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Peça que estreia em Manaus questiona a transfobia

Peça que estreia em Manaus questiona a transfobia

Espetáculo ficará em cartaz no Teatro Américo Alvarez, no centro de Manaus, e é o primeiro dirigido pela atriz Mariellen Kuma. O elenco é totalmente formado por pessoas trans (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real).


Manaus (AM) – A comédia em três atos “A Doente Hereditária”, uma adaptação livre da clássica peça “O Doente Imaginário”, do dramaturgo francês Molière, estreia na sexta-feira (16), às 19h, no palco do Teatro Américo Alvarez, no centro de Manaus, com a premissa de questionar a transfobia, a homofobia, o racismo e a xenofobia de personalidades que se dizem politicamente e socialmente corretas, mas que carregam contradições em suas ações.

Com dramaturgia do ator e diretor Dimas Mendonça e dirigido pela atriz, diretora e professora de yoga Mariellen Kuma, o espetáculo narra a de Mimi Feitosa, uma mulher branca, herdeira de muitos imóveis e prestígio social, mas que vive atormentada por doenças imaginárias. “A Doente Hereditária” e a personagem Mimi surgiram em 2022 a partir de denúncias de violação contra a dignidade humana na internet.

O texto foi uma forma de dar atenção às questões de exclusão e transfobia, inclusive as sofridas pela diretora. “A gente começou a evidenciar a partir dessas violências não só questões de transfobia e de homofobia, mas também de racismo e de xenofobia, que estão atreladas a essa branquitude cisgênera, e daí trazemos essa personagem, que é muito parecida com a história original. Ela é uma pessoa do século 16 que está presa em si mesma, muito ensimesmada e é cercada por suas amigas, que são quase súditas que vivem a bajulando, por ser dona do poder e do recurso”, explica Mariellen Kuma.

O espetáculo toca em questões sociais e relações que permeiam a vivência da personagem Mimi Feitosa, “que é muito querida, muito gentil, mas que ao mesmo tempo é muito branca e muito rica, e tem uma dificuldade de se relacionar com a diversidade de forma genuína, e solta transfobia e racismo ali e aqui ‘sem querer’”, conclui a diretora. 

“Ela está neste lugar de tentar se enquadrar, mas não consegue. Ela se questiona: O que é essa minha doença? Por que eu sou tão má? E ela não entende que essa questão é moral e que dá para tratar com remédio”, completa. 

O projeto foi idealizado e tem a produção executiva de Mariellen Kuma, produção da KUMA Espaço de Criação, assistência de direção de Ananda Guimarães, iluminação e sonoplastia de Dante Abner, figurino de Melissa Maia e design gráfico de Dani Maresia, com apoio do edital Demais Linguagens da Lei Paulo Gustavo, Concultura, e Manauscult.

Pessoas trans como protagonistas

Dante Abner e Duca Vieira durante o ensaio da peça A Doente Hereditária (Foto: Alberto César Araújo/ Amazônia Real).

A presença de pessoas trans é destacada na peça, com elenco formado inteiramente por atrizes e atores da comunidade, uma composição significativa contra o estigma enfrentado na sociedade brasileira. Além disso, toda a equipe envolvida no projeto é LGBTQIAPN+.

Esse aspecto, diz Mariellen, confere à peça uma potência cênica e uma inovação estética que se afastam do teatro convencional e conservador, propondo uma narrativa moderna e provocativa.

“Eu sinto muita dificuldade de encontrar aliades reais, porque é muito mais fácil para a classe média branca cis doar dinheiro quando eu preciso fazer uma vaquinha para reformar o meu espaço ou fazer uma cirurgia. As pessoas doam com muito orgulho e é nesse lugar, infelizmente, de caridade, de algo que alimenta o coração da pessoa que está sendo caridosa.  Mas quando a gente procura parceiros de trabalho, a gente tem dificuldade, inclusive pessoas trans que já estão estabelecidas em outras áreas da cultura têm dificuldade de entender o nosso trabalho como profissional”, expõe a diretora. 

