O sargento-mor Melo Palheta. Foto: Iconografia
Por Júlio Olivar – [email protected]
O arraial de Santo Antônio das Cachoeiras – origem da cidade de Santo Antônio do Rio Madeira, berço de Porto Velho e de Rondônia – quando implantado, em 1728, situava-se em um território indígena, cenário de disputas entre Espanha e Portugal e frequentado por aventureiros de vários países. A presença lusitana na região era minoritária, causando preocupações ao reinado de D. João V, que temia a expansão da colônia espanhola.
Uma das expedições oficiais mais remotas de que se conhece à localidade do Madeira ocorreu em 1723, quando o sargento-mor luso-brasileiro Francisco de Melo Palheta liderou uma missão a mando da Coroa portuguesa. Ele havia deixado Belém em 11 de novembro de 1822 e atingiu o Madeira em fevereiro seguinte. No percurso, à altura da foz deste rio, os expedicionários acamparam em um lugar que, pouco depois, seria transformado numa vida criada por Padre João Sampaio, onde hoje é a cidade de Borba, no estado do Amazonas.
Ante à constatação que aqueles “sertões”, como eram referidos nos relatórios de viagens, constituíam-se em “terras de ninguém”, ferindo interesses de Portugal, surgiu a necessidade de se publicar o alvará-régio de 27 de outubro de 1733 – vigorado durante duas décadas; a medida proibia a navegação de outros países nesta região. Na prática, porém, pouca coisa mudou na hidrografia movimentada e cobiçada. Não havia fortificações e nem anteparos militares capazes de conter os aventureiros.
Nascido em Belém, por volta de 1670, Melo Palheta, foi um militar astuto. Em sua epopeia, narrou fatos interessantes como a existência de um caminho aberto na floresta, próximo do encontro dos rios Madeira com Mamoré, onde um indígena se apresentou como líder dos demais, em número de treze, e, “com arrogância”, se atracou com o indígena que vinha com a expedição; só desistiu de sua fúria ao perceber o poder bélico dos viajantes. Por fim, entraram em entendimento e o chefe recebeu presentes e até foi convidado a se inserir na campanha militar, mas recusou; o originário preferiu declarar paz e permanecer em seu lugar. Em outros pontos a caminho do Guaporé, houve mortes de moradores nativos que tentaram impedir o percurso dos enviados pelo rei.
Há sobre Palheta uma curiosidade: foi o primeiro produtor de café no Brasil, cultura iniciada em 1727 pelo Grão-Pará, na fazenda do próprio explorador que passou a ser conhecido como “O Pai do Café Brasileiro”. As sementes ele teria conseguido clandestinamente durante uma missão na Guiana Francesa.
A saga do sargento-mor foi pesquisada por Capistrano de Abreu (1853/1927), historiador cearense que se dedicou, principalmente, aos estudos acerca da ocupação do território brasileiro na fase da Colônia. Os relatos originais manuscritos por Melo Palheta estão em papéis hoje guardados pela Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, sob o título “Narração da viagem e descobrimento que fez o sargento-mor Francisco de Mello Palheta ao Rio da Madeira e suas vertentes (…)”.
Apesar do pioneirismo de Palheta na navegação no Vale do Madeira, a vila primitiva de Santo Antônio foi fundada e nominada posteriormente, por jesuítas liderados pelo padre João de Sampaio, português de Coimbra, nascido em 1680, membro da Companhia de Jesus e estabelecido, a princípio, em Belém, desde 1710, tendo percorrido toda a região, até o Perú.
Em 1737, a vila contava com cerca de cem moradores, incluindo “índios mansos” da etnia Mura, caboclos e portugueses seguidores de Sampaio. Ao longo das margens do Madeira, foram contabilizadas 32 comunidades de etnias e troncos diversos, com predominância dos Mura; considerados grandes navegadores, eles falavam uma língua isolada até aderirem ao Nheengatu na comunicação com os entrantes.
O interesse de Portugal era convertê-los ao catolicismo e utilizá-los na extração de cacau, como forma de manter a rota ocupada no trajeto entre Belém e a área aurífera de Mato Grosso. Tudo ia bem no processo de exploração, apesar das dificuldades naturais nas relações com os povos tradicionais, com suas raízes milenares na região.
