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ToggleA oficina de jornalismo socioambiental da Amazônia Real realizada de 19 a 21 de julho, no auditório do Parque do Mindu, em Manaus, reuniu cientistas, jornalistas, ambientalistas e ativistas para dialogar com jovens jornalistas e estudantes sobre a realidade amazônida (Foto: Juliana Pesqueira/Amazônia Real).
Por Nicoly Ambrosio, Leanderson Lima e Wérica Lima, da Amazônia Real
Manaus (AM) – Victor simplesmente viu o que não encontra no “jornalismo tradicional”. Alexandre contou o bastidor de produzir notícias sensíveis. Adalgisa se conscientizou sobre os protocolos de segurança antes de sair a campo. Ariene citou os interesses ocultos em torno do mercado de carbono. Carlos sonhou com uma agenda positiva para a proteção ambiental. Pedro questionou por que alguns daqueles temas nunca foram ensinados na faculdade. Essas e outras diferentes perspectivas fizeram parte da grande troca de experiências, aprendizados e conhecimento que foi a 2ª Oficina de Jornalismo Socioambiental da Amazônia Real, encerrada no domingo (21).
Voltado para estudantes de jornalismo e recém-formados, o evento organizado pela agência reuniu 47 pessoas, entre cientistas, jornalistas, ambientalistas e ativistas. E a temática não podia ser mais atual: “Crise Climática e Carbono”. A 2ª Oficina de Jornalismo Socioambiental da Amazônia Real ocorreu entre 19 e 21 de julho no auditório do Parque do Mindu, localizado no bairro Parque Dez de Novembro, na Zona Centro-Sul de Manaus. Nos três dias, 30 jovens puderam se inteirar do desafio de se produzir jornalismo sério, independente e investigativo no contexto amazônico.
“A gente abre a redação para eles conhecerem como é a Amazônia Real, o que fazemos de fato, porque há um desconhecimento da sociedade amazonense, de modo geral, do que somos”, pontuou Kátia Brasil, jornalista e cofundadora da agência. Ela fez um histórico sobre a criação da agência e a importância da investigação de violação de direitos humanos e crimes ambientais, destacando trabalhos como o Projeto Bruno e Dom. Premiado pela rede colaborativa Covering Climate Now, o projeto foi coordenado pela Forbidden Stories e que contou com a participação de 16 veículos mundiais – a Amazônia Real foi o único veículo da região Norte convidado a participar do consórcio.
Kátia lembrou que a Amazônia Real é rotulada com frequência como uma mídia ativista ou alternativa, uma forma de depreciá-la. “Em muitos lugares da Amazônia são os jornalistas das mídias ativistas, alternativas e os comunicadores que vão contar as verdadeiras histórias de violações de direitos humanos que acontecem em cidades que não têm um veículo de imprensa, que são os chamados desertos de notícias”, completou a editora.
Essa fala reverberou entre os jovens e futuros profissionais da comunicação. Jéssila Kamille, estudante finalista do curso de Jornalismo na Martha Falcão, destacou a oficina como um momento de grande aprendizado e importância para a sua carreira em construção. “Aprender sobre jornalismo socioambiental é muito importante para qualquer profissional amazônida que mora aqui. Somos capacitados a aprender a lidar com assuntos sensíveis em diversas mídias, porque, querendo ou não, vivemos um deserto de notícias no nosso estado”, afirmou.
O primeiro dos convidados a falar foi o jornalista Alexandre Hisayasu, repórter investigativo do Núcleo Globo na Região Norte. Rosto conhecido por suas aparições no Fantástico ou no Jornal Nacional, ele contou como a reportagem especial “A crise sanitária do povo Yanomami”, de 2021, pode ir ao ar. “Você procura levar o máximo possível dessa experiência para as pessoas mostrando a matéria, contando bastidores de fatos que nunca vão ser colocados em público”, explicou. Essa reportagem investigativa conquistou o prêmio Vladimir Herzog, no ano seguinte.
