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Passando a boiada ameaça áreas protegidas – 2: O Parque Estadual do Cristalino em Mato Grosso

Passando a boiada ameaça áreas protegidas – 2: O Parque Estadual do Cristalino em Mato Grosso


Domingos de Jesus Rodrigues, Thadeu Sobral-Souza, Tiago Shizen Pacheco Toma, Aretha Franklin Guimaraes, Thiago Junqueira Izzo, Marcos Penhacek, Flávia Barbosa Rodrigues, Neucir Szinwelski, Afonso Kempner, Willian Schornobay Bochenski, Milton Omar Cordova Neyra, Helena Streit, Gerhard Ernst Overbeck, Fabio de Oliveira Roque, Geraldo W. Fernandes, Cássio Cardoso Pereira, e Philip Martin Fearnside.

O estado de Mato Grosso abrange três grandes unidades fitofisionômicas (oficialmente designadas como “biomas” no Brasil) em uma área total de 903.357 km². Desta área, 55.661,34 km² (6,1%) são designados como unidades de conservação (UCs), com oito UCs administradas federalmente, 41 pelo governo estadual, 37 por governos municipais e 20 como “Reservas Particulares do Patrimônio Natural” (RPPNs) estaduais ou federais [1]. Mais da metade (55%) da área em UCs no estado de Mato Grosso é administrada pela Secretaria de Estado do Meio Ambiente. Embora as áreas protegidas privadas e municipais sejam geralmente pequenas, sua cobertura combinada é significativa, compreendendo 2,5% e 9,4% da área protegida total do estado, respectivamente. No entanto, algumas áreas estaduais e municipais não são especificamente destinadas à conservação total da biodiversidade, e seus objetivos de proteção podem variar substancialmente.

O bioma Amazônia, que abrange aproximadamente 52% do Mato Grosso, está bem representado, com 30.439,35 km² (54,7%) designados como unidades de conservação. A responsabilidade pela proteção ambiental na porção amazônica do estado é relativamente equilibrada, com quase metade (54%) das UCs mato-grossenses sob gestão estadual. O Parque Estadual do Cristalino II desempenha um papel crucial como área protegida e representa 7,2% da área das UCs mato-grossenses sob gestão estadual (Figuras 1 e 2).

Figura 1. Localização do Parque Estadual do Cristalino, Mato Grosso. Esta é uma das únicas unidades de conservação no Arco do Desmatamento e é de grande importância para a conservação da biodiversidade no sul da Amazônia. Esta área está atualmente ameaçada devido à falta de proteção oficial.
Figura 2. Os parques estaduais Cristalino I e II, mostrando a ameaça do avanço do desmatamento.

Mato Grosso é um estado fortemente impactado por atividades econômicas insustentáveis e está consistentemente na vanguarda das taxas de desmatamento no Brasil. O agronegócio exerce influência significativa sobre a política ambiental devido à sua contribuição substancial para o PIB do Brasil. Enquanto o agronegócio afirma contribuir com 23,8% do PIB do país, estatísticas oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam a porcentagem de apenas 7,14% [2, 3]. A influência do agronegócio é forte em estados agrícolas como Mato Grosso, onde os “ruralistas” dominam as decisões políticas. Vários projetos de lei antiambientais (por exemplo, o Projeto de Lei Complementar Estadual nº 18/2024) estão atualmente em consideração ou sendo votados nos níveis estadual e federal. Um caso urgente é uma ação para abolir o Parque Estadual Estadual Cristalino II de Mato Grosso [4, 5]. Dentre as unidades de conservação do sul da Amazônia, esta se destaca por ser a de maior biodiversidade; possui floresta ombrófila densa e aberta submontana (floresta deterra firmee floresta de lianas), floresta ombrófila aluvial densa, floresta estacional semidecídua, campinaranas (um ecossistema caracterizado por savanas abertas, arbustos e florestas que crescem em solos inférteis de areia branca) e campos rupestres amazônicos. Também abriga uma rica fauna, com 1.010 espécies de borboletas registradas e muitas espécies listadas como ameaçadas de extinção, como a gavião real (Harpia harpyja) e o coatá-da-testa-branca (Ateles marginatus).

Esta unidade de conservação está sofrendo as consequências do contínuo afrouxamento das leis ambientais no Brasil (por exemplo, [6]. O parque de 118.000 hectares foi criado em 2000 e, desde 2011, diversas ações judiciais foram movidas buscando sua extinção. Em 2022, foi sumariamente extinto por uma decisão judicial favorável a proprietários privados que haviam reivindicado ilegalmente a terra [5]. O Ministério Público do Mato Grosso recorreu com sucesso para restaurar a proteção do parque, mas em abril de 2024 o Tribunal de Justiça do Mato Grosso decidiu pela extinção do parque em resposta a um pedido da empresa de agronegócio Sociedade. Comercial e Agropecuária Triângulo Ltda.

