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ToggleA PEC 3/2022, que ganhou o debate público nos últimos dias por prever a privatização de terrenos da União próximos a praias, rios e demais áreas sujeitas à influência das marés – os chamados terrenos de marinha –, precisa apenas da aprovação no Senado para entrar em vigor. Isso porque a matéria já foi aprovada, em 2022, pela Câmara dos Deputados, onde tramitou como PEC 39/2011. As propostas de emenda à Constituição, vale lembrar, não estão sujeitas a veto presidencial – ou seja, caso o Senado aprove a matéria, ela já será promulgada.
Na Câmara, 11 anos após ser protocolada pelos então deputados Arnaldo Jordy (PPS-PA), José Chaves (PTB-PE) e Zoinho (PR-RJ), ela acabou aprovada em dois turnos no mesmo dia. No primeiro turno, por 377 votos a favor, 93 contrários e 1 abstenção, e no segundo por 389 votos a favor e 91 contrários. A votação dos turnos no mesmo dia ocorreu por conta de um requerimento do então deputado André Fufuca (PP-MA), atual ministro do Esporte, aprovado por 311 votos a 102. O intervalo normal seria de cinco sessões entre cada turno.
Antes de aprovada, a matéria passou por uma longa caminhada na Câmara. Foram 4 anos sem movimentações na Comissão de Constituição e Justiça da casa depois de ser protocolado. Apenas em 2015, o projeto caminhou – e rápido. Após Alceu Moreira (MDB-RS) ser escolhido como relator, o projeto foi aprovado na comissão em pouco mais de 2 meses, em maio daquele ano. E já em julho, o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (MDB-RJ), criou uma Comissão Especial para analisar a proposta, cujo relator foi, também, Alceu Moreira.
Pelo regimento da casa, as comissões devem concluir sua análise em até 40 sessões, prorrogáveis por mais 20 mediante requerimento fundamentado. O que aconteceu, porém, foi uma sucessão de pedidos de prorrogação sem qualquer fundamentação, apenas com o pedido feito de forma genérica. Ainda assim, segundo a ficha de tramitação da PEC, a comissão recebeu 19 prorrogações de 20 sessões cada, totalizando um prazo de 420 sessões – mais de 10x maior do que o originalmente previsto no regimento – que, porém, não limita as prorrogações. No total, a Comissão Especial funcionou por 3 anos e 4 meses, até novembro de 2018.
Após mais 3 anos e 3 meses, a matéria foi a plenário no dia 22 de fevereiro de 2022. De acordo com a transcrição da sessão (disponível aqui, entre as páginas 31 e 86 do documento), os deputados discutiram e votaram os dois turnos necessários para aprovação, além de requerimentos de retirada de pauta, adiamento, destaques – votação separada de trechos do texto, como a tentativa de se retirar a previsão de transferência de terrenos a ocupantes não registrados – e a própria quebra do chamado interstício, o intervalo de 5 sessões previsto no regimento.
Na época, deputados já alertavam para os riscos, discutidos também hoje, trazidos pela proposta. Entre eles, a privatização de praias (não da faixa de areia ou das águas litorâneas em si, mas da dificultação do acesso por propriedades particulares no entorno), a grilagem de terras e a pressão da especulação imobiliária. Deputados favoráveis, porém, davam ênfase ao fim dos impostos pagos pelos ocupantes desses imóveis, como a taxa de ocupação, o foro e o laudêmio, ignorando ou minimizando os problemas apontados.
Há dois anos, discursos já alertavam para riscos do projeto
Em orientação de bancada para o requerimento de retirada do projeto de pauta, Rodrigo Agostinho (PSB-SP), hoje presidente do Ibama, defendeu a discussão sobre o fim dessas taxas em outra matéria e chamou atenção para os riscos trazidos pelo projeto. “Nós entendemos que é possível mudar essa situação e, inclusive, acabar com a questão da cobrança que ocorre hoje, mas acabar com o instituto dos terrenos de marinha trará um problema muito sério com relação a áreas sensíveis, onde haverá ocupações irregulares, por conta, simplesmente, de se ter acabado com esse instituto”, alertou na época.