Mineração e seca histórica
Elaíze Farias, cofundadora da Amazônia Real, apresentou um panorama da mineração ligada às grandes indústrias e que impactam os povos indígenas em um “modelo colonizador que se atualiza”. Ela lembrou que a região amazônica é um território em disputa pelo agronegócio e pelas empresas mineradoras. A partir de exemplos de reportagens que escreveu, como as explorações de gás e petróleo em Silves e a de potássio em Autazes, a editora deu dicas de como começar a investigar esse tipo de assunto.
“Estamos em um momento histórico no qual a pauta socioambiental deve ser obrigatória em qualquer formação jornalística. Nossa civilização passa por mudanças sem precedentes e é fundamental que os profissionais de mídia acompanhem com olhar crítico e profundo para conseguir falar sobre as grandes questões de nosso tempo relacionadas à emergência climática e seus impactos nas populações”, disse Elaíze. Ela espera que a oficina seja um ponto de partida para que as novas gerações de jornalistas compreendam por que a Amazônia tem um apelo global, mas são as populações locais as principais responsáveis pela justiça ambiental.
Wérica Lima e Juliana Pesqueira contaram, ainda no primeiro dia da oficina, sobre a produção de reportagens de campo, que marcaram a cobertura da Amazônia Real sobre a seca histórica de 2023, como “A seca não acabou”, feita na comunidade São Francisco do Mainã, no rio Amazonas, “O colapso dos botos e tucuxis”, em Tefé, e “Até a formiga desapareceu”, na aldeia Branquinho, no rio Tarumã-Açu, em Manaus. As duas profissionais também deram dicas de protocolo de segurança em campo, técnicas de reportagem e de como estar alerta para os sinais de tragédias socioambientais, focando não apenas no impacto à natureza, mas sobretudo em contar as histórias das populações afetadas.
Para Adalgisa Mendes, estudante de jornalismo da Fametro, o mais enriquecedor para a sua trajetória foi ter aprendido na 2ª Oficina de Jornalismo Socioambiental da Amazônia Real sobre os bastidores de reportagens investigativas e a necessidade do uso de planos de segurança. “Achei muito importante focar nessa parte de se ter um protocolo de segurança em campo, uma coisa que não pensamos muito, mas acaba sendo interessante aprender”, contou.
Mudanças globais e a crise climática
No segundo dia da oficina, o ambientalista Carlos Durigan ressaltou que pela primeira vez a mudança de temperatura da terra é ocasionada pelo impacto da ação humana, originando o período antropoceno. Na palestra “Desafios para a Amazônia em Tempos de Mudanças Globais”, o pesquisador falou sobre as atuais áreas da Amazônia que sofrem pressões distintas como garimpo e pecuária. Em seguida, contextualizou com uma linha histórica que traça o processo de diálogo para combate às mudanças climáticas que originou as COPs, as Conferências das Partes promovidas pela Organização das Nações Unidas.
Para o geógrafo, é essencial eventos como a 2ª Oficina de Jornalismo Socioambiental da Amazônia Real. “Existe um debate vivo sobre o tema. Esse evento dá uma centelha importante dentro desse processo de fortalecer ainda mais o debate e um processo de preparação para os próximos passos que a gente vai viver”, disse o cientista. “Esse espaço dá um elemento importante e essencial para a gente construir uma agenda positiva de comunicação e de engajamento regional na dinâmica da COP”, finalizou.
Pedro Tukano, outro palestrante convidado, apresentou a organização da cobertura em rede dos comunicadores e jornalistas indígenas na crise climática. Foi a primeira vez que o jornalista dialogou sobre o tema socioambiental e a comunicação indígena com jornalistas em formação e recém-formados. “É sempre um desafio, pois são pessoas diversas que muitas vezes podem não concordar com as nossas visões, que fogem da estrutura montada e confrontam principalmente a academia e o jornalismo tradicional”, observou.
