Tem muito tempo que não escrevo aqui, na verdade até tento escrever, mas nada que tenha finalizado para chegar até sua leitura. Muitos são os fatores que vão desde a inspiração, o tempo dispendido, o casamento disso com as tarefas do trabalho, família e até o ócio. É um prazer escrever sobre as dinâmicas caóticas, gostaria de poder me dedicar muito mais ao meu caos de ideias, mas o caos da sobrevivência nos arrebata de forma tão avassaladora, que vamos perdendo oportunidades de angariar vozes nas discussões, são os descaminhos. O modo de vida que levamos, dentro do capitalismo, ceifa as possibilidades que temos ao redor. A necessidade de sobrevivência (mas não de vivência), travam a realização de ideias e isso nos encaminha de maneira enfadonha para estagnação e a passividade ocular de um mundo cada vez mais insalubre, feito para poucos, da mesma forma que foi pensada num mundo pós-primeira guerra mundial, falido e enebriado com ideias segregacionistas, disseminadas com sucesso no norte do mundo (mas não menos no sul).
Nossas crises nunca foram ao acaso, tem certidão de nascimento e CPF, pensadas e planejadas para sustentação de poucos sobre a vida de muitos. Se não tens consciência disso ou não quer ter e pretende abandonar essa leitura com xingamentos direcionados a mim, fique à vontade, a hora é agora. Não tenho e não quero ter o poder de fazer as sinapses necessárias no seu universo particular, o tempo de conduzir a infantilidade e inocência intelectual se foi, não há inocentes, há apenas algozes conscientes ou inconscientes de um mundo em mudanças (e essas mudanças serão mais para você do que para aqueles poucos a que me referi e que dominam os meios de produção).
Mas do que venho escrever de fato? Venho escrever sobre possibilidades de preservação de espécies, tentando me despir da inocência empolgativa, mas tendo a plena certeza que tudo o que vi em mais de 40 anos de andanças estarão totalmente preservados apenas nas memórias de minha retina.
E hoje minha escrita trilha, parcialmente, uma derrota. Àqueles que resistiram até aqui, confesso que hoje vos escrevo aceitando, em parte, uma derrota. E qual seria ela? Pois bem, façam um exercício simples, dentro daquilo que almejam, dentre os sonhos que te erguem, racionalmente, você é capaz de obter tudo agora, nesse exato momento de anomia humana? Se você respondeu que sim, creio que você seja privilegiado enormemente ou possui a simplicidade necessária para o bem viver. O problema deve estar nas minhas ideias de porvir.

Importante ter em mente que já tem um tempo que deixei de crer que iremos conseguir manter o mundo da forma como ele era algumas décadas atrás. A marcha do “possuir” de forma desenfreada não será capaz de retroceder até que seus alvos se encontrem esgotados. Isso é o capitalismo, necessitamos de mais, mas nem sempre tão necessário, mas que cremos precisar.
Como se colocar a frente de uma onda num mar revolto, sem chão para fincar os pés e sem forças para aguentar mais uma série na cabeça?
Olhando ao redor, ainda me indago sobre o que resta. E não contente com uma pergunta sem resposta, sinto que pouco ou nada tem sido feito para alguns grupos de espécies. Vocês já tiveram a curiosidade de passar pela Portaria MMA 148 de 07 de junho de 2022? Eu a chamo de o “Corredor da Morte da Biodiversidade Brasileira” e não sei nem sequer a fundo quem são todos os condenados. Para compreensão do termo que a denomino, temos os seguintes números:
· Plantas – 3.209 espécies ameaçadas, das quais 3 são classificadas como criticamente em perigo/provavelmente extinta;
· Invertebrados terrestres – 275 espécies ameaçadas, dos quais 3 são classificados como criticamente em perigo/provavelmente extinta;
· Invertebrados aquáticos – 97 espécies ameaçadas, dos quais 3 são classificados como criticamente em perigo/provavelmente extinta;
· Peixes – 387 espécies ameaçadas, dos quais 10 são classificados como criticamente em perigo/provavelmente extinta;
· Anfíbios – 60 espécies ameaçadas, dos quais 15 são classificados como criticamente em perigo/provavelmente extinta e dois extintos;
· Répteis – 70 espécies ameaçadas;
· Aves – 262 espécies ameaçadas, dos quais quatro são classificadas como criticamente em perigo/provavelmente extinta e três extintas;
· Mamíferos – 102 espécies ameaçadas, dos quais uma é classificada como criticamente em perigo/provavelmente extinta e uma outra como extinta.
