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Povos tradicionais de Santarém sofrem com a seca extrema

Povos tradicionais de Santarém sofrem com a seca extrema

Comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas sofrem com a seca extrema no município paraense, que vê o drama da estiagem se repetir pelo segundo ano consecutivo. Na imagem acima, o Canal do Jari (Foto: Pedro Alcântara / Projeto Saúde Alegria).


Manaus (AM) – As árvores frutíferas estão secando, e isso é sinal de escassez de alimentos à vista na região do Lago Grande, em Santarém (PA). O peixe, há dias, desapareceu da mesa das comunidades distantes. Na Vila de Boim, às margens do rio Tapajós, o calor extremo está forçando os moradores da aldeia Tucumã a abandonarem suas casas de alvenaria, que agora precisam buscar refúgio sob as árvores ou em cabanas de palha.

O que parecia improvável aconteceu de novo: a natureza repete em 2024 o cenário extremo da seca do ano passado. Mas, desta vez, o drama foi agravado, porque a natureza não teve tempo de se recuperar. Não são só as plantações de laranjeira, açaizeiro e bananeira que estão definhando com a estiagem. Os roçados de mandioca também não conseguiram amadurecer o suficiente.  “Muitas famílias estão colhendo a mandioca ainda verde. Isso vai trazer um problema muito grande de falta de farinha”, prevê Marcílio Tupynamboiñwara, vice-coordenador do Conselho Indígena Tupinambá do Baixo-Tapajós (Citupi).

O rio Tapajós virou “praticamente um canal”, descreve Marcílio para falar da dificuldade de transporte na região do Lago Grande. Nas aldeias mais distantes, como Cametá e Samaúma, o transporte por barco está precário ou deixou de existir. Os moradores agora são obrigados a se deslocarem por grandes distâncias para conseguir obter os mantimentos. No rio Amorim, as aldeias estão isoladas, pois apenas as pequenas embarcações conseguem transitar. 

Muitos alunos estão sem aulas, porque o transporte fluvial foi interrompido. A saída tem sido recorrer às motocicletas, mas o risco de acidentes é alto, principalmente devido às condições das praias do município paraense. Quem precisa ir de barco até um posto de saúde enfrenta muitas dificuldades. O transporte aéreo, que poderia ser uma solução, também tem se tornado menos acessível, aumentando o tempo de resposta para atendimentos urgentes.

“A gente está correndo um grande risco de que os poços nas aldeias sequem”, alerta Tupynamboiñwara. Se isso ocorrer, vai faltar água potável, agravando a luta pela travessia neste período de seca na Amazônia. “A gente espera que isso não aconteça, mas na verdade a gente já está enfrentando.”

A Terra Indígena Tupinambá é composta por 28 aldeias, e ainda tem Reserva Extrativista Tapajós Arapiuns sobreposta ao território. O povo Tupinambá vive à margem esquerda do Tapajós. O assentamento PAE Lago Grande é dividido em três microrregiões: a região do Arapiuns, região do Lago Grande e região do Arapixuna. 

Quilômetros de caminhada

Seca no Canal do Jari (Foto: Pedro Alcantara/Projeto Saúde Alegria).

Sônia Turiarte, do povo indígena Arapium, vive na aldeia Atodi, na região do Arapiuns. Nessa localidade, a situação não é diferente. Os indígenas precisam caminhar por quilômetros para conseguir encher um balde de água. “Imagine isso, [caminhar às] 11 horas, meio-dia, carregando água. Estamos sofrendo demais, perdendo plantações, perdendo pequenos animais por causa da quentura. É muito quente, está difícil. Esse ano só piorou”, desabafa. O rio, que poderia ser uma solução, agora “está muito longe”.

Além das aldeias indígenas, povos ribeirinhos e quilombolas da região de Santarém enfrentam o mesmo problema. “As comunidades de várzea estão recebendo uma cesta básica, que não é o suficiente. A água potável [que chega] também não é suficiente, porque para uma família com várias pessoas, um galão com água não é nada”, alerta Turiarte. O pouco de água serve para beber e preparar alimentos, mas não sobra nada para a higiene pessoal.

