“Perdemos o momento histórico para garantir a proteção do Cerrado. Esperem o pior”
Não há nada para comemorar. Dia do Cerrado é como um aniversário em um quarto de UTI, festejando o paciente desenganado, entubado e em coma induzido. Misto de hipocrisia e ingenuidade excruciante em meio a baboseiras coloridas. O Cerrado está em franco processo de desaparecimento. Alarmes são dados há tempos. Os sinais eram claros, os indicadores quantitativos – disponíveis há anos – eram inequívocos. A conservação estava perdendo, vexatoriamente, a luta pelo Cerrado. Mas a sociedade brasileira não se comoveu e, agora, assistimos o processo contínuo e irreversível do solapamento do que resta do bioma Cerrado.
Praticamente restrito aos limites do território brasileiro, com alguma extensão na Bolívia e no Paraguai, o Cerrado combina elevada biodiversidade, uma relevante participação de organismos únicos e a marcha inexorável de um modelo de ocupação avidamente sequioso, obcecado por arrolar terras em ritmo galopante. Tal condição garantiu ao Cerrado o nada meritório título de “hotspot” global da biodiversidade, agraciado a regiões especiais e desaventuradas do Planeta, onde a biodiversidade se concentra, mas está formidavelmente ameaçada pela atividade humana. Uma espécie de G20 do apocalipse, com membros já efetivos, mas com diversos novos candidatos a caminho.
Por ser a savana mais quente e úmida do planeta (há diversos locais no Cerrado onde a pluviosidade é comparável a regiões da Amazônia), o Cerrado é também a mais biodiversa e heterogênea savana, apresentando diferenças regionais, refletindo sua vizinhança com outros biomas, a sua altitude, a sua latitude e a presença de grandes rios. Devido à expressiva pluviosidade do Cerrado, sua extensão, sua vegetação e sua história geológica, o bioma recebeu a alcunha de “berço das águas do Brasil”, refletindo a riqueza das nascentes, dos rios e dos aquíferos que aqui estão e que dependem dessa complexa paisagem para sua manutenção.
São centenas de bacias hidrográficas, mais de uma dezena de milhares de espécies de plantas, milhares de vertebrados, incontáveis invertebrados. Um enorme potencial biotecnológico se oculta na biodiversidade do Cerrado, onde investimentos em pesquisas poderiam tornar esse potencial uma realidade para a sociedade e para que outros modelos de desenvolvimento para o Bioma (e para o país). O Brasil deveria se orgulhar de ter quase todo Cerrado em seu território e por levar o Cerrado em seu coração geográfico. Mas a magnificência do Cerrado não ressalta aos olhos da sociedade brasileira, ofuscada pelo pó que se eleva das terras arrasadas. O que acontece hoje no Cerrado com a soja, com o algodão, com o milho, com o boi e com a cana-de-açúcar reflete a história recente da Mata Atlântica, o bioma mais devastado do Brasil, com o café, a cana-de-açúcar e com o boi.
Segundo a plataforma do MapBiomas, resta hoje uns 30% da Mata Atlântica e menos de 50% do Cerrado. No entanto, na Mata Atlântica há regiões montanhosas, que não permitem a mecanização e limitam a ocupação, além de áreas de manguezais e estuários. Mais ainda, a Mata Atlântica ocupa um espaço no imaginário coletivo diferente do ocupado pelo Cerrado. No Cerrado temos pouquíssimas áreas onde o relevo efetivamente impede a sua ocupação e a sociedade só pensa em “fronteira agrícola” quando escuta “Cerrado”. O fato é que o potencial de ocupação, de destruição e de fragmentação do Cerrado é bem maior que o observado na Mata Atlântica, onde também há muitas áreas em regeneração recente. Não é difícil projetar um futuro no qual o Cerrado restará apenas nas poucas Unidades de Conservação de Proteção Integral que possui.
O fato é que já perdemos a oportunidade histórica de proteger de forma minimamente responsável o Cerrado, sua biodiversidade, seus serviços ecossistêmicos e seu potencial biotecnológico para a sociedade. E, falando objetivamente, não há proteção responsável do Cerrado sem o estabelecimento de uma rede ampla de Unidades de Conservação de Proteção Integral, as únicas categorias de proteção que efetivamente evitam o desmatamento no bioma e são, reconhecidamente, as ferramentas mais efetivas na proteção da biodiversidade. Praticamente todas as ações que hoje vemos para o bioma são parte de uma triste festa, onde os desenganados sabem se tratar de uma despedida, enquanto os otimistas crônicos sonham com efemérides de significados esvaziados.
