Índice
ToggleNos últimos 9 meses, episódios de tráfico de espécies brasileiras ameaçadas de extinção envolveram rotas ou indivíduos do Suriname, país amazônico vizinho cuja história é marcada por séculos de colonização europeia, ditadura militar, fragmentação social e econômica.
Um brasileiro, um togolês, um surinamês e um uruguaio estão presos por tráfico de animais selvagens em Lomé, capital de Togo. Uma quinta pessoa, um suposto israelense, mas com passaporte de Belarus, no leste europeu, fugiu, disse a Rádio France Internacional. Fontes brasileiras confirmaram as informações a ((o))eco.
Todos eles foram flagrados pela guarda costeira do país africano quando a traineira em que estavam teve uma pane, no último 12 de fevereiro. A carga tinha 20 micos-leões-dourados e 12 araras-azuis-de-lear, espécies que só vivem livres no interior do Rio de Janeiro e da Bahia, respectivamente.
“Claramente são animais capturados na natureza”, destaca Luís Fábio Silveira, doutor em Zoologia pela Universidade de São Paulo (USP) e presidente da Fundação Lymington, entidade voltada a reproduzir e repovoar ambientes naturais com aves ameaçadas.
Os micos e araras eram levados com autorizações falsas. Negócios com as espécies são vetados pela Cites, sigla em Inglês da Convenção sobre Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção. Representantes do acordo no Governo de Togo não retornaram nossos pedidos de entrevista.
![](https://i0.wp.com/oeco.org.br/wp-content/uploads/2024/02/A8cf75a04-b731-4fe5-b1ba-4cf344c94608.jpg?resize=640%2C426&ssl=1)
A embarcação dos traficantes tinha bandeira brasileira, havia saído do Suriname e rumava ao Benin, país vizinho de Togo, indicam as investigações iniciais. Da África, os animais rumariam provavelmente à Europa ou Ásia, grandes destinos internacionais de espécies sul-americanas roubadas.
No momento da apreensão, três micos já estavam mortos. Os demais macacos e aves estavam em péssimas condições, doentes, mal alimentados, em gaiolas pequenas e sujas. Todos foram tratados por agentes do Ibama na residência do embaixador do Brasil na capital togolesa, Nei Bitencourt.
Os animais sobreviventes retornaram ao Brasil esta semana. O governo mobilizou equipes e uma aeronave para sua repatriação. “A ação sinaliza ao mundo que o país se importa com suas espécies”, avalia Luís Paulo Ferraz, secretário-executivo da Associação Mico-Leão Dourado (AMLD).
Araras e micos estão em quarentena no interior dos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro. Se conseguirem vencer o trauma e os ferimentos, poderão voltar aos ambientes naturais. Testes tentarão identificar precisamente onde foram capturados.
“Os micos vivem em grupos, em famílias, e sua reintrodução é complexa sem a informação de sua origem. Mas, já sabemos que alguns animais são de áreas que monitoramos no estado do Rio de Janeiro”, revela Ferraz, da Associação Mico-Leão Dourado (AMLD).
![](https://i0.wp.com/oeco.org.br/wp-content/uploads/2024/02/mico-de-boas.jpg?resize=640%2C463&ssl=1)
![](https://i0.wp.com/oeco.org.br/wp-content/uploads/2024/02/araras-de-buenas.jpg?resize=640%2C480&ssl=1)
Responsável por administrar a Cites no Brasil, o Ibama afirma estar atento aos desdobramentos do delito. “Até o momento, as informações disponíveis não possibilitam conclusões definitivas sobre o caso, que está sob investigação pelo Ibama”, disse sua Assessoria de Imprensa.
Ao mesmo tempo, o flagrante de tráfico internacional de espécies brasileiras na costa africana é tudo menos um fato isolado. No palco do comércio ilegal de vida selvagem da América do Sul, o vizinho Suriname desponta como uma rota usual do crime organizado.
Convergência nacional
Em julho de 2023, 29 araras-azuis-de-lear e 7 micos-leões-dourados foram confiscados no Suriname. No mês seguinte, 24 daquelas aves foram roubadas de uma garagem onde estavam, a 60 Km da capital Paramaribo. Os demais emplumados e micos retornaram ao Brasil.
Já em setembro daquele ano, uma arara-de-lear foi filmada na localidade de Frederiksdorp, próxima a Paramaribo. Agentes do país tentam capturar o animal, supostamente sem sucesso. Desde então, não há mais informações sobre o paradeiro das 24 aves.