Entidades e movimentos sociais estão distribuindo cestas básicas e água para amenizar o sofrimento das famílias, por meio da campanha solidária SOS PAE Lago Grande. Ajuda, mas não resolve o problema de quem tem que se deslocar por terra, uma situação mais crítica para os idosos e as crianças. 

“Está faltando comida, água, assistência social, a saúde está precária. Apesar de a gente ter um barco que visita as comunidades, ele não vai a todas as comunidades porque não consegue chegar por causa da seca”, comenta. Quando uma pessoa fica doente, continua Sônia, a ambulancha não consegue fazer o resgate à noite por medo de encalhar a embarcação nos arredores da comunidade.

Marcílio Tupynamboiñwara diz ainda ter notado a formação de fortes temporais, que antes não eram frequentes na região do Lago Grande. “De repente se forma um temporal que é com vento, com chuva, com raios e trovoadas. Um raio já matou uma mãe e um filho. Foram atingidos enquanto andavam de bicicleta. Esses temporais derrubam árvores, viram as manivas [maniva ou maniva-semente é a parte das ramas ou hastes usada no plantio da mandioca], os roçados, isso prejudica a produção também”, diz o líder indígena.

Estiagem severa

Seca em Parauá, no rio Tapajós (Foto Pedro Alcântara/ Projeto Saúde Alegria).

Pescar nas poucas águas tem sido uma tormenta. As embarcações ficam presas em lagos e nos igarapés pelo nível baixo da água. Para pescadores do Lago Grande como Agnaldo Regis Batista, o seu Bibi, a situação deste ano é inédita. A vazante está muito mais avançada que no ano passado, garante Bibi, que diz acreditar que a alta mortandade dos peixes, ocorrida no ano passado, tornou o pescado muito escasso este ano.

“O rio está com uma base de 25 centímetros de água aqui de frente da nossa comunidade, que é o Curuai, no Lago Grande. Paramos de pescar por esses dias [na semana passada]”, lamenta ele, que vive da atividade em 30 de seus 50 anos. “E a gente não pode fazer nada, né? Essa é a realidade da nossa região.”

Morador da comunidade São Pedro do Uruari, no Lago Grande, o pescador Idevaldo Ferreira Góes, de 53 anos, conta que mal consegue peixe para alimentar a si, à esposa e ao filho. Ele conta que a situação se agravou a partir do dia 8 – já são duas semanas de sacrifícios. “Hoje de manhã [na última sexta] fui dar uma volta, mas está muito seco, não tem condições. [O jeito é] só ficar mesmo em casa, fazendo algum trabalho por aqui mesmo, porque até o negócio do peixe para o consumo da gente está muito difícil, muito difícil mesmo”, reclama.

Também na lembrança dele a seca deste ano é mais grave que a do ano passado. Isso porque Idevaldo se recorda de, nessa mesma época, ainda conseguir pescar um peixe aqui e outro acolá. Para ele, sem ter como ganhar dinheiro, os pescadores vão precisar de mais ajuda. “Só temos o Bolsa-Família, que minha esposa recebe. É o que tem dado para segurar a barra. Sobrevivemos da pesca, não tenho outro meio de ganho, a gente precisa sim [de auxílio governamental]”, diz. 

Lenilson Sarmento, de 32 anos, pescador desde os 18, na comunidade São Pedro do Uruari, lembra dos tempos de fartura. “Por dia a gente pegava 60, 70 quilos de peixe. Dava para defender o alimento da família, agora ficou difícil”, constata o pescador. Atualmente, pelo menos 500 famílias vivem nas 70 comunidades do Lago Grande.

Falta de prevenção

Para o coordenador do Projeto Saúde e Alegria, Caetano Scannavino, houve tempo e previsões de sobra para se preparar para este novo cenário de mudanças climáticas se repetindo mais vezes e de formas extremadas. Faltaram investimentos preventivos em infraestrutura básica, como sistemas de abastecimento de água e saneamento, o que atenuaria o impacto junto às comunidades ribeirinhas da região de Santarém e arredores. “A seca e a cheia fazem parte do ciclo da Amazônia, mas o que estamos presenciando são eventos extremos que se tornaram o novo normal”, relata. 