Embora os primeiros Parques Nacionais do Cerrado tenham sido criados nos anos 60, apenas em 1998 ocorreu o primeiro exercício para identificar áreas prioritárias para a conservação da biodiversidade do Cerrado e Pantanal. Eu participei dessa oficina, bem como das subsequentes, já utilizando o Planejamento Sistemático da Conservação. Essas áreas prioritárias seriam os locais para a criação de novas Unidades de Conservação de Proteção Integral. Era o momento para investir fortemente na criação de uma ampla rede de Unidades de Proteção Integral. Havia esperança. Fugidia, mas havia.
No entanto, concomitantemente a esses exercícios, ocorreu forte avanço do desmatamento do Cerrado, onde taxas anuais de desmatamento acima de 1% do bioma não eram raras. Uma taxa de desmatamento por volta de 1% representa, em território, a eliminação de aproximadamente quatro Distritos Federais de Cerrado por ano ou cerca de 10 mil hectares/dia (um hectare equivale, grosso modo, a 1,5 campo de futebol). Se no final dos anos 90 e início dos anos 2000 houvesse o investimento na criação de áreas protegidas em ritmo semelhante ao ritmo do desmatamento, em poucos anos teríamos alcançado as metas mínimas de conservação previstas nos acordos firmados pelo Brasil na Convenção da Diversidade Biológica (CDB/ONU). Mas esse momento passou.
As políticas conservacionistas efetivas no Cerrado não acompanharam as políticas de ocupação territorial. Simplesmente não foram criadas Unidades de Conservação de Proteção Integral no ritmo na qual deveriam ter sido criadas, conforme alertado há quase três décadas. O resultado é que, em um bioma com 48% de áreas naturais, estamos falando de poucas décadas até que não exista mais desmatamento no Cerrado pela simples ausência de novas áreas a serem desmatadas. Pelo simples desaparecimento de áreas naturais de Cerrado.
O desmatamento no Cerrado não tem diminuído ao longo do tempo. Na verdade, tem acelerado rapidamente. Taxas recentes de desmatamento no Cerrado estão alcançando 2% do bioma ao ano. Diferentemente da Amazônia, onde há vastas áreas de terras devolutas ou pertencentes à União, a grande maioria das terras do Cerrado já foram destinadas, principalmente para a iniciativa privada. Com isso, o combate ao desmatamento na Amazônia é bem mais simples, visto que muito desse desmate não é autorizado e ocorre em áreas invadidas. No Cerrado, por outro lado, são desmatamentos que ocorrem no interior de propriedades privadas, onde a maioria é autorizada pelos órgãos estaduais de meio ambiente dos Estados. Os proprietários têm o direito de desmatar suas propriedades dentro do que prevê o Código Florestal, o qual foi profundamente modificado em 2012, favorecendo ainda mais o desmatamento nas propriedades. Com isso, não há surpresa alguma nos resultados positivos da fiscalização contra o desmatamento na Amazônia no atual governo. Por outro lado, também não há surpresa alguma na incapacidade em frear o desmatamento corrente no Cerrado. Em viagem recente ao oeste da Bahia, um dos campeões de perda de Cerrado, ouvi de proprietários que havia um temor com uma eventual “moratória da soja”, onde seriam proibidos de desmatar. Daí a pressa na “supressão vegetal”. Fake News contra o Cerrado.
A concessão de licença para “supressão vegetal” é atribuição dos órgãos ambientais estaduais e, a despeito de compensações e cuidados que devam ser observados no papel, o fato é que tais licenças são aprovadas em ritos praticamente cartoriais. Talvez essa realidade reflita a mentalidade agrodogmática dos governos estaduais presentes em praticamente todos os estados onde ocorre Cerrado. Esses governos não irão, de forma alguma, investir em ações que representem conflitos com interesses do agrolobby. Mas a questão vai mais além. Nessa mentalidade, há oposição ideológica a tudo que represente garantias de proteção à natureza, à valorização da ciência e a diversas outras propostas de cunho progressista e/ou civilizatório. Seria ingenuidade imaginar que tais governos teriam interesse na criação de Unidades de Conservação de Proteção Integral estaduais “apenas” para proteger o Cerrado.
