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Roraima registra casos de racismo religioso

Roraima registra casos de racismo religioso
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Sem representatividade institucional que os protejam, povos de terreiro de Roraima estão à mercê da intolerância e do racismo religioso. Estado registrou 34 casos do gênero desde 2020 (Foto: Paulo Roberto/Amazônia Real).


Eram 14 horas de 9 de julho, quando integrantes da Casa de Auxílio Espiritual Filhos da Oxum iniciaram um toque de Louvação ao Caboblo Zé Malandro. Nesse tipo de encontro, que reúne dezenas de pessoas, oferendas são entregues para louvar a entidade religiosa. Em 15 minutos de cerimônia, um forte estrondo foi ouvido logo após começarem os cantos e os sons dos atabaques. “Quando olhamos para o telhado do barracão, que é de zinco, vimos o buraco”, lembra a candomblecista Inadira Souza. Entre os presentes, a sacerdotisa Ekedi Nena apresentava uma perfuração profunda na região peitoral. A violência que atende pelo nome de intolerância religiosa estava apenas começando.

A Casa de Auxílio Espiritual Filhos da Oxum, localizada no bairro de São Bento, na capital Boa Vista, é mais uma entidade na região Norte a se sentir desamparada. Roraima é o único Estado brasileiro que ainda não possui um Conselho de Igualdade Racial, e a intolerância se volta contra as religiões de matriz africana.  Sem representatividade institucional, os povos de terreiro se tornam vulneráveis e quase não têm a quem recorrer. Naquele 9 de julho, foram eles próprios que tiveram de socorrer a sacerdotisa Ekedi Nena, prestando os primeiros socorros, já que a ambulância do Samu solicitada não chegou a aparecer.

Os integrantes do terreiro foram então prestar depoimento na Delegacia do 5º Distrito Policial, na zona leste de Boa Vista. O crime foi registrado pela Polícia como Lesão Corporal e Dano. Ao retornarem para o barracão, o grupo religioso decidiu dar continuidade à atividade, mas uma nova violência estava por vir. Desta vez, era a polícia.

Inadira Souza candomblecista, a Casa dela sofreu um ataque com bomba em julho deste ano em Boa Vista (Foto: Paulo Roberto/Amazônia Real)

“No início da noite, quando estávamos no meio da celebração que já havia sido interrompida, a polícia, provavelmente chamada pelo mesmo vizinho intolerante que jogou a bomba no telhado, bateu na nossa casa para reprimir os sons dos atabaques. Quando precisamos deles eles não vieram, mas horas depois apareceram para nos reprimir”, questiona Inadira.

De acordo com Idinara, esta não é a primeira vez que a Casa Espiritual Filhos de Oxum sofre retaliações. “Nós estávamos ensaiando para essa celebração do seu Zé Malandro, quando soltaram também uma bomba na frente da casa. A gente tá levando, esperando a conclusão do inquérito policial pra poder se manifestar”, resume a vítima. Segundo a Polícia Civil, as intimações dos envolvidos no caso já foram expedidas.

Episódios de intolerância religiosa são recorrentes. Segundo dados do Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (Sinesp) da Polícia Civil de Roraima, entre janeiro de 2020 a agosto de 2022 foram registradas 34 ocorrências de prática de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia religião ou procedência nacional (racismo) no Estado. Os povos de matriz afro da região Norte vivem o mesmo drama, como a reportagem da Amazônia Real em casos ocorridos no Amazonas, Pará e Maranhão.

Sem proteção do Estado  

Cerca de um mês após o ataque à Casa Espiritual Filhos de Oxum, no dia 11 de agosto, o Pai Júlio César dos Santos, de 53 anos, foi assassinado. O crime ocorreu na casa da vítima, anexa ao terreiro dele, localizado no bairro de Boa Vista. Dois adolescentes de origem venezuelana, de 17 anos, confessaram o crime, motivado por uma suposta discussão. Eles foram encaminhados a um centro socioeducativo.

Segundo a Polícia Civil, o homicídio não teve motivação religiosa, tendo em vista que o local onde os trabalhos espirituais eram realizados estavam preservados. Porém, para Ekedi Val, sacerdotisa e filha de santo de Pai Júlio, o episódio revela a falta de apoio e políticas públicas voltadas às lideranças de matriz afro da região.