O que me dizem esses números? Primeiro que tem espécies demais em vias de extinção. Gostaria de me expressar com alguns palavrões, mas preciso ainda seguir o bom tom da prosa. Estamos diante de um corredor da morte em que os algozes são nossas ignorâncias, nossa sanha expansionista que ignora, não contextualiza, não se importa, mas nem vou mergulhar nessa seara, isso é dito e escrito todos os dias, por muita gente e a maioria não ouve, então não quero ser mais um nesse coro surdo hoje (porque também escrevo e já escrevi sobre isso). A realidade é que para muitos desses táxons (as espécies) nada vai mudar para melhor. Vamos sim perder muitas que aí estão. Com exceção de alguns lampejos de esperança, por vezes redescobrindo e trazendo espécies desaparecidas do mundo dos mortos, num analogismo mítico-religioso como a ressurreição de Lázaro, o resto seguirá o roteiro da extinção. Basta que continuemos seguindo acefalicamente nosso vigoroso e passivo galope em meio a fornalha de concreto, rios fecais entremeados pela monocultura num país de simplificações de licenciamentos ambientais. A fórmula é simples, basta não fazermos nada que as coisas irão se ajeitar monocraticamente.
Muitos dos ambientes em que habitam essas espécies, encontram-se alterados, mas ainda há meios de restaurá-los e geralmente nossos esforços se voltam para esse caminho.
Sabe aquela lista ali acima? Pois bem, dentre as 39 espécies ditas como provavelmente extintas, duas ainda dividem conosco a existência. São dois peixes das nuvens. Até o momento, três deles são classificados como CR PEX (Criticamente Ameaçados / Provavelmente Extintos) e nós, um punhado de pesquisadores especialistas nessa família de peixes, estamos empreendendo esforços nas suas buscas, todas elas infrutíferas para o seu encontro. E quais são essas espécies:
· Moema piriana do estado do Pará;
· Hypsolebias marginatus do estado de Goiás;
· Simpsonichthys zonatus do estado de Minas Gerais.
Das três, apenas a Moema piriana não tem relatos de sua existência atualmente em cativeiro. Desde 2022, uma equipe coordenada pelo pesquisador Márcio da Silva (UFPA – Campus Soure), e da qual faço parte, tem esquadrinhado cada possibilidade de existência, todas infrutíferas para espécie, ainda que tenhamos em mãos ótimos resultados para tantas outras. Dela, não há nada a ser dito além de que vai adentrando o mundo dos mortos, candidatando-se a ser inscrita no livro das extinções.
Mas o que temos das outras duas? De certa forma uma confusão que trava muita coisa. Porque ambas são classificadas como provavelmente extintas, se esse doido que vos escreve afirma ainda existirem em cativeiro? Aí que se inicia toda confusão. Oficialmente, os exemplares existentes atualmente não existem de fato para classificação e não existem porque não são parte de nenhum programa oficial e não estão sob a guarda de nenhuma instituição devidamente autorizada. Não temos um banco genético e nem dados sobre as condições de manutenção dos exemplares e, pensando em nível Brasil, por serem animais ameaçados de extinção, ninguém tem a permissão legal para sua manutenção em cativeiro. Duas questões precisam ser esclarecidas: a primeira diz respeito de como esses animais foram obtidos e vou precisar estender essa prosa, pois precisarei contar essas breves histórias.
Simpsonichthys zonatus era encontrada nos planaltos de Unaí/MG, região com próspero avanço agrícola, responsável pela supressão da mata ciliar, lar do peixe. Não temos o registro da espécie em nenhum outro ponto além da localidade tipo e sucessivas expedições para região não lograram sucesso em localizá-la. Seu antigo lar foi drenado e transformado em área de cultivo de grãos (soja, milho). Por sorte, entre os anos de 1992/93, a espécie foi coletada na localidade, antes da destruição definitiva do brejo. Dos caminhos ou descaminhos que esses peixes tomaram, apesar de não saber dos meandros, sabemos que são a origem dos exemplares que existem atualmente em cativeiro na mão de aquaristas pelo mundo.
Não muito diferente é o caso da Hypsolebias marginatus, mas que a origem exata pude ouvir das partes envolvidas, inicialmente numa roda de cerveja pós-campo de coleta em 2001 (de quem a coletou), e de outra parte, numa viagem para conhecer e entrevistar no interior de São Paulo em 2021, quem reproduziu. Resumindo, um casal da espécie foi coletado em Goiás, confiado a uma pessoa que tinha conhecimento na reprodução e que, posteriormente, além de ter disseminado entre outros criadores, se desfez de toda criação com medo de consequências legais. No entanto, sabemos que os exemplares existentes ainda hoje pelo mundo, descendem desse único casal. A localidade tipo, um brejo em mata de galeria e cercado por morros, hoje é a fecunda terra de plantações de cana-de-açúcar.