Uma análise da situação fundiária mostra que, na época de sua criação, o parque era coberto por florestas pertencentes ao governo federal (ou seja, terras públicas), que foram transferidas para o Estado de Mato Grosso em 2010 pelo então presidente Luis Inácio Lula da Silva (Lei 12.310 de 19 de agosto de 2010). A transferência dessas terras para Mato Grosso deve garantir seu status como terras públicas, e elas não podem ser requisitadas pela iniciativa privada. Isso destaca o conflito contínuo entre os esforços de conservação e os interesses privados e mostra a necessidade urgente de estruturas legais robustas e sua aplicação consistente para garantir a proteção a longo prazo dos recursos naturais do Brasil.

Apesar da indignação pública e da oposição de ambientalistas e cientistas, o Ministério Público do Mato Grosso e o Procurador-Geral do Estado permaneceram em silêncio sobre o assunto. O atual governador declarou em entrevista à televisão que o estado não tem intenção de recorrer. Deputados estaduais na Assembleia Legislativa de Mato Grosso geraram comoção pública em oposição à decisão, e a Advocacia-Geral da União (AGU) solicitou se juntar à ação pública civil, argumentando que a empresa não tem legitimidade para requerer a extinção do parque. Segundo a AGU, a empresa detém títulos inválidos com base em certidões materialmente falsas, supostamente emitidas pelo Instituto de Terras do Mato Grosso (INTERMAT), e, portanto, a AGU solicitou a anulação da decisão judicial que extinguiu o parque. Devido à mobilização de diversos grupos interessados, o governo do estado de Mato Grosso agora admite que pode recorrer, mas permanece comprometido em indenizar os “proprietários” da área destinada ao parque, apesar da designação desses “proprietários” como ilegais pela AGU. A aquisição ilegal de documentos de terras públicas na Amazônia é um problema antigo, frequentemente perpetrado pelas elites rurais, pela polícia e por aqueles que detêm o poder governamental e judicial [7]. [8]


A imagem que abre este artigo mostra o reflexo da floresta Amazônica nas calmas águas do Rio Teles Pires. Parque Estadual do Cristalino, no Mato Grosso. (Foto Aline Gama/ WikiMedia CC – BY 4.0).


Notas

[1] SEMA (Secretaria de Estado de Meio Ambiente do Mato Grosso), 2024. Unidades de Conservação. http://www.sema.mt.gov.br/site/index.php/unidades-de-conservacao

[2] OC (Observatório do Clima), 2024. O milagre da multiplicação do PIB do agro. OC Newsletter. https://www.oc.eco.br/na-newsletter-o-spin-do-agro-o-precoce-ber

[3] Salim, L., Pacheco, P., 2024. O PIB do agro é isso tudo? Fakebook.eco. https://fakebook.eco.br/o-pib-do-agro-e-isso-tudo/

[4] Tribunal de Justiça de Mato Grosso, 2024. Acórdão n. 0001322-40.2011.8.11.0082. https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-mt/366214182/inteiro-teor-366214190

[5] Coelho-Junior, M.G., J. Mariano, A. Thuault, E. Amaral, L.E.A. Silva, L. Ferrante & P.M. Fearnside. 2024. Tribunal de Justiça brasileiro ameaça biodiversidade amazônica. Amazônia Real, 21 de agosto de 2024. https://amazoniareal.com.br/tribunal-de-justica-brasileiro-ameaca-biodiversidade-amazonica/

[6] Ruaro, R., G.H.Z. Alves, L. Tonella, L. Ferrante & P.M. Fearnside. 2022. Afrouxamento do licenciamento ambiental. Amazônia Real. https://bit.ly/38Js7RG

[7] Kröger, M., 2024. Land-grabbing mafias and dispossession in the Brazilian Amazon: rural–urban land speculation and deforestation in the Santarém region. Globalizations: 1–19. https://doi.org/10.1080/14747731.2024.2319440

[8] Esta série é uma tradução de Rodrigues, J.R., T. Sobral-Souza, T.S.P. Toma, A.F. Guimaraes, T.J. Izzo, M. Penhacek, F.B. Rodrigues, N. Szinwelski, A. Kempner, W.S. Bochenski, M.O.C. Neyra, H. Streit, G.E. Overbeck, F.O. Roque, G.W. Fernandes, C.C. Pereira & P.M. Fearnside. 2025. Passando a boiada”: Degazettement and downsizing threaten protected areas in the Brazilian Amazon. Perspectives in Ecology and Conservation 23(1): 1-5.https://doi.org/10.1016/j.pecon.2025.01.001. P


Sobre os autores

Domingos de Jesus Rodrigues possui graduação em Ciências Biológicas e mestrado em Ecologia e Conservação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, e tem doutorado em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. É professor Titular da Universidade Federal de Mato Grosso em Cuiabá. Suas pesquisas focam a biologia reprodutiva de anuros (sapos). É colaborador do Ministério do Meio Ambiente, Secretaria de Estado de Meio Ambiente do Estado de Mato Grosso, ICMBio, e a Polícia Federal.

