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ToggleDepois de o Brasil ser condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, comunidades que tiveram direitos violados pela construção da base de foguetes nos anos 1980 reivindicam agora a titulação de suas terras (Foto: Francisco Proner/FARPA/CIDH/2018).
Manaus (AM) – “Depois de mais de 40 anos de luta, a Justiça reconheceu que as comunidades de Alcântara foram violentadas em muitos aspectos”, celebrou Dorinete Serejo Morais, integrante das coordenações do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe). A Justiça em questão é a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que no último dia 13 de março condenou o Brasil por ter permitido que a Força Aérea Brasileira (FAB) violasse os direitos das comunidades quilombolas no Maranhão. Nos anos 1980, a construção do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) expulsou 312 famílias de 32 comunidades da área, que foram reassentadas em sete agrovilas, mas sofrem com consequências até os dias atuais.
“Muita gente pensava que a gente não ia conseguir nada com a nossa luta, e a vitória chegou não só para Alcântara. É uma vitória que serve de parâmetro para outros casos de comunidades quilombolas e outros povos do Brasil que lutam por direitos humanos, que lutam por terra, por território”, afirmou Serejo, que também faz parte da Associação do Território Étnico Quilombola de Alcântara (Atequila).
A decisão é considerada inédita, uma vez que o Estado brasileiro foi condenado pela primeira vez em um caso envolvendo comunidades quilombolas. Também é o primeiro caso em que os interesses das Forças Armadas são confrontados em um tribunal internacional.
Moradora do quilombo São Maurício há mais de 30 anos, a agricultura familiar Valdirene Freitas reforça que os 40 anos de lutas e sofrimento foram reparados pela decisão, mas que ainda aguarda a titulação do território. “Agora a luta é ter nosso território titulado, é tudo que estamos esperando há bastante tempo. A condenação do Estado brasileiro sobre todos os nossos direitos que foram negados por anos, faz cada dia a gente não desistir de lutar”, diz Valdirene.
As violações reconhecidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos abrangem o direito à titulação coletiva do território, à livre utilização e circulação na área, à moradia, à alimentação, à educação, à participação cultural, à proteção da família e à consulta livre, prévia e informada, conforme a Convenção n°169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A Corte concluiu que essas ações comprometeram o “projeto de vida coletivo” de 171 comunidades quilombolas que foram expulsas para a construção do CLA durante a ditadura militar.
Houve grupos de quilombolas que permaneceram no território, e eles também denunciam que ao longo do anos sofreram ameaças constantes de expulsão para a ampliação da base.
Como medida de reparação, o governo brasileiro terá até três anos para titular os 78,1 mil hectares do território tradicional e deverá pagar 4 milhões de dólares americanos às associações de quilombolas de Alcântara. A administração federal será obrigada a realizar consultas livres, prévias e informadas sobre qualquer decisão que os afete, promover um ato público de reconhecimento de sua responsabilidade e estabelecer uma mesa de diálogo permanente com as comunidades quilombolas.
Os países signatários da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) são obrigados a cumprir as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, mas não existem sanções legais diretas, como multas impostas pelo Judiciário nacional, caso o não cumprimento ocorra. Contudo, o descumprimento dessas determinações pode resultar em um significativo desgaste diplomático para o país, afetando sua imagem perante a comunidade internacional.
“Se todas as obrigações que constam na sentença forem cumpridas, essa sentença tem o potencial de influir diretamente na melhoria da qualidade de vida das comunidades, e sobretudo do ponto de vista prático, vai dar segurança jurídica às comunidades porque vai dar, por exemplo, o direito de propriedade das comunidades e a aspectos relativos à reparação e indenização”, explicou Danilo Serejo, quilombola de Alcântara, cientista político e assessor jurídico do Mabe.