Ele disse que a atuação da comunicação indígena para não indígenas é baseada em romper com ideias acerca da comunicação e como ela é executada pelos indígenas e suas organizações. “Levar esse assunto para jovens jornalistas se torna um momento interessante, pois são temas que dificilmente seriam abordados em sala de aula e mesmo que fosse, muito provavelmente, seria levado por profissionais não indígenas”, destacou.
O assédio do carbono
Ainda pela manhã de sábado, Ariene Susui falou sobre como os povos indígenas enfrentam o assédio da venda de carbono e o que esperar da COP 30, evento que vai ser realizado em Belém, no Pará, em 2025. Ela alertou para o aumento de territórios afetados pelo cerco de empresas ligadas ao crédito de carbono no sul do Amazonas e no Mato Grosso, onde as populações assinam termos de cooperação sem saber do que se trata. Esse mercado ainda não é regularizado no Brasil.
“Eles dizem que os indígenas vão ter recurso, que os indígenas vão ter bastante dinheiro para fazerem o que eles já fazem, que é proteger a floresta e o território, e no final nada disso acontece e eles acabam sendo prejudicados por esses termos de cooperação”, afirmou. Para ela, esse “mercado verde” esconde interesses ocultos e passa por cima do direito à Consulta Prévia, Livre e Informada, direito garantido aos povos tradicionais conforme a Convenção 169 da OIT. Susui disse ainda que o mercado de carbono altera o modo de vida das comunidades tradicionais, pois os contratos abusivos das empresas impedem o usufruto da terra, como a impossibilidade de fazer roças e plantações.
Já o cientista Philip Martin Fearnside, Prêmio Nobel da Paz com outros pesquisadores do Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC) e colunista da Amazônia Real, chamou atenção para o fato de que a floresta já está enfrentando vários “pontos de não retorno”, a partir da degradação de forma interna e externa na Amazônia. Um desses problemas perpassa o calor intenso e a emissão de gases na atmosfera. Como faz em uma série de artigos publicados pela agência, o cientista criticou o governo brasileiro por apoiar projetos como a pavimentação da BR-319 e a exploração de gás e petróleo, que podem levar a um colapso ambiental causado pelo desmatamento e vazamentos tóxicos.
Cosmologia indígena
No encerramento do segundo dia da oficina, a ativista e pedagoga Vanda Witoto tratou da ancestralidade e da cosmologia nos territórios indígenas pela experiência do seu povo. Para ela, pensar o corpo-natureza em uma cidade concretada como Manaus se torna uma tarefa quase impossível para se conectar à ancestralidade. Vanda exemplificou com o trabalho que realiza no Parque das Tribos.
Primeiro e único bairro indígena do Amazonas, o Parque das Tribos é o espaço onde a ativista propõe um exercício de “reflorestamento da mente” ao colocar seus estudantes em contato com a natureza, os rios e as entidades encantadas. A alimentação e a arte também são outros meios de pensar a cultura indígena para além da colonização. “A alimentação do meu povo foi a única coisa que o colonizador não conseguiu destruir, a roça é um lugar de ancestralidade”, discursou.
“Teve uma fala da Elaíze [Farias] que me marcou muito, que ela disse que jornalista tem que ser curioso, a gente não pode se contentar só com o que os governos falam para a gente, a gente tem que ir atrás. Aquilo me pegou muito, porque a Vanda [Witoto] também falou exatamente isso”, afirmou Victor Mamede, que também participou da 2ª Oficina de Jornalismo Socioambiental da Amazônia Real. “É muito fácil a gente ler uma coisa que o governo diz que aconteceu, mas a gente tem que saber o que está acontecendo lá na ponta.”
Bolsista no setor de comunicação do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Mamede afirmou que não conhecia em profundidade o trabalho da agência e que, no encontro, se deparou com uma realidade bem diferente. “Vi na Amazônia Real uma coisa que não vejo em jornalismo tradicionais, em portais, em meio de comunicação tradicional”, afirma o jornalista recém-formado. Para ele, a oficina o fez resgatar a importância de dar espaço às populações amazônidas e de lutar pelas causas ambientais a partir da comunicação.