Para encontrar fotos de ambas espécies, basta um esforço mínimo de busca na internet e vocês poderão ver que são exemplares fotografados de muitas criações mundo afora. Já tive o privilégio de observar exemplares desses animais entre alguns poucos criadores que aceitaram abrir suas portas, mas lá se vão mais de 10 anos, em que alguns morreram ou abandonaram as criações por questões legais.
A segunda questão se origina nas histórias contadas: elas não existem oficialmente e, não sendo frutos da oficialidade, não são usadas na Avaliação do Status de Conservação (e que poderiam ser classificadas como Extintas na Natureza), encontrando dificuldade inclusive na possibilidade de criação de políticas de criação ex-situ e repovoamento.
E qual poderia ser a chave de virada para essas espécies? Minha crença de existência, passa pela ideia de projetos “Arca de Noé”, em que espécies de peixes criticamente ameaçadas possam não apenas serem reproduzidas em cativeiro, mas que seus ambientes possam ser “reconstruídos” ex-situ com consequente “transposição” das técnicas de restauração para o meio natural.



E por que defendo essa ideia? Um artigo de 2023, em que foram analisados táxons de espécies (plantas e animais) classificadas como extintas na natureza desde 1950, traz dados curiosos e alarmantes. Das espécies analisadas, 11 foram extintas de forma definitiva e 72 permanecem como Extintas na Natureza, se encontrando em instituições como zoológicos e jardins botânicos. Acontece que em 61% dos casos, as ecorregiões de ocorrência estão profundamente impactadas e desse percentual, 46% dependem de áreas que tiveram maior degradação no período compreendido entre 1993 e 2009 (praticamente ontem!!!). Mas nossas protagonistas não foram alvos desse estudo.
Será que pensar num projeto que leve em conta a criação de bancos genéticos, reprodução de ambientes ex-situ, com profissionais de diversas áreas, envolvimento de órgãos públicos, de mantenedores, trabalhando ciência cidadã/educação ambiental não é a nossa última chance?
Seguindo para o final, no ápice desse drama, temos mais um peso para essa balança. Atualmente no Brasil, de acordo Portaria MMA 148 de 07 de junho de 2022, 387 espécies de peixes estão ameaçados e 33% desse total são da família Rivulidae (os peixes das nuvens), sendo a família mais ameaçada do Brasil. Como se não bastasse, quando contabilizamos todas as espécies dessa família registradas no nosso país, num total de pouco mais de 320, 130 estão ameaçadas de extinção.
Todos esses entraves, aliado a baixa visibilidade das espécies (quem liga para peixes tão pequenos?) e falta de recursos, vai drenando a cada ano as possibilidades de continuidade. Ambas espécies podem atuar como “guarda-chuva” na revitalização e reflorestamento das áreas úmidas perdidas do Cerrado que habitavam.
Ainda com todos os argumentos acima, não temos a força de políticas de preservação que outros animais alcançam, com suas reintroduções noticiadas, unidades de conservação criadas e projetos de longa duração financiados. Nossa tentativa de “Arca de Noé” nem sequer pode ser chamada de arca, seria um privilégio se já fosse uma jangada que pudesse influenciar outras mais, como fez uma vez uma lenda de nossa história na luta pela abolição, o Dragão do Mar. Mas já que falamos de terras do Brasil, abandonemos a analogia bíblica, rebatizemos esse sonho como a Ubá de Tamandûaré, o herói Tupi sobrevivente do dilúvio.
Sonhar é o que nos resta e continuar batendo de porta em porta, contando histórias, fazendo expedições Brasil afora com pouco recurso ou com recurso do próprio bolso (muitas vezes nos endividando para fazer alguma coisa) faz parte de nossa teimosia, de não aceitar a extinção de forma passiva, hoje não!!! São décadas de luta que devem ser contadas. A busca desses animais, ainda que infrutíferas para o seu encontro, ocasionou a descoberta de outras espécies mais e a manutenção de nossas esperanças. São elas, para nós, as espécies “guarda-chuva”, as possíveis responsáveis pela preservação das áreas úmidas se, um dia, conseguirmos alcançar aqueles que podem ajudar em projetos que adiem esses fins de mundos.
Quanto aos pesquisadores entusiastas, do qual sou mais um, e que costumo denominar como Caçadores de Nuvens (lá de onde a tradição popular diz ser a origem dos peixes), nós continuaremos em nosso caminho quixoteano, seguindo, caminhando, mergulhando, se emocionando e torcendo para que algum dia nossos caminhos cruzem com o caminho da vida.
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