Danilo Serejo, primo de Dorinete, pontua que a publicação da sentença não encerra o caso. “Agora, a Corte vai continuar acompanhando para verificar se o Estado está implementando a decisão. O próximo passo é a criação de um grupo de trabalho conjunto entre governo, comunidades e suas organizações representativas para discutir como a sentença será aplicada.”
O caso só chegou à Corte em janeiro de 2022, após mais de duas décadas tramitando no Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, ligado à Organização dos Estados Americanos (OEA). A denúncia foi apresentada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 2001, em um esforço demandado por representantes de comunidades quilombolas do Maranhão e organizações como o Movimento dos Atingidos para Base de Alcântara (Mabe), a Justiça Global, a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Maranhão (Fetaema), o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alcântara (STTR) e a Defensoria Pública da União (DPU), que entrou no caso em 2017.
Melisanda Trentin, representante da ONG Justiça Global, reforça que o Brasil está inserido em um sistema internacional de proteção aos direitos humanos e faz parte da Convenção Americana desde 1992, além de ter aceitado a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) em 1998.
“Já faz muito tempo que o Brasil é cobrado nesse sentido, com diversas condenações para cumprir direitos que não conseguiu garantir apenas com o seu direito interno e suas instituições. Quando um direito que deveria ser assegurado dentro do Brasil não é garantido, recorre-se aos tribunais internacionais” explica Trentin. A Corte IDH pode, então, emitir sentenças e o país condenado se vê obrigado a cumprir essas decisões. “Não se trata de um constrangimento simbólico, mas de uma obrigação concreta, que só se encerra quando todos os pontos da decisão forem cumpridos, sendo a titulação das terras um dos aspectos centrais dessa sentença”, diz.
Além disso, Trentin explica que a Corte também reconheceu as violações provocadas pela emissão de títulos individuais durante o governo Bolsonaro, o que implica que o Brasil terá que reparar essas violações.
Em 11 de fevereiro de 2021, o presidente Jair Bolsonaro (PL) participou de uma cerimônia onde entregou títulos de propriedade a 125 famílias que vivem nos 15 hectares de terra rural oferecidos às comunidades após a construção do CLA.
“Essa sentença é um marco concreto. Outras tentativas de resolver o problema, por meio de diálogos, acordos e ações judiciais, não surtiram efeito. Muitas decisões judiciais não foram cumpridas e diversos acordos não foram implementados como deveriam em relação aos direitos das comunidades quilombolas”, lembra a representante da Justiça Global.
Resistência quilombola

Durante a elaboração do projeto do CLA, ainda na década de 1970, os governos federal e estadual não realizaram nenhum estudo de impacto sociocultural e ambiental. Ignorou processos de consulta e consentimento prévios, como exige a Convenção nº 169 da OIT. Expulsas de suas terras para viver as agrovilas, os quilombolas vivenciaram a perda de seus costumes e práticas tradicionais.
Entre as violações mais recentes, estão a ação arbitrária no território em 2008, que levou as lideranças de Alcântara a denunciarem o Estado à OIT, por meio do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, pela falha em cumprir a Convenção 169 no Projeto Alcântara Cyclone Space – Acordo de Cooperação Tecnológica Brasil – Ucrânia. As empresas contratadas invadiram e destruíram roças nas comunidades de Mamuna e Baracatatiua, tentando implantar três novos sítios de lançamento.
Em 2019, o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas, assinado pelo governo Bolsonaro com os Estados Unidos para fins comerciais, desconsiderou até mesmo a recomendação da CIDH de realizar estudos e consultas prévias aos quilombolas. No ano seguinte, em plena pandemia de Covid-19, o governo federal determinou novas remoções para o projeto, o que afetaria cerca de 800 famílias, especialmente das comunidades de Mamuna e Canelatiua. Contudo, o despejo foi suspenso pela justiça.
O julgamento do caso pela Corte Interamericana foi realizado em abril de 2023, no Chile, quando durante uma audiência o Estado brasileiro reconheceu parcialmente as violações cometidas e pediu desculpas. As organizações peticionárias se manifestaram logo após a audiência, alegando que o reconhecimento, além de incompleto, não apresentava medidas efetivas para imediata titulação e reparação dos quilombolas.