“Se as nossas casas de santo tivessem mais proteção, se o Governo olhasse por nós, talvez isso não tivesse acontecido. O Pai Júlio era um homem muito caridoso, ele fazia pelas pessoas carentes o que muitas vezes não vemos o Estado fazer. Ele dava abrigo, arrumava emprego, fazia cestas básicas para ajudar as famílias que chegam no nosso Estado. Foi essa caridade, esse fazer o bem sem olhar a quem que somado com a falta de proteção do governo ocasionou a morte dele”, lamenta Ekedi Val.

Ainda de acordo com a Ekedi Val, com a morte violenta de Pai Júlio, o terreiro vai fechar as portas. “Eu sei que de onde estiver, ele está nos olhando e nos orientando para seguirmos o nosso caminho da melhor maneira. Infelizmente a casa do meu pai vai fechar, mas a ancestralidade não se cala, existem outras casas que seguem dando continuidade aos nossos ensinamentos e religião”, diz.

Em nota, o governo de Roraima afirma que “tem buscado diálogo com os movimentos sociais voltados às religiões, a fim de fortalecer uma rede de proteção e o devido cumprimento da Lei. E por meio desse canal, tem atendido as ocorrências e adotado as devidas práticas dentro da Lei”.

Falta de representatividade

Tata Bokule é sacerdote, fundador da Fecaber e acompanha o processo de criação do Conselho de Igualdade Racial de Roraima (Foto: Paulo Roberto/Amazônia Real)

Segundo o sacerdote Tata Bokule, autoridade afro-religiosa que acompanha o processo de criação do Conselho de Igualdade Racial, as atividades estavam estagnadas. “Estamos desde março lutando para que seja criado o conselho. A proposta de criação dele ficou por muito tempo sob a tutela da Secretaria de Cidadania e não conseguimos nada. Aí este ano passou para a pasta da Secretaria do Bem Estar Social e Trabalho. Descobrimos que a chamada para retomar os trabalhos foi feita em março mais por uma cobrança nacional da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), porque somos o único Estado do Brasil que até agora não aderiu ao Sistema”, revela.

Ainda de acordo com Tata Bokule, a minuta do documento de criação do Conselho de Igualdade Social de Roraima já foi criada e precisa ser aprovada pela Assembleia Legislativa. “A gente vê isso muito devagar. Não temos mecanismo suficiente para esta luta, só temos a nossa voz, o nosso grito. Agora a gente ganhou o apoio da Defensoria Pública do Estado. Já tivemos a sinalização da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), que também vai fazer parte deste conselho. A gente segue se movimentando como pode”, afirma.

Segundo nota enviada pelo governo de Roraima, a elaboração da minuta de Lei já foi encaminhada para a Casa Civil para passar por análise jurídica, pois a inserção de uma nova política, altera a estrutura governamental. Ainda em nota, o governo ressalta que, além dos encaminhamentos realizados pelo próprio Estado, foi realizado contato junto aos movimentos sociais, reforçando o interesse pela política de igualdade.

Estratégias de enfrentamento 

Tata Bokule é sacerdote, fundador da Fecaber e acompanha o processo de criação do Conselho de Igualdade Racial de Roraima (Foto: Paulo Roberto/Amazônia Real)

Como uma forma de enfrentar casos de intolerância religiosa e também o racismo institucional na região, as lideranças afro-religiosas de Roraima fundaram em março deste ano a Federação de Cultos Brasileiros, Umbanda e Ameríndios do Estado de Roraima (Fucaber). Segundo Tata Bokule, a federação é uma via de diálogo com a sociedade.

“Estamos nos organizando nos espaços públicos, participando de conferências, dando nosso grito por meio de reportagens. Em abril fizemos a carreata Confraria de São Jorge, uma forma da gente mostrar para a população nossa religiosidade, mostrar que também temos a fé louvada e um compromisso religioso com o nosso povo, não há necessidade deste mecanismo de revolta contra a gente, fazendo com que a população vá contra nossa religião, nos apedrejando e fazendo violências contra nós”, aponta.

Ainda de acordo com Tata Bokule, a Fucaber surge em um momento em que é importante avançar nas pautas dos povos de terreiro, fazendo frente ao fascismo e racismo. “Precisamos criar formas de nos reerguer, resistir, para que não sejamos dizimados. E este é um chamado para as lideranças, para que possamos dar nosso grito de liberdade e fé. Seguimos resistindo e vamos resistir sempre”, conclui.

Casa de Auxílio Espiritual Filhos da Oxum em Boa Vista, Roraima (Foto: Paulo Roberto/Amazônia Real)

Leia mais sobre o tema em:

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