Quebra de estereótipos
A 2ª edição da Oficina de Jornalismo Socioambiental foi encerrada com a palestra “A Fotografia na Amazônia”, com o premiado repórter-fotográfico e editor de Imagem da Amazônia Real, Alberto César Araújo. Ele ressaltou a oportunidade de trocar essas experiências com alunos de jornalismo. “Eu acho que a gente aprende mais do que passa”, conta o editor, que levantou, durante a palestra, as questões éticas e estéticas da fotografia. “As duas andam juntas, não podem ser separadas. Então a gente tem que ter cuidado na abordagem”, disse.
Além de falar sobre a cobertura jornalística na região, Alberto trouxe muitas de suas inspirações na fotografia, com os trabalhos de fotógrafos como Martin Chambi, Claudia Andujar, João Roberto Ripper, Vincent Carelli, Shahidul Alam e Authority Collective. “Essas influências basicamente começaram com esse tipo de imagem onde há um maior respeito em quem se fotografa, há essa empatia maior, e eu coloquei referências como Martin Chambi, que é um fotógrafo peruano, documental, é um fotógrafo indigena, andino, mas que fotografou na Amazônia; a Claudia Andujar, que fotografou os Yanomami e ela criou uma relação, os próprios Yanomami já a consideram como parte deles”, pontuou o repórter-fotográfico, que ressaltou o respeito da Amazônia Real às populações indígenas, tradicionais e quilombolas.
Nos três dias do encontro, os participantes puderam compreender alguns dos métodos de pesquisa jornalística, como acessar dados, entender a necessidade de protocolos de segurança, delimitar histórias e respeitar as fontes.
Novos caminhos
O caminho do jornalismo socioambiental apresentado pela Amazônia Real, é segundo os estudantes, diferente e mais profundo do que os apresentados durante a graduação. A partir da oficina, um novo caminho de possibilidade foi aberto com o jornalismo independente e investigativo. “O que mais chamou atenção acho que foi a parte da investigação em campo, que o jornalista não tem que ficar só sentado na cadeira escrevendo, ele tem que ir lá, tem que presenciar, tem que ver o que está acontecendo, pegar depoimento, se arriscar, enfrentar chuva, rio, floresta”, contou André Quintas, escritor e também finalista de jornalismo da Martha Falcão.
Ainda incerto sobre o futuro profissional, ele disse que mesmo se não trabalhar diretamente com pautas investigativas ambientais ou indígenas, ele será um “aliado da causa” e que ele quer se aprofundar mais nessas pautas. “Na faculdade, não estava chegando nessa parte do socioambiental e do jornalismo investigativo próprio da nossa região. Senti que foi como uma extensão, abriu novas portas e mais visões do que pretendo fazer”, disse.
Kátia Brasil contou que o projeto da Oficina nasceu dessa vontade dos jovens, que começaram a procurar a agência para fazer Trabalhos de Conclusão de Curso e outros projetos de pesquisa. Surgiu também da falta de disciplinas dentro das universidades e faculdades sobre o jornalismo ambiental.
“Por incrível que pareça, aqui temos poucas faculdades que abrem espaço para discutir a própria Amazônia. A gente observou que era necessário abrir essa redação para que os jovens pudessem conhecer nosso jornalismo independente, investigativo, como ele é feito, como ele é organizado, como ele é financiado e como ele está vivo”, disse Kátia. “Até hoje, são 11 anos de trabalho, muito trabalho, para manter essa agência de pé e a gente precisa realmente de ter o apoio dessas futuras gerações.”
Em 2019, a agência realizou a 1ª Oficina de Jornalismo Socioambiental também no auditório do Parque do Mindu. Na ocasião, o evento teve como parceira a organização Climate Tracker. Jovens jornalistas como Alícia Lobato, Jackeline Lima, Ariel Bentes, Wérica Lima e Tainá Aragão participaram do primeiro encontro e se tornaram colaboradoras da agência em algum momento.
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