Alguns dos atores estão trabalhando em uma peça teatral pela primeira vez. Essa escolha aconteceu porque pessoas trans não têm oportunidade de estudar ou atuar em outros espaços, especialmente os meninos trans, que são mais invisibilizados.

Depois de uma audição pública, os atores e atrizes selecionados participaram de oficinas e cursos de atuação, um deles ministrado pela atriz Socorro Langbeck, Beckinha. “Foi surpreendente como as pessoas se integraram como grupo a partir dessa oficina”, explica Mariellen. É um processo que possibilitou também a definição do perfil de personagens. 

Pedro Silva é um dos artistas que estreia no teatro com “A Doente Hereditária”. Professor de história, ele nunca havia atuado.  “Não faço parte e não tenho vínculo com o teatro, mas vi os benefícios que ele pode trazer para nossa vida. Encontrei pessoas transgênero e a gente formou um coletivo. Isso foi muito importante enquanto pessoa trans que até então não tinha esse vínculo. Está sendo uma experiência ótima”.

O ator declara que o teatro tradicional é trans excludente e que a peça rompe com isso. “Se uma peça tem personagens femininas, vão dar prioridade a uma mulher cis, por exemplo. Temos esse problema de o teatro ser transcluente. A peça traz a história de uma mulher que não é doente, mas quer ter alguma coisa para compensar o preconceito e disfarçar. Quantas vezes a gente não encontra no nosso dia a dia pessoas que também tentam velar esses preconceitos? É uma história da gente, sobre a gente e com a gente”.

Ray Dias, educador e articulador da Associação Transmasculina do Amazonas (ATAM), chegou “às cegas” para a seleção do espetáculo e logo se interessou pela possibilidade de, além de atuar, contribuir com a escrita do projeto. “É uma rotatividade da economia criativa para além do que a gente pensa, da criação de arte e a possibilidade de um reconhecimento como os artistas e produtores LGBTQIAPN+. Traz críticas e abordagens de coisas que já acontecem no nosso cotidiano, mas de forma sutil e engraçada, mas a gente sabe que não durante o dia a dia não é bem assim que funciona”, diz.

Duca Vieira, atriz há dois anos, conta que a sua inserção no teatro em Manaus aconteceu junto com o processo de transição de gênero. Para ela, o espetáculo transcentrado é um espaço de pertencimento e reafirmação da sua existência na cena artística manauara. Ela dá vida a Mimi Feitosa, a protagonista.

“É muito importante a gente estar reafirmando a nossa presença nesses locais. É uma coisa revolucionária e pioneira, um lugar de conforto atípico para os nossos corpos trans em processo de teatro. Normalmente, quando somos dirigidos por pessoas cis ou trabalhamos com elenco cis, vivemos violencias que são inerentes em uma vida cis e normativa”, manifesta.

Para a atriz, a potência do espetáculo reside em usar do cômico para criticar a cisgeneridade. “A gente ri enfatizando que a gente está rindo de alguma coisa problemática. É um texto de questionamento e que vem de questões muito delicadas que a gente passa”.

Gab Bianca, atriz há três anos, afirma categoricamente que o que a interessa no fazer teatral é trazer adaptações de peças já famosas, de dramaturgos conhecidos como Molière e William Shakespeare, e adaptar para a atualidade. 

“‘O Doente Imaginário era um homem, um personagem masculino e nessa releitura a gente vê a doente hereditária, uma personagem feminina, e o elenco é formado inteiramente por pessoas trans, uma coisa que a gente não vê muito, ainda mais em peças clássicas e releituras de peças clássicas. Eu espero ver isso acontecendo cada vez mais”.

Ela reforça o caráter crítico do texto. “É uma crítica às pessoas que dizem estar do lado da comunidade LGBTQIAPN+ com discursos, mas muitas vezes não na prática. É um texto que faz até mesmo a gente que acha que está ajudando a comunidade na prática a repensar: Será que eu não estou só me aproximando dessas pessoas, mas não fazendo nada efetivo para a melhoria da vida delas?”.

