Qual seria a minha utopia amazônica? Desde 1992, venho defendendo uma transformação da atual economia na Amazônia rural, que é baseada na destruição da floresta, para uma baseada na captura do valor dos serviços ambientais da floresta (por exemplo, [1, 2]). Os “serviços ambientais”, também conhecidos como “serviços ecossistêmicos reguladores” ou “serviços ecossistêmicos não provisórios”, são funções ecossistêmicas como a manutenção da biodiversidade, a prevenção do aquecimento global e a reciclagem da água, que mantém as chuvas dentro e fora da Amazônia. Os serviços ambientais são valiosos para os humanos, mas são distintos da produção de produtos físicos, como a madeira. Desde 1992, houve progresso, mas uma transformação que compita com a norma predatória atual não é iminente. Houve progresso na melhor quantificação dos serviços ambientais da floresta, especialmente aqueles relacionados ao armazenamento de carbono e ao ciclo da água. A Convenção do Clima (UNFCCC) e a Convenção da Biodiversidade (CBD) foram estabelecidas e dezenas de reuniões foram realizadas para negociar planos e compromissos de mitigação. A conscientização pública aumentou graças aos recentes desastres climáticos em todo o mundo.
Várias questões não resolvidas impedem uma utopia amazônica baseada em serviços ambientais. O impedimento mais importante é institucional, e não a falta de informação científica. A questão de o que fazer com o dinheiro se ele se materializar é essencial. São necessários meios para transformar fluxos monetários baseados em serviços ambientais em formas de apoiar a população tradicional e manter a floresta. Uma longa série de escândalos está minando a confiança nessas soluções. Um evento revelador foi a tentativa do governo Bolsonaro de perverter para ser “alinhado com as políticas do governo” o uso do dinheiro que havia sido doado pela Noruega e Alemanha ao Fundo Amazônia [3]. A maior parte dos planos de mitigação do Brasil é projetada para recompensar ricos proprietários de terras, por exemplo, subsidiando o plantio de árvores em Áreas de Preservação Permanente (APPs) e Reservas Legais (RLs) desmatadas ilegalmente. Um projeto de lei pendente (PL 528/2021) para estabelecer o Mercado Brasileiro de Redução de Emissões (MBRE) forneceria principalmente maneiras de pagar por atividades que aconteceriam de qualquer maneira sem o subsídio (ou seja, esquemas de mitigação “não adicionais”), como promover a agricultura de plantio direto para soja [4].
Esta também é a principal atividade do Programa de Agricultura de Baixo Carbono. REDD+, ou Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal, teve o sinal de mais (+) adicionado à sigla para indicar a inclusão de medidas para aumentar os estoques de carbono florestal, por exemplo, restaurando terras degradadas. As atividades se voltaram fortemente nessa direção por razões óbvias. Oferecer dinheiro aos proprietários de terras para plantar árvores tem apoio instantâneo, enquanto medidas para deter o desmatamento contrariam interesses poderosos. Infelizmente, do ponto de vista climático, é muito mais vantajoso investir fundos de mitigação na prevenção do desmatamento (além dos muitos benefícios ambientais não climáticos e benefícios para os povos tradicionais). É muito mais caro restaurar um hectare de pastagem degradada do que prevenir um hectare de desmatamento, e o benefício de carbono de evitar o desmatamento é muito maior, tanto por hectare quanto por unidade de dinheiro investido.
Muito do que está minando uma utopia baseada em serviços ambientais vai além do simples desperdício do sempre limitado dinheiro “verde”. Resultados perversos podem surgir. O Cadastro Ambiental Rural (CAR) do Brasil foi criado em 2009 e impulsionado pelo “código florestal” de 2012 (Lei 12.651/2012) com a intenção declarada de facilitar a aplicação dos requisitos para Áreas de Proteção Permanente (APPs) e Reservas Legais (RLs), e o CAR foi explicitamente especificado como não implicando propriedade legal das áreas inseridas neste registro autodeclarado [5]. Em vez disso, o CAR se tornou uma ferramenta importante para grileiros, facilitando muito a legalização (eufemisticamente chamada de “regularização”) de suas ocupações ilegais [6, 7]. O destino das vastas terras públicas não destinadas da Amazônia brasileira é crucial, mas, em vez de serem destinadas para áreas protegidas, elas estão sendo rapidamente reivindicadas por meio do CAR e invadidas por grileiros, e as reivindicações estão sendo legalizadas (por exemplo, [8, 9]). O CAR estimula o desmatamento para demonstrar o “uso produtivo” da terra reivindicada como justificativa para a legalização. A legalização também estimula o desmatamento após a emissão do título, como demonstrado por um estudo sobre o efeito do programa “Terra Legal” [10].
