A agricultora familiar Alcineia Pinho Cadete, de 43 anos, é Wapichana e, na comunidade Cauanaunim, onde vive, cultiva plantas tradicionais medicinais da cultura indígena, por isso, tem uma relação especial com as plantas. A comunidade dela, assim como a Malacacheta e a Tabalascada, no Norte de Roraima, participam de uma capacitação onde aprendem a técnica de plantio que usa sementes diversas para reflorestamento do lavrado — e também como forma de geração de renda.
O projeto ‘Produção de sementes nativas e restauração ecológica’ é uma iniciativa do Instituto Socioambiental (ISA) que tem como objetivo incentivar as comunidades indígenas a restaurar a vegetação de áreas consumidas por queimadas e pelo desmatamento.
Para isso, os indígenas são introduzidos ao conceito de muvuca: uma técnica que mistura sementes de diversas espécies e tipos para plantio por semeadura direta no solo onde ela ficará. Alcineia não conhecia essa técnica, e já levará o que foi aprendido para a rotina na comunidade, onde junto com outras mulheres, cultiva as plantas medicinais.
“A muvuca se relaciona diretamente com a medicina tradicional. Essas plantas são utilizadas de várias formas em nossa comunidade, tanto como remédio quanto como alimento. O projeto de reflorestamento fortalece ainda mais a conservação das nossas florestas, nascentes e matas. Mesmo em áreas de lavrado, existe um ecossistema que precisa ser preservado”, disse a agricultora.
O Grupo Rede Amazônica acompanhou o primeiro contato dos indígenas com a técnica, em uma reunião no Malocão da comunidade Tabalascada, no município do Cantá, Norte de Roraima. A ideia do ISA é oferecer apoio inicial aos indígenas, oferecendo as sementes e criando o que chamam de “redário”, mas quem vai implementar e continuar o projeto são os próprios moradores.
Emerson Cadete é da comunidade Tabalascada e é o assessor técnico do ISA que vai tocar o projeto. Ele explica que inicialmente o projeto deve ser trabalhado com em dois eixos: produção de sementes nativas e restauração ecológica.
O projeto surgiu no Parque Indígena do Xingu, com moradores do local para reflorestar áreas degradadas e ajudar os indígenas financeiramente — deu certo e o ISA resolveu levar para outros lugares. No Norte de Roraima, quem mais entende da vegetação do lavrado são os povos originários e, de acordo com Emerson, há grandes expectativas para o projeto no extremo Norte do país.
“Estamos num momento delicado, com alta taxa de desmatamento e queimadas intensas. Muitos fazendeiros e até indígenas, por falta de consciência, derrubam a mata para vender a madeira. O ISA fortalece as comunidades e a questão cultural”.
“Queremos incentivar não só a preservação, mas também a restauração, que também é essencial”, disse o assessor.
No primeiro momento, a participação do ISA será na distribuição e na compra dessas sementes produzidas pelos indígenas, mas sempre incentivando a independência para que os membros das comunidades sigam com o projeto de forma autônoma.
Para o tuxaua da comunidade Tabalascada, César da Silva, a ideia do ISA chega em boa hora para os indígenas, já que encontrar maneiras de unir desenvolvimento com recuperação ambiental é algo que interessa a todos.
“Esse projeto é algo que almejávamos há alguns anos, pois não tínhamos oportunidade até agora. Não temos uma instituição com CNPJ que nos permita acessar certos projetos. No ano passado, conseguimos uma parceria com o ISA, o que foi bastante importante para nós, pois finalmente tivemos a chance de realizar algo que desejávamos há muito tempo”.
“Falamos muito sobre preservação, mas nunca havíamos pensado em recuperar nossas áreas ou replantar árvores nativas. Esse projeto chegou em boa hora para nós. Apesar da seca severa e dos incêndios deste ano, agora temos a oportunidade de recuperar nossas áreas degradadas. Esse projeto, com a parceria do ISA é realmente importante para a comunidade”, disse o tuxaua.
O conceito de muvuca foi apresentado aos indígenas durante a primeira capacitação. A analista sênior de restauração ecológica do ISA, Danielle Celentano, foi quem introduziu os conceitos para as comunidades.
