Era um dia de outubro de 1790 quando, Maria Felipa, uma reconhecida liderança na região de Cametá (Pará), foi procurada por Artêmia, uma mulher indígena da mesma localidade. Era questão de vida ou morte. Seus filhos haviam sido recrutados pelo governador para as turmas de trabalho obrigatório, prática comum na Amazônia daquele período. Seriam mandados para longe e seu retorno para casa era incerto. Mas as coisas tomaram rumo bem diferente. Juntas, as duas mulheres mobilizaram todas as energias para confrontar os militares que detinham os jovens e conseguiram sua liberdade. Essa história é impressionante e está registrada em documentos históricos do Arquivo Público do Pará.
Importante reconhecer que Artêmia, no meio do mais absoluto desespero com a possibilidade de perder seus filhos, recorreu a Maria Felipa. Certamente porque sabia que podia contar com sua ajuda e com sua capacidade política para resolver um problema dessa dimensão. Esse é um ponto relevante para destacar. Histórias como essa (e são muitas) iluminam as complexas relações construídas entre pessoas para as quais aquela sociedade reservava a subalternidade e o silêncio. Apesar disso, estas pessoas foram capazes de constituir alianças e reforçar suas relações de comunidade na luta permanente por uma vida com dignidade e autonomia. Há muito mais para contar sobre a capacidade de organização das mulheres indígenas e negras na Amazônia; essa é uma história longa que merece ser contada.
Mas eu duvido, leitor/leitora, que você já tivesse lido uma história como essa. E isso é muito estranho porque elas são inúmeras e antigas, mas são desconhecidas. Uma boa pergunta é saber PORQUÊ isso acontece. Uma resposta possível é que o silêncio sobre tais histórias ajuda a desqualificar as lutas desses grupos sociais e étnicos nos dias de hoje. É útil para grupos que estão no poder dizer que “essa gente” não possui habilidade para gerir instituições, não pode estar nas universidades, nos postos de comando e não podem ser considerados em igualdade de condições intelectuais.
Impedir o acesso a esse tipo de experiência histórica também tem efeitos dramáticos nos nossos modos de fazer política hoje e na nossa capacidade de gerar projetos de futuro que garantam nossas existências e que confrontem as estruturas de poder existentes. Isso nos impacta também na medida em que tal desconhecimento pode afetar nossa capacidade de acreditar na eficácia de nossos movimentos políticos no presente. Como historiadora da Amazônia, tenho a obrigação de insistir que pessoas indígenas e negras ocuparam cargos públicos ao longo de toda a trajetória histórica da região. Foram vereadores, religiosos, deputados e gestores em vários setores da vida pública local. São dezenas de exemplos fartamente documentados em vários trabalhos acadêmicos.
Nesse exato momento em Manaus, estamos diante de uma disputa eleitoral onde contamos com uma candidatura de imensa envergadura à câmara de vereadores que é a de Vanda Witoto (Rede de Sustentabilidade). Vanda tem acumulado vasta experiência política ao longo desses anos de militância política em defesa dos direitos dos povos originários e da população vulnerabilizada de nossa cidade.
Não é à toa que saiu da última eleição com uma expressiva votação no Amazonas, quando concorreu a uma vaga para deputada federal. Sua candidatura é a expressão real da longevidade da nossa incrível capacidade de construir coletividades e redes de solidariedade que configuram a possibilidade real de pensar outros futuros.
A construção coletiva é uma marca incontornável da atuação de Vanda Witoto e, com isso, quero reforçar o fato de que tal candidatura não é a expressão apenas de sua vontade pessoal. Trata-se de um amplo processo de atuação política de grande eficácia ao longo de gerações que lhe dá sustentação ancestral. As lutas contra tentativas de desumanização são parte dessa história.
Confrontando o preconceito, estamos diante da oportunidade real e concreta de fazer valer projetos políticos que reafirmem nossas existências com coragem e dignidade, uma luta sem trégua da imensa maioria da população desse país. Isso diz respeito a todos nós.
A imagem que abre este artigo é um retrato de Vanda Witoto feito por Danila Bustamante/Instituto Witoto.
As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
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