Alencar Santana (PT-SP) advertiu sobre o risco de grilagem de terras, já que o projeto prevê a transferência até mesmo dos terrenos não-registrados. “Está previsto que será beneficiado também quem disser que ocupa a região há 5 anos, mesmo que não esteja inscrito no cadastro. Então muita gente esperta, muita gente mal-intencionada, vai se beneficiar. E, nesses casos, serão impactadas não as pequenas áreas, e sim as áreas maiores, que terão outras finalidades, não terão finalidade de moradia”, afirmou. Mais tarde, o deputado ainda classificaria a PEC como “projeto da grilagem da área litorânea”.
Na mesma linha, após a aprovação da matéria em primeiro turno, Nilto Tatto (PT-SP) ligou a PEC à tramitação de outro projeto, que acabou aprovado pela Câmara dois dias depois: o PL 442/91, que legaliza cassinos, jogos de azar e o jogo do bicho – e que hoje tramita no Senado como PL 2234/22. Segundo ele, empreendimentos estariam de olho na construção desses cassinos próximos às praias.
“Esta PEC dialoga com outro projeto que está na pauta nesta semana, o da legalização do jogo no Brasil. No caso, é importante que áreas, terrenos de marinha e praias, que são de propriedade do povo brasileiro, também estejam à disposição para a construção de resorts, de grandes hotéis, que vão gerar meia dúzia de empregos. Portanto, esta PEC não dialoga com o turismo sustentável, que valoriza a sociobiodiversidade brasileira”, frisou Tatto.
Durante a discussão do segundo turno, o deputado Ivan Valente (PSOL-SP) chamou atenção para a pressão especulativa que seria gerada em cima de municípios e de comunidades tradicionais. “Aqui se trata também de passar áreas para o setor privado. Ora, os setores que ocupam essas terras – pescadores artesanais, comunidades quilombolas, etc –, mesmo que ganhem a propriedade, em pouco tempo serão estimulados a sair de áreas que serão hipervalorizadas”, afirmou.
“Por isso o que está em jogo aqui, principalmente, é a especulação imobiliária versus uma visão de país, de descarbonização da economia, de garantia de preservação do meio ambiente, de garantia de espécies, de qualidade de vida de comunidades tradicionais. O que se quer aqui é legalizar a especulação imobiliária dos grandes”, criticou Valente.
O relator da proposta na CCJ e na Comissão Especial, Alceu Moreira (MDB-RS), defendeu a PEC por conta de “investimentos” a serem realizados e uma melhoria na “imagem” das cidades. “Serão bilhões de reais que a União vai arrecadar. Bilhões de reais! Serão bilhões de reais investidos em áreas nobres do litoral brasileiro que hoje são verdadeiros cortiços, áreas em destruição. Cidades terão a sua imagem completamente modificada para melhor”, prometeu.
“O que vai acontecer é que vamos liberar para as cidades pedaços de solo nobre, onde a população vai ter condições de fazer grandes investimentos, desfrutar dessas áreas, integrá-las ao espaço urbano dos municípios, transformando-as em áreas absolutamente lindas e qualificadas”, defendeu Moreira.
Já Neucimar Fraga (PSD-ES) elogiou a transferência da posse para os atuais ocupantes. “Tudo que essas famílias querem é ter um imóvel para chamar de seu, para registrar num cartório como sendo de sua propriedade. O que nós estamos fazendo aqui é praticamente um programa habitacional para milhões de pessoas que moram num imóvel que pensam que é seu, mas que é do Governo”, disse.
Por outro lado, Nilto Tatto lembrou, novamente, dos riscos da abertura desses terrenos à especulação imobiliária sobre as comunidades tradicionais. “O Movimento Nacional dos Pescadores é contrário a esta PEC, justamente porque eles são favoráveis a outro tipo de título, o que mantém a propriedade da União, mas lhes assegura o usufruto com garantia para as futuras gerações. O que esta PEC vem fazer – é esta a intenção que está por trás – é dar o título a algumas famílias. Aí vem o especulador e oferece rios de dinheiro para aquele pescador, para aquela família tradicional, que vai para a cidade e, em poucos anos, acaba com o dinheiro, gasta o dinheiro. E, assim, vai-se tomando conta da costa brasileira”, previu.
Os votos da Câmara
Muitos dos partidos que orientaram suas bancadas favoravelmente às propostas focaram apenas na extinção das taxas pagas pelos ocupantes desses terrenos, sem considerar os riscos ambientais trazidos. “Nós somos a favor do fim da taxa de marinha, do laudêmio, enfim, da incidência de qualquer imposto, pagamento, taxa, oneração aos terrenos, aos imóveis daqueles que são legítimos proprietários, porque ali estão na boa-fé, com áreas consolidadas por muitos anos”, resumiu Pompeo de Matos (PDT-RS).