Uma ligação entre as araras surrupiadas no Suriname e as flagradas na costa do Togo seria possível com uma comparação entre amostras de sangue dos animais. “Podem ser aves do mesmo lote [que esteve no Suriname] ou podem ser aves ‘novas’”, diz Silveira, da USP.
Prova da atuação de traficantes no Brasil, este fevereiro duas ucranianas foram pegas com ovos de arara-de-lear na BR-116, em Minas Gerais. Elas dirigiam de Salvador (BA) a São Paulo (SP), de onde voariam ao Suriname. No mesmo período, um casal da espécie foi confiscado em Mairiporã (SP).
![](https://i0.wp.com/oeco.org.br/wp-content/uploads/2024/02/tinywow_mulheres-ucranianas-sao-presas-com-ovos-de-arara-azul-de-lear-1707337898_48981511.jpg?resize=600%2C509&ssl=1)
Para Silveira, da USP, os repetidos casos de tráfico conjunto de araras e micos brasileiros mostram claramente que quadrilhas “muito bem organizadas” operam no país. “Não é uma captura aleatória feita por amadores”, ressalta o presidente da Fundação Lymington.
“Os micos são animais extremamente conhecidos e ameaçados. Seu tráfico era uma ameaça controlada que piorou de 2 anos para cá. Se esse crime realmente voltou, a situação é muito grave para a espécie”, reclama Ferraz, da AMLD.
Corredor internacional
Coincidentemente, investigações da Liga da Terra Internacional (ELI, sigla em Inglês) traçaram poderosas redes e rotas de tráfico na Guiana e no Suriname para o comércio criminoso de presas, peles e ossos de onças-pintadas e outras espécies rumo a países asiáticos, sobretudo à China.
A onça é protegida num decreto contra a caça no Suriname desde 2002 e pela Convenção sobre Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (Cites), mas nos últimos anos sua população vem diminuindo pelo aumento da matança e do tráfico.
Ainda mais grave, os delitos com o maior felino das Américas são associados aos tráficos de pessoas, drogas, armas, lavagem de dinheiro e garimpo ilegal de ouro, revelou a ELI, que pesquisa, cruza e analisa dados e informações para combater crimes ambientais.
Desde 2019, a entidade já listou mais de 20 traficantes de onças no Suriname – 14 eram chineses e o restante eram surinameses ou europeus. Todos operavam com redes na América Latina. Boa parte dos animais traficados à Ásia passa pela Holanda e, em menor escala, pelos Estados Unidos.
![](https://i0.wp.com/oeco.org.br/wp-content/uploads/2024/02/Jaguar-Suriname.jpg?resize=640%2C808&ssl=1)
A matança de onças-pintadas e outras espécies no Suriname para abastecer mercados criminosos na Ásia é reconhecida também em relatórios da União Internacional para Conservação da Natureza (UICN), de 2023, e do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, sigla em Inglês), de 2020.
“O comércio de animais selvagens é legal no Suriname. Isso é lamentável. Esse tráfico de animais selvagens que não são surinameses é um fenômeno totalmente novo”, disse a ((o))eco uma fonte que atua naquele país e que não será identificada para sua proteção.
Um relatório da ong Traffic e da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID, sigla em Inglês), reforça que, enquanto no Brasil isso é um crime federal, no Suriname, Guiana e Peru espécies silvestres “podem ser legalmente capturadas e comercializadas”.
“Esses países têm sistemas de cotas distintos para a captura e exportação de animais silvestres, o que facilita o tráfico destas espécies entre (…) países vizinhos (quando a cota de um dos dois países se esgota, animais são traficados ao outro cuja cota ainda não foi alcançada)”, explica a publicação.
![](https://i0.wp.com/oeco.org.br/wp-content/uploads/2024/02/lady-suri.jpeg?resize=640%2C953&ssl=1)
Procurados por ((o))eco, representantes da Cites e outros membros do governo surinamês não atenderam aos nossos pedidos de entrevista sobre a situação nacional do tráfico de espécies até o fechamento da reportagem. Simultaneamente, fontes avaliam que a história atribulada do país tem conexões com um presente de administração precária, conflitos internos e corrupção.