A perspectiva de obtenção de créditos de carbono de mercado voluntário para florestas reivindicadas por meio do CAR parece estar começando, conforme sugerido pelo questionamento do Ministério Público Federal (MPF) sobre os esforços de uma empresa (Nemus) para vender tokens não fungíveis (NFTs) por carbono em 41.000 ha no estado do Amazonas [11, 12]. Os esforços para compensar os benefícios de carbono da manutenção da floresta também são prejudicados por escândalos em outras áreas de mitigação, mais notoriamente os créditos de carbono atualmente concedidos pelo Mecanismo de Desenvolvimento Limpo para hidrelétricas, praticamente nenhuma das quais é “adicional” no espírito do Protocolo de Kyoto, visto que estão sendo construídas por outros motivos que não o crédito de carbono e seriam construídas sem esse subsídio [13-15]. Além disso, as barragens amazônicas emitem metano, eliminando ou reduzindo significativamente qualquer benefício climático [16]. Essas barragens também têm impactos sociais tremendos que violam claramente a exigência do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo de que projetos de mitigação contribuam para o desenvolvimento sustentável [17]. [18]
A imagem que abre este artigo mostra floresta de várzea no caminho até a Aldeia São Francisco TI Apurinã) pelo rio Ipixuna em Tapauá, Amazonas(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real).
Notas
[1] Fearnside, P.M. 1997. Serviços ambientais como estratégia para o desenvolvimento sustentável na Amazônia rural. pp. 314-344 In: C. Cavalcanti (ed.) Meio Ambiente, Desenvolvimento Sustentável e Políticas Públicas. Editora Cortez, São Paulo, Brazil. 436 pp.
[2] Fearnside, P.M.2008. Amazon forest maintenance as a source of environmental services. Anais da Academia Brasileira de Ciências 80(1): 101-114.
[3] Senadonotícias. 2019. Salles quer Fundo Amazônia alinhado com políticas do governo. Senadonotícias, 07 de agosto de 2019.
[4] Ferrante, L. & P.M. Fearnside. 2022. A decepção do Brasil ameaça metas climáticas. Amazônia Real, 01 de fevereiro de 2022.
[5] Guaraldo, L. 2022. Fraude no CAR responde por 65% do desmatamento em terras públicas da Amazônia. Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia-IPAM, 30 de maio de 2022.
[6] Azevedo-Ramos, C., P. Moutinho, V.L.S. da Arruda, C.C. Stabile, A. Alencar, I. Castro & J.P. Ribeiro. 2020. Lawless land in no man’s land: the undesignated public forests in the Brazilian Amazon. Land Use Policy 99: art. 104863.
[7] Brito, B., P. Barreto, A. Brandão, S. Baima & P.H. Gomes. 2019. Stimulus for land grabbing and deforestation in the Brazilian Amazon. Environmental Research Letters 14: art. 064018.
[8] Carrero, G.C., R.T. Walker, C.S. Simmons & P.M. Fearnside. 2023. Grilagem de terras na Amazônia brasileira. Amazônia Real, Série completa.
[9] Yanai, A.M., P.M.L.A. Graça, L.G. Ziccardi, M.I.S. Escada & P.M. Fearnside. 2023. Desmatamento em terras públicas não destinadas. Amazônia Real, Série completa.
[10] Probst, B., A. BenYishay, A. Kontoleon & T.N.P. dos Reis. 2020. Impacts of a large-scale titling initiative on deforestation in the Brazilian Amazon. Nature Sustainability 3: 1019–1026.
[11] MPF (Ministério Público Federal). 2022. MPF aciona empresa que vende ativos digitais (NFTs) de áreas da Amazônia. Procuradoria da República no Amazonas, 25 de julho de 2022.
[12] Watanabe, P. 2022. Supostas áreas de empresa que vende NFTs na Amazônia têm desmate. Folha de São Paulo, 01 de agosto de 2022.
[13] Fearnside, P.M. 2015. Crédito de carbono para usinas hidrelétricas como fonte de emissões de gases de efeito estufa: O exemplo da hidrelétrica de Teles Pires. p. 99-108. In: P.M. Fearnside (ed.) Hidrelétricas na Amazônia: Impactos Ambientais e Sociais na Tomada de Decisões sobre Grandes Obras. Vol. 2. Editora do INPA, Manaus. 297 p.
[14] Fearnside, P.M. 2014. Barragens do Rio Madeira- Crédito de carbono para Jirau. Amazônia Real, série completa.
[15] Fearnside, P.M. 2015. O crédito de carbono da barragem de Santo Antônio. Amazônia Real, série completa.
[16] Fearnside, P.M. 2017. Hidrelétricas e o IPCC. Amazônia Real Série completa.
[17] Fearnside, P.M. 2019. Justiça ambiental e barragens amazônicas. Amazônia Real, Série completa.
[18] Esta série é ampliada e atualizada a partir de Fearnside, P.M. 2025. Uma utopia amazônica com ressalvas. p. 103-119. In: M. Colón (ed.) Utopias Amazônicas. Ateliê Editorial, Cotia, SP. 335 p.
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