Era noite do 2º dia de fevereiro de 2022. Antonieli Nunes se preparou para um momento feliz: contar para o homem que amava que estava grávida dele. No entanto, o que aconteceu foi o oposto de felicidade: Gabriel Henrique é acusado de matar Antonieli para não assumir a paternidade do filho que ela esperava. Isso porque ele era casado com outra pessoa, além de ser integrante de uma família evangélica de Pimenta Bueno (RO).
Em depoimento, Gabriel contou que teve um “ataque de ansiedade” quando descobriu a gravidez e começou a estrangular Antonieli enquanto eles estavam deitados “de conchinha”. Ele revelou que só parou o mata-leão quando não sentia mais o próprio braço, “de tanto que havia apertado o pescoço” dela.
O julgamento do caso não aconteceu, mesmo dois anos após o crime, e ainda não há uma data prevista. O processo chegou a ser suspenso por meses depois que a defesa do acusado alegou que ele sofre de insanidade mental. Porém, o laudo indicou que Gabriel “tem total capacidade e discernimento para averiguar o que é lícito e ilícito”.
Desde a pronúncia, a defesa de Gabriel entrou com recursos pedindo, entre outros pontos, a nulidade do depoimento que ele deu à polícia no dia do crime e a exclusão de qualificadoras como a do aborto. O recurso chegou até a última esfera: o Supremo Tribunal Federal (STF) e aguarda julgamento. Somente depois disso o júri será marcado.
- Antonieli Nunes, de 32 anos;
- Rayane Ferreira Nascimento, de 30 anos;
- Laryssa Victória, 17 anos;
- Ângela Maria Silva Duarte, de 51 anos;
- Katia Juliana Garcia, de 29 anos.
Todas foram mortas entre 2022 e 2023 em Rondônia. Uma porque estava grávida, outra porque se recusou a dançar com o ex-companheiro em uma festa, a terceira encontrada morta e enterrada depois de sair de casa para se divertir com as amigas. As histórias são diferentes, mas ligadas por um ponto: todas morreram de forma violenta em Rondônia apenas pelo fato de serem mulheres.
Histórias semelhantes a essa se repetem centenas de vezes nos últimos anos e refletem o que aponta o Fórum Brasileiro de Segurança Pública: Rondônia é o estado que mais mata mulheres no Brasil.
O Anuário de Segurança de 2023 aponta que as tentativas de feminicídio somam 41 vítimas no estado de Rondônia em 2022. No ano seguinte, houve um crescimento de 41%, totalizando 99 casos.
Partindo para outro recorte, mais de 7,7 mil mulheres sofreram violência doméstica em 2022 e 2023 em Rondônia. As taxas nos dois anos só perdem para o Mato Grosso: são as segundas maiores do Brasil. A taxa calcula a quantidade de vítimas para 100 mil habitantes.
Em 2022 e 2023, Rondônia perdeu 44 mulheres para o feminicídio. Nesse último, a taxa foi reduzida de 2,4 para 2,6 e ainda assim é quase duas vezes maior que a média nacional, que é 1,4. Nos últimos dois anos, o estado se consolidou como o mais letal para mulheres.
Mas por que Rondônia conserva esse status?
De acordo com a promotora Joice Gushy Mota Azevedo, que atua em júris de feminicídio, o machismo e a cultura de violência são os pilares que sustentam o título de estado mais violento para mulheres.
“A violência contra a mulher é tolerada e, em muitos casos, justificada. Uma visão excessivamente conservadora desqualifica e menospreza a vida de mulheres que não seguem um padrão pré-formatado e considerado de ‘mulheres de valor’. Assim, em casos de vítimas com um estilo de vida mais livre, mais ousado para os padrões conservadores ou que envolvam vícios, a vida da mulher é vista como de menor importância”, aponta.
A legislação brasileira tipifica o feminicídio como um crime de ódio ao gênero feminino, que geralmente ocorrem quando a vítima está em contexto de violência doméstica, assim como quando há menosprezo ou discriminação pelo simples fato dela ser mulher. Esse “ódio” é enraizado na sociedade.
“A nosso sentir, parcela considerável da sociedade rondoniense apresenta um perfil voltado à objetificação da mulher, com excessiva valorização de seu corpo e severas imposições culturais de submissão. O sentimento social de proteção à integridade física e psicológica, bem como, à vida da mulher é pequeno. As famílias de vítimas em relacionamentos abusivos pouco ou nada interferem para retirá-las de relações violentas até que o pior acontece”, aponta a promotora.
Anne Cleyanne é psicóloga e fundadora da Associação Filhas do Boto Nunca Mais, uma Organização Não Governamental (ONG) que tem um olhar voltado aos cuidados de mulheres e crianças em contexto de violência. Tal iniciativa nasceu de uma dor.