O PDT e o PCdoB, que orientaram suas bancadas a favor da PEC, ao contrário do restante da então oposição, porém, foram favoráveis aos destaques apresentados por outros partidos de esquerda, que buscavam retirar do projeto a transferência definitiva de terrenos cedidos pela União e os ocupados por pessoas não-registradas. Mas, mesmo com a rejeição desses destaques, estes partidos se mantiveram favoráveis à proposta nos dois turnos.
Já outros partidos defenderam a proposta integralmente, inclusive elogiando a facilitação da venda desses terrenos. “Queremos chamar a atenção para o fato de que esta medida também tem seu potencial de desburocratização, de facilitação das negociações das áreas litorâneas do Brasil, que são imensas e complexas”, declarou Júlio Lopes (PP-RJ).
Alguns deputados também chamaram atenção pela mudança de seus votos de um turno para outro. Hélio Leite (DEM-PA), Pedro Lupion (DEM-PR, hoje no PP e presidente da bancada ruralista), Daniel Silveira (PSL-RJ, hoje no PTB e preso por ameaçar ministros do STF), Ted Conti (PSB-ES) e Rodrigo de Castro (PSDB-MG) votaram contra a proposta no primeiro turno, mas a favor no segundo. Já Guilherme Derrite (PP-SP, hoje no PL e secretário estadual de Segurança Pública de São Paulo) e Zé Neto (PT-BA) foram a favor no primeiro turno e contra no segundo. Carlos Zarattini (PT-SP) foi a única abstenção do primeiro turno, mas votou contra no segundo.
Os votos de alguns parlamentares chamaram atenção, também, por ir contra a maioria de seus partidos. O então líder do governo, Ricardo Barros (PP-PR), por exemplo, não se pronunciou na sessão, mas indicou orientação contrária ao projeto, e votou contra nos dois turnos. Mesmo com a orientação, a grande maioria dos deputados governistas votaram a favor da proposta.
Além de Barros, Perpétua Almeida (PCdoB-AC); Ildivan Alencar (PDT-CE) e Túlio Gadêlha (PDT-PE, hoje na REDE); Bacelar (Podemos-MA, hoje no PV); Marco Bertaiolli (PSD-SP), Otto Alencar Filho (PSD-BA) e Genecias Noronha (SD-CE) contrariam as orientações partidárias e a grande maioria de seus colegas partidos para votar contra a PEC nos dois turnos. Por outro lado, Helder Salomão (ES), Merlong Solano (PI) e Odair Cunha (MG), todos do PT, contrariam suas bancadas para votar a favor nos dois turnos.
No PSB, por sua vez, houve maior divisão, com 20 votos a favor nos dois turnos e 8 contra, enquanto Bira do Pindaré (MA) não votou no primeiro turno e foi favorável no segundo, e Rafael Motta (RN) foi contrário no primeiro turno e não votou no segundo.
Já cinco deputados que votaram a PEC na Câmara poderão votá-la novamente no Senado, após se elegerem ao novo cargo nas eleições de 2022. Será o caso dos agora senadores Alan Rick (UNIÃO-AC), Beto Faro (PT-PA), Hiran Gonçalves (PP-RR), Laércio Oliveira (PP-SE) e Professora Dorinha Seabra Rezende (UNIÃO-TO). Deles, apenas Beto Faro votou contra a proposta na Câmara.
Outros votos importantes foram de deputados do Centrão que hoje são ministros do governo Lula, que se declarou, por meio de Alexandre Padilha, ministro da Secretaria de Relações Institucionais, como contrário ao projeto. Além de André Fufuca (PP-MA), hoje ministro do Esporte e autor do requerimento de quebra do intervalo entre os turnos de votação, também foram favoráveis os hoje ministros André de Paula (PP-PE), da Pesca; Celso Sabino (PSL-PA, atual UNIÃO), do Turismo; Juscelino Filho (DEM-MA, atual UNIÃO), das Comunicações; e Silvio Costa Filho (Republicanos-PE), de Portos e Aeroportos.
Os votos de todos os deputados podem ser consultados na tabela abaixo:
As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site O Eco e são de total responsabilidade do autor.
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