A Vale, a terceira maior mineradora do mundo e a maior exportadora de minério de ferro da economia internacional, foi autuada em flagrante, em fevereiro de 2015. O Ministério do trabalho a considerou responsável pelo uso de mão de obra que trabalhava em uma das minas da empresa, na Mina do Pico, em Itabirito, Minas Gerais. A operação de fiscalização do ministério flagrou 309 pessoas trabalhando em condição análoga à de escravo.
Apesar do flagrante, a empresa recorreu à justiça do Trabalho, pedindo a anulação da autuação. Mas perdeu e no último dia 6 ela foi incluída no cadastro de empregadores responsabilizados por crime análogo à escravidão.
Reproduzo a matéria de Leonardo Sakamoto e Isabel Harari, divulgada pelo portal UOL. Ao final, acrescento meu comentário:
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A Vale foi inserida, nesta quinta (6), no cadastro de empregadores responsabilizados por mão de obra análoga à de escravo, conhecido como “lista suja”. O caso envolve uma operação que flagrou 309 pessoas nessas condições, na Mina do Pico, em Itabirito (MG).
O flagrante ocorreu em fevereiro de 2015, mas a empresa questionou na Justiça do Trabalho os autos de infração, pedindo sua anulação. Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, a mineradora perdeu a parte da ação que diz respeito à responsabilização por escravidão e, com isso, foi inserida no cadastro.
Os envolvidos eram motoristas que levavam o minério de ferro pela estrada particular da Vale que liga duas minas no município. Embora fossem empregados por uma empresa subcontratada, a Ouro Verde, os auditores da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Minas Gerais apontaram a Vale como responsável.
Segundo a fiscalização, os trabalhadores eram submetidos a jornadas exaustivas, condições degradantes e foram vítimas de fraude, promessa enganosa e ameaça.
Apesar de a portaria interministerial que prevê a “lista cuja” não obrigar a bloqueios comerciais ou financeiros, ela tem sido usada por empresas e bancos brasileiros e estrangeiros para seu gerenciamento de risco. Isso tornou o instrumento um exemplo global no combate ao trabalho escravo, reconhecido pelas Nações Unidas.
O Conselho Monetário Nacional proibiu, em 2010, a concessão de crédito rural a quem está na lista. E instituições como o Banco do Brasil, a Caixa, o Itaú, o Santander e o BNDES afirmam que a consultam antes de fechar negócios.
Em nota enviada ao UOL, a Vale contestou a inserção e afirmou que adotará as medidas para a exclusão. “Foi proferida decisão judicial em maio de 2024 que reconhece indevida a lavratura de auto de infração em razão da fiscalização ocorrida em 2015, o que torna indevida sua inscrição no cadastro”, diz.
Na época, reportagem de Ana Aranha, da Repórter Brasil, apontou casos como o de um motorista que dirigiu por 23 horas com um intervalo de apenas 40 minutos e outro que trabalhou de 14 de dezembro a 11 de janeiro sem folgas. Os banheiros eram impraticáveis, o que levavam os trabalhadores a fazerem necessidade na estrada. Promessas para quem trabalhasse mais e de forma mais intensa (colocando em risco a sua vida e a de outros) foram feitas e não cumpridas. E quando os trabalhadores passaram a reclamar, foram ameaçados, segundo a fiscalização.
“A Vale repudia toda, e qualquer, forma de desrespeito aos direitos humanos, e às condições indignas de trabalho, e reforça seu compromisso, alinhado com suas políticas, na manutenção de condições dignas para toda sua cadeia produtiva”, afirma a empresa.
Na época da operação, a Ouro Verde emitiu nota dizendo que as irregularidades constatadas na jornada dos trabalhadores seriam “decorrentes de problemas sistêmicos no relógio ponto” e rechaçou a existência de promessas enganosas e ameaças.
Criada em novembro de 2003, a “lista suja” é atualizada semestralmente pelo Ministério do Trabalho e Emprego. Os nomes dos empregadores são incluídos após os autuados exercerem o direito de defesa em duas instâncias na esfera administrativa e lá permanecem por dois anos.
Em setembro de 2020, o Supremo Tribunal Federal reafirmou a constitucionalidade da “lista suja”, por nove votos a zero, ao analisar uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 509, ajuizada pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc).
Trabalho escravo hoje no Brasil
Desde a década de 1940, o Código Penal Brasileiro prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.
De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).
Desde a criação dos grupos especiais de fiscalização móvel, base do sistema de combate à escravidão no país, em maio de 1995, mais de 63,5 mil trabalhadores foram resgatados. Participam desses grupos, além da Inspeção do Trabalho, o Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Federal, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Defensoria Pública da União.
Meu comentário
Em sua defesa, a Vale sustenta que a ação, proposta em fevereiro de 2015, só foi sentenciada nove meses depois, no mês passado. E o julgador reconheceu como indevida a lavratura de auto de infração em razão da fiscalização ter acontecida em 2015, “o que torna indevida sua inscrição no cadastro”.
Nove anos é tempo demasiado para que a justiça se pronuncie sobre litígio com tal envergadura, dizendo respeito a uma forma de exploração do trabalho humano como se a pessoa fosse escrava. O caso exigiria mais presteza do magistrado e do poder judiciário como um todo. A mesma rapidez que a Vale poderia adotar para apurar, por meio de auditoria externa, a veracidade da denúncia feita por agente qualificado do poder público.
A Vale era – e, em parte, ainda é – uma boa empregadora. Mas convive com a exploração e o abuso de mão-de-obra por suas empreiteiras e por serviços que deixou de realizar, privatizando-os, na caça ao lucro, aos dividendos e à valorização das suas ações em bolsas de valores do mundo inteiro.
Mesmo quando tem responsabilidade direta pelos ilícitos e pelo crime de exploração de mão-de-obra, a Vale dificilmente reage colocando a verdade dos fatos acima – e além – da defesa, feita automaticamente, como manifestação de uma cultura viciada.
No fim, quando punida, paga muito mais caro do que pagaria se prevenisse as distorções havidas ou as suas próprias práticas anacrônicas, que não coincidem com a sua vasta propaganda de empresa cidadã.
A imagem que abre este artigo mostra a Mina do Pico, em Itabirito, MG (Foto: Instituto Minere).
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