas.
Na obra, a neurocientista alemã Isabel Wießner analisa estudos recentes sobre a ação no cérebro das substâncias psicoativas da decocção, destacando a importância dos avanços nas pesquisas e na captura de imagens por meio de aparelhos de ressonância magnética. Seu texto ressalta a ação da DMT e das betacarbolinas em diferentes regiões cerebrais, com destaque para seus efeitos sobre o funcionamento e a produção de neurônios, sua atuação em diferentes pontos da massa encefálica e sua interação com receptores, proteínas e hormônios.
*O conteúdo foi originalmente publicado pelo Jornal da Unicamp, edição 704, com texto de Mariana Garcia
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