De acordo com ela, a restauração ecológica consiste em recuperar florestas, lavrados e outros ecossistemas nativos, trazendo de volta os benefícios que esses ambientes naturais oferecem para a humanidade. Ela destaca que esses benefícios são chamados de serviços ecossistêmicos, incluindo a provisão de alimentos, madeira, pesca, água, a regulação do clima e das águas, entre outros.
Para isso, a muvuca é uma das saídas para restaurar áreas degradadas de diferente formas. Ela explica que sementes nativas estão presentes em áreas conservadas, preservadas por populações indígenas e comunidades tradicionais, pois “essas pessoas são as guardiãs das sementes”.
“Essa técnica envolve a mistura de dezenas de espécies diferentes, que são plantadas simultaneamente. Essa estratégia imita o mecanismo de regeneração natural da floresta, resultando em uma estrutura e diversidade muito semelhantes à floresta original. Além disso, permite um ganho de escala e fomenta uma economia baseada na sociobiodiversidade, ou seja, a economia das sementes nativas”.
A participação dos indígenas e a empolgação com o projeto é algo que animou Danielle, pois para ela, “trabalhar na formação de grupos e redes de coletores de sementes fortalece o conhecimento tradicional, valoriza a floresta e gera renda”.
O outro conceito introduzido aos indígenas nesta primeira reunião foi o de “redário”. Quem explicou este processo foi o analista socioambiental e líder da iniciativa do redário Eduardo Malta. De acordo com ele, o redário nada mais é do que uma rede de distribuição de sementes diversas para ajudar na restauração florestal.
“Um dos grandes desafios apontados pelos estudos é a falta de sementes. Observamos que muitas redes de sementes de base comunitária começaram a surgir no Brasil, mas enfrentam dificuldades para se estruturar, se profissionalizar e se regularizar, fornecendo sementes de boa qualidade com todas as informações exigidas pelas normas para atender a essa demanda crescente”, explicou Eduardo.
De acordo com o analista socioambiental, a iniciativa é para ajudar os produtores de semente — como os que surgirão nas comunidades indígenas de Roraima — a se regularizar a fazer parte desta rede. Foi analisado que as dúvidas eram semelhantes e, por isso, a rede também incentiva a troca de experiências e conhecimentos na produção de sementes.
“O redário é um espaço de proteção e suporte onde as redes de sementes encontram um porto seguro. Estruturamos essa iniciativa com vários serviços: assistência técnica para cuidados específicos com cada semente, orientação sobre como se registrar e preencher a documentação necessária, identificação do nome científico das sementes, um sistema digital com aplicativo para marcar matrizes e áreas de coleta, além de gestão de estoque, controle de vendas e apoio na precificação das sementes”, explicou o analista.
A ideia é que os indígenas do Norte de Roraima também façam parte desta rede. O redário, de acordo com o analista, facilita intercâmbios entre redes, promovendo trocas de conhecimento e visitas de campo, e apoia grandes projetos que precisam de um volume de sementes que uma única rede não pode fornecer.
Com o tempo, as três comunidades de Roraima devem também participar da rede de troca.
“Reunimos sementes de várias redes para atender essas demandas, facilitando tanto para o cliente quanto para as redes participantes. Assim, os clientes podem comprar sementes diretamente do Redário ou das redes individualmente”.
Agora, com os conceitos e ideias do projeto introduzidos, o próximo passo é “colocar a mão na massa” escolhendo um local para armazenar, grupos que coletarão sementes e onde elas serão plantadas. Tudo isso demanda tempo e conhecimento mas, no que depender dos indígenas, tudo será feito com maestria.
Com os coletores de cada comunidade escolhidos, eles participarão de uma oficina, que oferecerá o suporte que eles precisam para o ofício.
“A partir deste seminário, os próximos passos incluem reunir e formar grupos de coletores e realizar oficinas nas comunidades. As oficinas tratarão do beneficiamento das sementes, desde a coleta, limpeza, retirada de fungos até a secagem, garantindo sementes de qualidade para venda”, explicou Emerson.
Caso a experiência nas três comunidades dê certo, os planos são construir uma rede de clientes para o comércio das sementes e apresentar o projeto para outras comunidades, criando uma rede e um redário próprio para Roraima.
*Por Caíque Rodrigues, do g1 Roraima
As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Portal Amazônia e são de total responsabilidade do autor.
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