Em 1842, um falso emissário do líder jesuíta Padre Sampaio, aproveitando-se de sua ausência, levou alguns indígenas para serem vendidos como escravos no mercado de Belém. A notícia chegou ao vale do Madeira, desencadeando uma crise sem precedentes.
O episódio foi considerado uma traição ao povo originário. Em resposta, os casebres de palha de Santo Antônio foram incendiados e metade de seus moradores foi morta pelos Mura. Os outros “civilizadores do sertão”, como eram chamados, foram expulsos da região. Embora rotulados de bravios e canibais, na verdade, os indígenas eram as grandes vítimas da ganância dos colonizadores sem escrúpulos que percorriam a região, espalhando todas as mazelas possíveis, de doenças e estupros à escravidão e aos assassinatos.
No mesmo ano de 1842 uma bandeira vinda do Mato Grosso, comandada pelo minerador e comerciante português Manoel Félix de Lima, percorreu os vales dos rios Guaporé, Mamoré e Madeira. Ele estava acompanhado de garimpeiros falidos das minas de Cuiabá – que viveram o apogeu somente entre 1735 e 1739 –, além de indígenas e negros escravizados. Na travessia, ele relatou ter encontrado muitos espanhóis, alemães, húngaros, além dos “temidos índios Mura”.
Ao alcançar Santo Antônio, Félix de Lima constatou que a antiga vila jesuíta estava reduzida a destroços e nenhum morador restara. Em 22 de janeiro do ano seguinte, João Sampaio morreu no Pará, aos 62 anos, coincidindo com o declínio das missões jesuítas no Rio Madeira. Ambos, Sampaio e Félix de Lima, seriam, um século e meio mais tarde, considerados heróis [apesar de os interesses do segundo serem privados] e seus nomes foram dados às principais ruas de Santo Antônio, que sempre renegou sua condição de povoado emergido em território indígena, relegando os moradores ancestrais às margens de todo o desenvolvimento e da própria história oficial.
Em 1748, foi criada a Capitania do Mato Grosso, separada de São Paulo, como medida de proteção das fronteiras contra a Espanha e, assim, o território de Santo Antônio passou a integrar o imenso município de Vila Bela da Santíssima Trindade, a capital mato-grossense, da qual foi emancipado somente em 1908.
Dois anos depois da criação da Capitania, foi assinado o Tratado de Madri, em 1750, ratificando as fronteiras. Em 1759, o estadista português Sebastião José de Carvalho e Melo, o futuro Marquês de Pombal, expulsou os missionários jesuítas do Brasil, acusando a Companhia de Jesus de pretender edificar um estado dentro do estado português e de denunciar as práticas escravagistas patrocinadas pelo governo, resistindo ao poder do rei.
Muito tempo se passou. Vila Bela decaiu economicamente e, assim, Cuiabá passou a ser capital da província do Mato Grosso, em 1835. A instalação efetiva do município de Santo Antônio do Rio Madeira só ocorreu em 1912, com a posse do primeiro prefeito e dos vereadores, ainda na época do 1º Ciclo da Borracha. No mesmo ano, ocorreu a inauguração da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré que, dos seus 366 km de extensão, 559 km ficavam dentro do município de Santo Antônio, que fazia fronteira com a Bolívia pelos rios Mamoré e Guaporé e era o ponto final da linha telegráfica Cuiabá-Santo Antônio, implantado pela Comissão Rondon entre 1907 e 1915. Santo Antônio abarcava um imenso território onde é hoje quase todo o estado rondoniense. Era uma região repleta de seringais.
Em 1945 o município de Santo Antônio já havia perdido a importância com o fim da 2ª Guerra Mundial e a queda na exportações do látex que sustentava sua economia. Assim, foi oficialmente extinto e incorporado a Porto Velho, até então uma pequena cidade do sul do Amazonas, detentora de apenas sete quilômetros da Ferrovia M-M, mas com melhores condições portuárias.
Em 1943 havia sido criado o Território Federal do Guaporé pelo presidente Getúlio Vargas; nome alterado para Território de Rondônia em 1956, e elevado à condição de estado autônomo instalado em 1981.
Sobre o autor
Júlio Olivar é jornalista e escritor, mora em Rondônia, tem livros publicados nos campos da biografia, história e poesia. É membro da Academia Rondoniense de Letras. Apaixonado pela Amazônia e pela memória nacional.
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