Romper com o teatro conservador

Marieleen Kuma (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real).

No início da montagem da peça, surgiram questionamentos em relação aos limites artísticos de reproduzir violências que os envolvidos no projeto enfrentaram. Ao longo da criação foram empregados conceitos da “abaporutação” do dramaturgo Dimas Mendonça.

“Não é o objetivo tornar esse lugar mais violento e a gente não quer criar esse ódio gratuito para a peça. Então, essa personagem, a Mimi, ela se abaporuta, que é um termo que o Dimas trouxe para o espetáculo ‘Abaporutação’ e que vem da fase antropofágica de Tarsila do Amaral. É a fase onde os homens se comem, se autodestroem. A pessoa se abaporutou, ou seja, ela mesma não dá conta das suas questões e se implode de alguma forma. É meio que isso que a doente acaba fazendo, por causa das suas contradições”, observa Mariellen.

Para romper com as noções tradicionais do teatro e das artes, o primeiro trabalho de Mariellen na direção é permeado pelas travecametodologias, metodologias travestis de criação em arte contemporânea. O conceito foi criado pela cearense Isadora Ravena, travesti, artista, crítica, curadora e doutoranda em Artes Cênicas pela Universidade do Estado de Santa Catarina  (UDESC).

“São metodologias travestis de sobrevivência e de fazer a sua arte. É sobre como que a gente hackeia esse sistema para continuar aqui, fazendo o nosso trabalho”. 

Nesse sentido, Mariellen vai na contramão do teatro convencional, que instiga seus atores a chegarem a um limite de entrega que às vezes pode exaurir. Ela optou por criar um espaço seguro, saudável e de acolhimento para a equipe, uma travecametodologia que tem dado certo.

“Você quer que os atores cheguem no limite para surgir um personagem diferente, mas quando a gente pensa em corpos dissidentes, pessoas trans, negras ou PcD, a gente já vive no limite na sociedade. Então, quando a gente chega aqui no teatro, a gente tem que cuidar uns dos outros. Surge esse lugar de acolhimento enquanto um coletivo trans, que tem muitas pessoas negras e de diferentes classes sociais. É recíproco esse sentimento de que a gente está construindo algo novo e inédito. Tentamos oferecer uma alimentação para a galera, transporte, praticar yoga para a gente entrar no ensaio e não nesse lugar de querer exaustão”.

Dirigir a elenca trans, como chama Mariellen, também significa incentivar os envolvides no espaço de criação a buscar acompanhamento psicológico e médico no Ambulatório de Diversidade Sexual e Gênero da Policlínica Codajás, unidade da Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas (SES-AM) que oferece atendimento a pessoas LGBTQIAPN+ por meio de uma equipe multidisciplinar, formada por enfermeiras, assistentes sociais, psicólogos, ginecologistas, fonoaudiólogos, endocrinologistas e outras especialidades.

“A gente faz esse movimento de indicar para as pessoas irem buscar apoio psicológico lá. Eu mesma faço, desde que comecei a minha transição. O exercício da peça estimula esse elenco trans a se cuidar e cuidar da sua saúde mental e física”, diz.

A atriz Gab Bianca defende que colocar pessoas trans para atuar em releituras de clássicos fura a bolha do conservadorismo no teatro. “Quando a gente traz esses corpos dissidentes para a cena, a gente não está jogando fora os clássicos, mas a gente está trazendo uma releitura deles e agora com corpos diferentes.  Eu posso garantir que no final da obra não muda em quase nada o que um ator cisgênero e hétero consegue fazer com Molière, e o que um ator trans também faz”.

Ensaio da peça A Doente Hereditária, texto de Dimas Mendonça e direção de Marieleen Kuma (Foto: Alberto César Araújo/ Amazônia Real).

SERVIÇO

Espetáculo ‘A Doente Hereditária’ 

Dias 16, 17, 23 e 24 de agosto, às 19 horas, no Teatro Américo Alvarez – Av. Ramos Ferreira, 1572 – Centro, Manaus


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As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
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