O Projeto Saúde e Alegria, em parceria com outras organizações e movimentos locais, tem promovido ações emergenciais, como a distribuição de filtros de nanotecnologia para garantir água potável para famílias afetadas pela vazante. “Nosso objetivo é entregar 5 mil filtros, que conseguem tornar a água barrenta em água potável”, explica o coordenador, ressaltando que são medidas paliativas. Uma coalizão de organizações da sociedade civil também tem distribuído cestas básicas em áreas onde a seca compromete a produção agrícola familiar. Essa ajuda vai se estender até 2025. 

A solução ideal, contudo, passa por projetos estruturais, como sistemas de abastecimento movidos à energia solar, capazes de oferecer uma solução sustentável e duradoura. Ele também critica a ausência do tema nas campanhas políticas. Nas campanhas municipais, segundo Scannavino, o tema “clima” sequer foi mencionado, e quando falam de , as ONGs são vistas como inimigas.

Negativo na régua

Seca severa nas comunidades do rio Arapiuns (Foto Christian Braga/ Projeto Saúde Alegria).

O nível do rio Tapajós atingiu marcas negativas na régua, algo nunca visto antes na região. É este o cenário que a Defesa Civil de Santarém enfrenta neste ano. O coordenador Darlison Rego Maia e sua pequena equipe de nove pessoas tentam vencer uma batalha logística para chegar até as comunidades isoladas. Os rios e igarapés, principais vias de transporte, estão secos. 

A missão é entregar cestas básicas e água potável para 9.252 famílias, entre quilombolas, indígenas e ribeirinhos, espalhadas por 187 comunidades de Santarém. Em alguns locais, a Defesa Civil consegue chegar com o uso de caminhões e picapes, mas nem sempre o caminho está livre para todos os lugares. 

“Nossa maior dificuldade é justamente o acesso [às comunidades]. Estamos iniciando [na última semana], até mesmo porque depende de decreto, de situação de emergência, tem a parte burocrática para a gente receber os kits”, revela o coordenador da Defesa Civil. A distribuição de suprimentos depende de uma força-tarefa que envolve diversas secretarias do governo municipal e estadual, além do Corpo de Bombeiros.

O coordenador da Defesa Civil de Santarém se mantém esperançoso com o início da subida dos níveis dos rios, mas alerta que o município continua em estado de emergência e que o apoio governamental é fundamental para superar a crise.

Darlison detectou que outro problema tem sido a elevada mortandade de peixes. Presos nos lagos pela baixa das águas, eles não resistem ao choque térmico quando chegam as primeiras pancadas de chuva forte. “A gente perde muitos peixes”, relata. O coordenador lembra de uma seca pior, a de 1941, mas reconhece que a falta de registros precisos da época impede uma comparação real com a atual crise.

Perda de superfície de água

Seca em Parauá, no rio Tapajós (Foto Pedro Alcântara/ Projeto Saúde Alegria).

Para o pesquisador Bruno Ferreira, do Imazon e do projeto MapBiomas Água, a reprodução de peixes pode estar sendo afetada com o aquecimento das águas, já que essas espécies vivem dentro de um ecossistema composto por uma fauna e uma flora aquáticas. “A gente tem tipos de vegetações que dependem da água para frutificar, para florescer e esses impactos podem ser sentidos por essa perda de superfície de água”, analisa, ressaltando que esses fenômenos têm estrita relação com o aquecimento global. 

O cientista traz também dados preocupantes sobre a região do Tapajós. “Ano passado, em 2023, na região do Tapajós, detectamos em todo ano 52 mil hectares de perda de superfície de água. Até setembro de 2024, já registramos 47 mil hectares de perda de superfície de água na bacia do Tapajós, e o período de estiagem não terminou”, revelou. 

Esse número de 47 mil hectares não vai diminuir para 2024, segundo o cientista. “O que pode acontecer, em caso de chuva nos próximos meses, é esse número não subir. Mas a realidade é que esse número ainda pode aumentar, pois ainda estamos em curso com o período de estiagem que dura até novembro.”

Isso porque, segundo o cientista, os “rios e lagos não estão conseguindo se recuperar por completo depois de secas consecutivas”.

Seca no Canal do Jari (Foto: Pedro Alcantara/Projeto Saúde Alegria).

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