O Brasil corre sério risco de perder sua floresta amazônica, e os próximos meses serão cruciais para definir o destino da floresta. Embora interromper o desmatamento seja essencial, não é a única ameaça. O clima global está próximo, ou possivelmente já passou, de um ponto de não retorno além do qual o aquecimento global pode escapar do controle humano. O limite de 1,5 °C acima da temperatura média global pré-industrial já foi ultrapassado em 2024 [1], e esse limite se aplica tanto ao sistema climático global [2] quanto à floresta amazônica (por exemplo, [3]). Vários estressores na floresta, incluindo a temperatura, implicam que 10-47% da floresta corre risco de colapso até 2050 ([4], veja [5]).
Pontos de não retorno não significam o deslanche imediato de uma catástrofe, mas sim um salto brusco na probabilidade anual de ocorrência da catástrofe, seja um efeito estufa descontrolado ou o colapso da floresta amazônica. À medida que o tempo avança além do momento em que o marco do ponto de não retorno é atingido, a probabilidade cumulativa da catástrofe ocorrer em algum ponto sobe rapidamente e, em poucos anos, sobe para níveis próximos da certeza. Precisa ter uma rápida interrupção do aumento nas concentrações atmosféricas de gases de efeito estufa (GEEs), seguida por uma redução nessas concentrações para níveis abaixo daqueles correspondentes ao limite de 1,5 °C.
O máximo que podemos fazer para deter o avanço do aquecimento global é não emitir mais emissões de GEE “diretamente induzidas pelos humanos” (nas palavras do Protocolo de Quioto), consistindo basicamente em emissões da combustão de combustíveis fósseis, fabricação de cimento, fertilizantes usados na agricultura, gado e desmatamento. Essas emissões totalizaram 16 bilhões de toneladas de carbono (55 bilhões de toneladas de CO2) em 2023, de acordo com o Global Stocktake da convenção do clima [6]. Elas não incluem as emissões antropogênicas “indiretas” resultantes do aquecimento global, como mais incêndios florestais ao redor do mundo, árvores amazônicas morrendo por secas e altas temperaturas, tundra derretida expondo turfa, os solos do mundo aquecendo e perdendo carbono, o sumidouro de dióxido de carbono nas árvores amazônicas continuando a diminuir e o sumidouro nos oceanos continuando a diminuir à medida que a água nos oceanos esquenta. Se estas emissões “indiretas” totalizem mais do que as emissões “diretas” que temos a opção de controlar, então o aquecimento global escapa ao controlo e o mundo ficará cada vez mais quente, causando ainda mais emissões indiretas e terminando numa “Terra estufa” [7].
As consequências para o Brasil de permitir que o aquecimento global escape do controle humano seriam catastróficas. A floresta amazônica brasileira seria substituída por vegetação como a caatinga do semiárido nordeste do Brasil [8]. Isso essencialmente eliminaria a função vital da Amazônia de reciclar água, que é transportada em forma de vapor de água pelos ventos conhecidos como “rios voadores” para outras partes do Brasil, onde é essencial não apenas para o agronegócio, mas também para a agricultura familiar e o abastecimento de água para a população humana, incluindo a cidade de São Paulo [9, 10]. As estimativas da porcentagem da precipitação anual no vale do Rio da Prata (que inclui o estado de São Paulo) vinda da Amazônia através dos “rios voadores” variam de 16 a 70% [11-14]. O Nordeste semiárido do Brasil se tornaria um deserto, e dezenas de milhões de pessoas que dependem da agricultura perderiam seus meios de subsistência [15-17].
A densa população costeira do Brasil estaria exposta a tempestades violentas e ao aumento do nível do mar (por exemplo, [18]) e as “surpresas climáticas” não previstas em modelos climáticos, como a enchente de 2024 no Rio Grande do Sul [19] e a enchente de 2014 no Rio Madeira [20], se tornariam mais comuns com o aumento do aquecimento global [21]. Os eventos combinados de El Niño e o dipolo do Atlântico de 2023 e 2024, que fizeram com que os principais rios da Amazônia secassem quase completamente, também se tornariam mais comuns porque ambos estes fenômenos estão aumentando devido ao aquecimento global (por exemplo, [22, 23]). As secas causadas pelo El Niño na Amazônia teriam intensidades “sem precedentes” [24], e o risco de secas severas no Brasil como um todo atingiria dez vezes o nível histórico [25]. Não se pode esperar que nenhuma floresta tropical sobreviva a essas condições.
A COP-30 oferece uma chance para o Brasil assumir um papel na liderança global no combate às mudanças climáticas, mas, apesar do discurso presidencial, até agora não há nenhum sinal de que o Brasil esteja à altura dessa ocasião. As consequências catastróficas para o Brasil se o aquecimento global escapar do controle, juntamente com a oportunidade apresentada pela COP-30 sendo realizada no Brasil no final de 2025, tornariam tal mudança lógica, mas exigiria coragem política. Outros países podem fornecer ao Brasil dinheiro para programas ambientais, mas a coragem política para mudar políticas prejudiciais precisa vir de dentro, mais importantemente do chefe de estado.
A imagem que abre este artigo mostra o pasto com gado e floresta após queimada nas fazendas ao longo da BR 163, próximo à Terra indígena Baú, do povo Kayapó, no Pará (Foto: Alberto César Araújo/ Amazônia Real).
Notas
[1] Copernicus. 2024. 2024 virtually certain to be the warmest year and first year above 1.5°C. Copernicus, 07 de novembro de 2024.
[2] McKay, D.I.A., A. Staal, J.F. Abrams, R. Winkelmann, B. Sakschewski, S. Loriani, I. Fetzer, S.E. Cornell, J. Rockström & T.M. Lenton. 2022. Exceeding 1.5°C global warming could trigger multiple climate tipping points. Science 377: art. eabn7950.