Podemos pensar então nos proprietários de terra que valorizam a natureza. Certamente são muitos, correto? Poderíamos investir em fortes campanhas visando a criação de Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPN), criadas com objetivos de compensação, turismo na natureza, contemplação, pesquisa, pagamento por serviços ecossistêmicos, dentre outros. Poderíamos sim, é claro. Deveríamos, até. No entanto, mesmo com décadas desde a criação da primeira RPPN no Cerrado, as quase 300 reservas existentes hoje protegem menos de 190 mil hectares, área menor que o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Se por um lado as RPPN representam um investimento eventualmente oneroso para os proprietários, afinal a terra é cara e as reservas estarão fora das atividades econômicas regulares da propriedade, a quantidade de terras mobilizadas para a conservação nessa categoria ainda é pequena. Considero RPPNs extremamente relevantes, com diversos papéis de destaque no sistema de áreas protegidas, mas mesmo que dobrem em área nos próximos 10 anos, temo que permaneçam como fragmentos distantes, espalhados na paisagem do Cerrado, ou concentradas nas proximidades imediatas de Unidades de Conservação maiores. Mas além das queixas sobre custos e dificuldades em criar RPPNs, novamente a oposição ideológica contra a conservação contaminou muitos proprietários e, embora eu não tenha visto dados, não me surpreenderia que o número de pedidos para a criação de novas RPPNs tenha diminuído nos últimos anos.
Vamos pensar então no governo federal. É um governo relativamente novo, sensível à necessidade de proteção da natureza, correto? Certo e errado. Apesar do discurso e da retomada de ações aqui e ali de conservação e fiscalização, a criação de Unidades de Conservação de Proteção Integral representa ônus políticos regionais importantes, que não interessam a um governo que luta pelo seu fortalecimento político junto aos estados e ao Congresso. Desapropriar terra? Pode tirar o cavalinho da chuva! Mudar a destinação de áreas, aplicando forte regramento ambiental? Nesse país politicamente em frangalhos? Não interessa! Por outro lado, há setores de apoio ao atual governo de forte mentalidade sociodogmática, de oposição ideológica à Proteção Integral da Natureza. Tais grupos resumem a questão ambiental à luta social por terra, papagaiando retóricas como “extrativismo sustentável”, “coexistência harmoniosa” ou “sabedoria ancestral”, de apelo aconchegante, mas sem comprovação objetiva, quantitativa ou temporalmente adequadas, e que fragiliza sobremaneira ações visando à proteção integral da biodiversidade. A distribuição e o acesso a terras no Brasil refletem diversas injustiças passadas, gerando a atual insegurança fundiária, que ameaça diversas pessoas. Desta forma, é imperioso que o país reformule diversos aspectos de sua política fundiária e de seu planejamento de ocupação territorial. No entanto, todos os movimentos são unânimes em afirmar que no país há terras em abundância. A proteção integral da biodiversidade, sem a crônica presença de interesses humanos sobre a natureza, tem que ser equalizada nessa abundância de território. Mas duvido que caiba proteção da biodiversidade nesse espectro de imaginário ideológico.
A proteção integral da biodiversidade, sem a crônica presença de interesses humanos sobre a natureza, tem que ser equalizada nessa abundância de território.
É possível que novas unidades de conservação sejam criadas? Sim, é possível, embora improvável. Acordos fundiários podem ocorrer e a destinação escolhida para determinadas áreas seja a criação de Unidades de Conservação. No entanto, a criação de novas áreas dificilmente representará a proteção de mais 10% do território do bioma na forma de UCs de Proteção Integral. Não tenho esperança nem em 1% a mais de proteção.
Todo confete eventualmente lançado no festejo do dia do Cerrado não permanecerá no dia seguinte. São frágeis em forma e conteúdo, com baixa capacidade de evitar mais desmatamentos ou mesmo reverter a tendência de redução das áreas naturais. A garantia mais efetiva que poderia ter sido tomada para a proteção do Cerrado – a criação de uma rede de Unidades de Conservação de Proteção Integral –, não se tornou realidade no momento histórico correto. Falhamos como sociedade presente e como sociedade futura.
Não é difícil imaginar um cenário para o Cerrado onde apenas uma fração miserável da biodiversidade do bioma resista na limitada proporção de Unidades de Conservação de Proteção de Integral atual. Esse cenário já está desenhado na dinâmica de ocupação e desmatamento do bioma. No entanto, se o pouco mais de 3% do Cerrado nessas Unidades de Conservação parece ridiculamente insuficiente e abusivo, o cenário pode se tornar ainda pior. Considerando as forças que hoje se levantam contra o Cerrado, independente do espectro político, não me surpreenderia com o quase completo desaparecimento do Cerrado nas próximas décadas.
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