“Eu fui violada sexualmente pelo mesmo homem que abusou da minha mãe. Quando foi com ela ninguém acreditou, quando foi comigo ela me mandou para longe para me proteger. O comportamento da família sempre foi de optar pelo silêncio. Cresci sem família e fui exposta a outros tipos de violência. Quando entendi que isso é um problema de muitas meninas, não só meu, eu entendi que poderia transformar minha dor em ação”, comenta.
O descrédito nas vítimas de violência foi um padrão que Anne percebeu nos anos que passou à frente da Associação. Ela também cita outros problemas: machismo estrutural e falta de educação sexual. O próprio nome da Associação veio dessas experiências.
“Descobri que durante muito tempo a lenda do Boto foi usada para encobrir abuso sexual intrafamiliar. Ninguém se intrometia na vida de ninguém, então se a criança aparecia grávida, eles iam apontar que foi o pai que fez aquilo? Falavam que era do boto. Esse contrato foi mantido, o silêncio e o descrédito da vítima”, revela.
Além de grupos como a Associação Filhas do Boto, órgãos públicos unem forças para evitar violência contra a mulher e feminicídios ou puni-los quando for o caso.
O Ministério Público de Rondônia, por exemplo, recebe denúncias e auxilia no suporte jurídico, emocional e psicológico às vítimas. Além disso, o órgão tem uma Promotoria especialmente para a atuação no Tribunal do Júri em casos de homicídios dolosos praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino.
“A atuação do Ministério Público se destaca em ações preventivas, na busca e acompanhamento de medidas protetivas, no atendimento e orientação de vítimas, no acionamento dos órgãos da rede proteção e também em ações repressivas, no processamento para punição dos agressores e também adoção de providências para imposição de medidas cautelares, inclusive a prisão de agressores e feminicidas”, aponta a promotora Joice Gushy.
Outro atuante é o Tribunal de Justiça de Rondônia. O aplicativo “Módulo Lilás” foi lançado em novembro de 2022 pelo órgão com o objetivo de garantir o acesso mais rápido de mulheres vítimas de violência doméstica ao judiciário.
A quantidade de feminicídios denunciados à Justiça de Rondônia no primeiro trimestre de 2023 foi 153% maior em comparação ao mesmo período de 2021, de acordo com dados do Tribunal de Justiça do estado (TJ-RO). Março, marcado como “Mês da Mulher”, teve a maior quantidade de denúncias e julgamentos realizados.
São três os principais tipos de violência doméstica:
- Violência psicológica: situações que causam abalos emocionais na vítima, tais como constrangimento, humilhação, chantagem psicológica e até mesmo ameaças.
- Violência patrimonial: tem relação com dinheiros e bens do casal. O agressor controla o dinheiro e consequentemente a mulher não tem autonomia financeira.
- Violência física: são as agressões por meio de murros, tapas, chutes e outras formas. Mesmo que elas deixem marcas ou não.
De acordo com a advogada Sthefany Salomão, existem comportamentos do agressor que ajudam a identificar as fases da violência doméstica.
“Eles começam a se relacionar e aí vez ou outra começa um aumento de tensão. Ele se estressa por alguma coisa e geralmente coloca a culpa nela. Depois disso começam as agressões verbais, as agressões físicas e após esse ciclo é a chamada ‘lua de mel’: ele vem com flores, com pedido de perdão, fala que na verdade foi um covarde, que estava com raiva e a culpa é dela. A gente tem que lembrar que a culpa nunca é da vítima”, relata.
A denúncia pode ser feita pela própria vítima ou por testemunhas, mesmo anonimamente. É possível denunciar nos seguintes canais:
- Ministério Público de Rondônia
- Telefone: 180
- Telefone: 190
Após acompanhar por anos casos de violações contra as mulheres, a promotora Joice Gushy aponta que somente uma reconstrução cultural e de valores pode tirar Rondônia do ranking de estado com as maiores taxas de feminicídio e violência doméstica.
“É preciso que se forme uma sociedade que reconheça, com igualdade, os direitos, o espaço, as escolhas e o pensamento de todas as mulheres. O empoderamento e a liberdade das mulheres deve ser efetivamente materializado no seio social, com a compreensão de que mulheres empoderadas (leia-se com direitos e garantias reconhecidos em patamar de igualdade aos que são reconhecidos aos homens) e com a liberdade respeitada é que são o pilar de uma família estável e de uma sociedade verdadeiramente fraterna”, finaliza.
*Por Jaíne Quele Cruz, da Rede Amazônica RO
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