Abalos seculares
Após vencer uma disputa com a Inglaterra pelas terras hoje do Suriname, a Holanda dominou o país por mais de três séculos, de 1667 a 1975, quando a colônia passou a não mais dar os lucros esperados com ouro, madeiras e outros materiais extraídos pelas mãos de escravos africanos.
A bonança durou apenas 5 anos, até um golpe de estado e a imposição de uma ditadura militar comandada por Dési Bouterse. O regime durou até o início dos anos 1990, quando eleições foram permitidas, mas os militares seguiram monitorando os atos de governo e ameaçando um novo golpe.
A população esperava dar fim aos anos cinzentos nas eleições de 2010, mas o parlamento deu maioria de votos a Bouterse. Foi reeleito em 2015 e, em 2020, perdeu as eleições para o ex-delegado Chan Santokhi. Indignado, o ex-ditador e apoiadores invadiram o parlamento federal nos mesmos moldes e poucos dias após o 8 de janeiro, na tentativa de golpe no Brasil.
Hoje condenado à revelia por crimes como sequestro e assassinato de críticos e opositores, incluindo advogados, jornalistas e professores universitários, Bouterse está foragido.
“Há uma grande dificuldade de se organizar frente ao deixado por Bouterse. Todo esse cenário é entremeado por corrupção orgânica”, analisa o holandês Simon Lobach, doutorando no Instituto de Pós-Graduação de Estudos Internacionais e do Desenvolvimento (Suíça) e ex-pesquisador na Universidade Federal do Pará (UFPA).
![](https://i0.wp.com/oeco.org.br/wp-content/uploads/2024/02/212912286_b8c243755f_b.jpg?resize=640%2C446&ssl=1)
Conforme Lobach, fortes ciclos de agronegócio e de extração de alumínio foram sobrepujados pela extração de ouro, que responde por até 80% da economia nacional. A extração é industrial ou de garimpos autorizados onde predominam os “maroons”, etnia similar aos quilombolas brasileiros.
Além desses, no país convivem crioulos, indígenas e asiáticos de países como China, Índia e Indonésia. Cada grupo tem um partido próprio. O Holandês é a língua oficial do país, que não possui conexões rodoviárias com seus vizinhos e poucos voos internacionais, como para Belém (PA), Amsterdã (Holanda) e Estados Unidos.
Segundo a fonte surinamesa que pediu para não ser nomeada, o isolamento, a precariedade político-econômica do país e a pobreza de sua população mantêm um cenário favorável a crimes. “O tráfico é organizado e parece estar profundamente enraizado em diferentes estruturas, do governo ao setor privado. Estamos lidando com pessoas com muitas finanças à disposição”, conta.
O Índice Global de Crime Organizado, ferramenta mantida por União Europeia e Estados Unidos para analisar a situação dos países vinculados às Nações Unidas, mantém o Suriname nas últimas posições entre 193 nações quanto a registros e enfrentamento da criminalidade.
![](https://i0.wp.com/oeco.org.br/wp-content/uploads/2024/02/macacos_suri.jpg?resize=640%2C424&ssl=1)
Mobilização futura
Os insistentes casos de tráfico de espécies nativas brasileiras e sul-americanas pedem ações urgentes dos governos nacionais e de agências internacionais, não só combatendo diretamente os crimes como também injetando novo fôlego nas economias para reduzir a desigualdade social.
Para Simon Lobach, no Instituto de Pós-Graduação de Estudos Internacionais e do Desenvolvimento (Suíça), o Suriname poderia reavaliar contratos comerciais e atrair setores econômicos não-extrativistas para empregar a população.
“É preciso uma estratégia de longo prazo para gerar empregos, incluindo produtos e populações amazônicas. Isso ajudaria a pacificar o país e o posicionaria de forma diferente na economia global”, defende o pesquisador.
Para Luís Paulo Ferraz, secretário-executivo da Associação Mico-Leão Dourado, as fronteiras têm que ser mais controladas contra o tráfico de animais silvestres. “Isso precisa de atenção geral do poder público brasileiro e de uma mobilização internacional”, destaca.
Diretora do Fundo do Patrimônio Verde do Suriname e parte de grupos conservacionistas da UICN, Monique Pool espera que os países da América do Sul unam forças contra o tráfico para preservar a biodiversidade regional. “Os animais são traficados como mercadorias. No entanto, são seres vivos e nenhum animal selvagem deve ser mantido em cativeiro”, lembra.
As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site O Eco e são de total responsabilidade do autor.
Ver post do Autor