Em março do mesmo ano, pouco antes do julgamento, quilombolas da comunidade Vista Alegre sofreram uma tentativa de despejo violenta. Militares da FAB lotados no CLA e agentes da Polícia Federal (PF) invadiram uma área da comunidade, ferindo diversas pessoas, incluindo crianças, mulheres e idosos. Durante a operação, foram usados balas de borracha e gás lacrimogêneo. A reintegração de posse visava liberar um imóvel que, conforme o Centro de Lançamento de Alcântara e a Advocacia-Geral da União (AGU), teria sido ocupado de maneira ilegal.
“Essa condenação é um marco histórico para as comunidades quilombolas de Alcântara, pois reafirma seus direitos e impõe obrigações ao Estado brasileiro para corrigir injustiças históricas. Um exemplo dessas violações foi o que ocorreu em nossa comunidade, Vista Alegre, que faz parte do mesmo território e sentimos na pele a ação truculenta do estado”, comemora a liderança quilombola Moisés Costa, morador de Vista Alegre.
Titulação do território


Centro histórico de Alcântara (Foto: John Jessé/WikiMedia) e quilombolas (Foto: Francisco Proner/FARPA/CIDH/2018).
Alcântara está situada na região metropolitana de São Luís, capital do Maranhão, e possui uma população de 18,4 mil habitantes, dos quais 85% se autodeclaram quilombolas. De acordo com dados do Censo 2022 do IBGE, o município é o maior do Brasil em proporção de pessoas quilombolas.
Mas as comunidades quilombolas da região só foram reconhecidas pela Fundação Palmares em 2004. Desde 2008 o processo de titulação das terras quilombolas está parado no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Em julho de 2024, a Organização Internacional do Trabalho já havia recomendado que o Brasil titulasse as terras e respeitasse o direito à consulta das comunidades.
Para avançar com o processo de titulação definitiva, em setembro de 2024 o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT)
firmou um acordo com as comunidades, comprometendo-se a titularizar o território até o final do mandato do atual governo, além de não expandir a Base de Lançamentos de Alcântara. Depois do acordo assinado, foi criado um grupo de acompanhamento do processo de titulação com representantes do governo e lideranças de Alcântara.
Segundo as lideranças, a regularização fundiária do território está avançando. “Já tivemos uma reunião presencial em Brasília em fevereiro e, na próxima semana, teremos outra, que será híbrida. Em relação à parte do território que foi desapropriada para a instalação, a titulação está praticamente pronta. É bem provável que ainda este ano a titulação dessa área seja concluída. O outro lado, onde ainda há proprietários, está levando mais tempo, mas o processo também está em andamento”, disse Dorinete Serejo.
Aniceto Araújo Pereira, trabalhador rural aposentado e presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alcântara, destaca que, embora a decisão da Corte seja um grande marco, a verdadeira vitória será o cumprimento efetivo dessa decisão pelo Estado brasileiro. Ele ressalta que, para as comunidades quilombolas de Alcântara, não basta a condenação, mas sim a ação concreta do governo em fazer valer a sentença da Corte. Segundo ele, se o Estado não cumprir as determinações, a decisão perde seu valor real.
A liderança também enfatiza a importância da pressão social, da mídia e da movimentação popular para garantir que o Estado reconheça a irregularidade e cumpra a sentença, especialmente no que se refere à titulação urgente do território quilombola de Alcântara. Ele lembra que o momento de celebração será quando o governo entregar o título de reconhecimento do território.
“O Incra tem que reconhecer urgentemente essa decisão da Corte, para nós é importante a titulação urgente, o reconhecimento do território e a nossa titulação. A nossa grande vitória é com a certidão do título do território em mão, esse grande título coletivo que a gente espera e aí sim, será uma grande comemoração”, diz.
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