[3] Trisos, C.H., Merow, C. & Pigot, A.L. 2020. The projected timing of abrupt ecological disruption from climate change. Nature 580:496–501.
[4] Flores, B.M., E. Montoya, B. Sakschewski, N. Nascimento, A. Staal, R.A. Betts, C. Levis, D.M. Lapola, A. Esquível-Muelbert, C. Jakovac, C.A. Nobre, R.S. Oliveira, L.S. Borma, D. Nian, N. Boers, S.B. Hecht, H. ter Steege, J. Arieira, I.L. Lucas, E. Berenguer, J.A. Marengo, L.V. Gatti, C.R.C. Mattos & M. Hirota. 2024. Critical transitions in the Amazon forest system. Nature 626: 555–564.
[5] Fearnside, P.M. 2024a. Impactos da rodovia BR-319. Amazônia Real. https://bit.ly/3zTyzTG
[6] UNFCCC (United Nations Framework Convention on Climate Change). 2023. Technical dialogue of the first global stocktake. Synthesis report by the co-facilitators on the technical dialogue. UNFCCC, 08 de setembro de 2023.
[7] Steffen, W., J. Rockström, K. Richardson, T.M. Lenton, C. Folke, D. Liverman, C.P. Summerhayes, A.D. Barnosky, S.E. Cornell, M. Crucifix, J.F. Dongesa, I. Fetzer, S.J. Lade, M. Scheffer, R. Winkelmann & H.J. Schellnhuber. 2018. Trajectories of the Earth System in the Anthropocene. Proceedings of the National Academy of Science USA 115(33): 8252–8259.
[8] Sampaio, G., L.S. Borma, M. Cardoso, L.M. Alves, C. von Randow, D.A. Rodriguez, C.A. Nobre & F.F. Alexandre. 2019. Assessing the Possible Impacts of a 4 °C or Higher Warming in Amazonia. In: C.A. Nobre et al. (eds.). Climate Change Risks in Brazil. Springer, Amsterdam. pp. 201-218.
[9] Fearnside, P.M. 2015. Rios voadores e a água de São Paulo. Amazônia Real.
[10] Fearnside, P.M. 2021. As lições dos eventos climáticos extremos de 2021 no Brasil. Amazônia Real.
[11] Martinez, J.A. & F. Dominguez. 2014. Sources of atmospheric moisture for the La Plata River Basin. Journal of Climate 27: 6737–6753.
[12] Yang, Z. & F. Dominguez 2019. Investigating land surface effects on the moisture transport over South America with a moisture tagging model. Journal of Climate 2: 6627-6644.
[13] van der Ent, R.J., H.H G. Savenije, B. Schaefli & S.C. Steele-Dunne. 2010. Origin and fate of atmospheric moisture over continents. Water Resources Research 46: art. W09525,
[14] Zemp, D.C., C.F. Schleussner, H.M.J. Barbosa, R.J. van der Ent, J.F. Donges, J. Heinke, G. Sampaio & A. Rammig. 2014. On the importance of cascading moisture recycling in South America. Atmospheric Chemistry and Physics 14: 13337–13359.
[15] Assad, E.D., R.R.R. Ribeiro & A.M. Nakai. 2019. Assessments and how an increase in temperature may have an impact on agriculture in Brazil and mapping of the current and future situation. In: C. Nobre, J. Marengo & W. Soares, (eds.) Climate Change Risks in Brazil. Springer, Cham, Suiça. p. 31–65.
[16] Castanho, A.D.A., M.T. Coe, P. Brando, M. Macedo, A. Baccini, W. Walker & E.M. Andrade. 2020. Potential shifts in the aboveground biomass and physiognomy of a seasonally dry tropical forest in a changing climate. Environmental Research Letters 15: art. 034053.
[17] Oyama, M.D. & C.A. Nobre. 2004. Estimating economic impacts of sea level rise in Florianópolis (Brazil) for the year2100. International Journal of Environment and Climate Change 10(1): 37-48.
[19] Fearnside, P.M. & R.A. Silva. 2024. Surpresas climáticas: A Amazônia e as lições da enchente catastrófica no Rio Grande do Sul. Amazônia Real, 03 de julho de 2024.
[20] Herraiz, A.D.,P.M. Fearnside& P.M.L.A. Graça. 2017. Amazonian flood impacts on managed Brazilnut stands in natural forests along Brazil’s Madeira River: A sustainable economy threatened by climate change. Forest Ecology and Management 406: 46-52.
[21] Schneider, S.H., B. Turner & H. Garriga 1998. Imaginable surprise in global change science. Journal of Risk Research 1(2): 165-185.
[22] Fearnside, P.M. & R.A. Silva. 2023. A seca na Amazônia em 2023 indica um futuro desastroso para a floresta tropical e seu povo. The Conversation, 06 de novembro de 2023.
[23] Fearnside. P.M. & R.A. Silva. 2023. A seca de 2023 na Amazônia terá muito estrago pela frente. Amazônia Real, 26 de outubro de 2023.
[24] Kay, G., N.J. Dunstone, D.M. Smith, R.A. Betts, C. Cunningham, & A. A. Scaife. 2022. Assessing the chance of unprecedented dry conditions over North Brazil during El Niño events. Environmental Research. Letters 17: art.064016.
[25] Price, J., R. Warren, N. Forstenhäusler, C. Wallace, R. Jenkins, T.J. Osborn & D.P. Van Vuuren. 2022. Quantification of meteorological drought risks between 1.5 °C and 4 °C of global warming in six countries. Climatic Change 174: art. 12.
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