Thadeu Sobral-Souza possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Católica de Santos e mestrado e doutorado em Ecologia pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é Professor Adjunto A do Departamento de Botânica e Ecologia da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Tem interesse nas áreas correlatas à macroecologia, filogeografia, biogeografia e biologia da conservação em ambientes tropicais.

Tiago Shizen Pacheco Toma possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Viçosa e mestrado e doutorado e em Ecologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É associado ao Departamento de Genética, Ecologia e Evolução da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. Participa de projetos de pesquisa em ecologia de comunidades que avaliam os efeitos de diferentes fatores em escala local e regional, com foco em insetos galhadores e sobre recuperação/restauração ecológica, definição de áreas prioritárias para conservação.

Aretha Franklin Guimaraes possui graduação em Ciências Biológicas, Mestrado em Engenharia Florestal e Doutorado em Botânica Aplicada pela Universidade Federal de Lavras. Atualmente é pós-doutoranda no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, Manaus, Amazonas. Atua na área de ecologia vegetal com foco em entender os padrões de distribuição e diversidade de solos, plantas e microrganismos em florestas tropicais da Amazônia brasileira. Colabora com as redes PPBio, INCT CENBAM, INCT Observatório da Biodiversidade e PELD PSAM com foco em bancos de dados (big data) de espécies da fauna e flora brasileiras.

Thiago Junqueira Izzo possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e mestrado e doutorado em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. Atualmente é professor Associado em Ecologia e Conservação da Biodiversidade na Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, MT. Tem experiência na área de Ecologia, com ênfase em Ecologia Evolutiva, atuando principalmente nos seguintes temas: mutualismos, Interações biológicas, Inseto-planta, comportamento e ecologia de comunidades e conservação da diversidade biológica.

Marcos Penhacek, possui graduação em Ciências Biológica pela Universidade do Estado de Mato Grosso-UNEMAT e em Química pela Universidade Federal de Mato Grosso-UFMT. Tem Mestrado e doutorado em Ecologia e Conservação da Biodiversidade pela UFMT Atualmente é Pós-doutorando no Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia INPA vinculado ao INCT da Biodiversidade Amazônica. É Pesquisador Associado do Instituto de Ciências Humanas e Social INCHS da UFMT. Trabalha atualmente com anfíbios da Amazônia.

Flávia Barbosa Rodrigues possui Graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual de Feira de Santana-UEFS, mestrado em Biologia de Fungos pela Universidade Federal de Pernambuco, e doutorado em Botânica pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Atualmente é Professora associada I da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT-Sinop). Tem experiência na área de Micologia, com ênfase em Taxonomia de ascomicetos assexuais terrestres e aquáticos.

Neucir Szinwelski possui Graduação em Ciências Biológicas pela Faculdade União das Américas, mestrado em Biologia Animal e doutorado em Entomologia pela Universidade Federal de Viçosa É professor associado B na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) em Cascavel, Paraná. Trabalha com taxonomia e ecologia de Orthoptera, modelagem ecológica, conservação da biodiversidade, impactos de atividades ilegais e atropelamentos sobre a fauna.

Afonso Kempner possui Licenciatura em Ciências Biológicas e Mestrado em Ecologia e Conservação da Biodiversidade pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Cuiabá. Atualmente é doutorando na mesma universidade.

Willian Schornobay Bochenski possui Graduação em Ciências Biológicas pela Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT) e mestrado em Ecologia e Conservação da Biodiversidade pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Atualmente é bolsista desenvolvendo pesquisas sobre diversidade e ecologia de formigas e dípteros no estado de Mato Grosso.

Milton Omar Cordova Neyra possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidad Nacional Pedro Ruiz Gallo, Peru, mestrado em Biologia Vegetal pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), e doutorado em Botânica pela Universidade de Brasília (UnB). Atualmente é pós-doutorado na UFMT Sinop e Pesquisador associado ao Herbário CNMT e NEBAM, UFMT Sinop. Tem experiência na área de Ecologia Aplicada, Ecologia de Interações, Ecologia Química e Ecologia Vegetal.

Helena Streit possui graduação em Ciências Biológicas e mestrado e doutorado em Ecologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente é pós-doutoranda no Centro de Investigaciones sobre Desertificación (CIDE), em Valência, Espanha. Desenvolva pesquisa sobre os fatores determinantes da organização das comunidades de plantas campestres na região Sudeste da América do Sul, em uma abordagem filogenética.

Gerhard Ernst Overbeck é Engenheiro em Arquitetura e Planejamento da Paisageme Doutor em Ciências Naturais pela Technische Universität München, Alemanha. Atualmente é Professor no Departamento de Botânica da UFRGS, atuando na área de Ecologia Vegetal Terrestre. Possui experiência profissional nas áreas de planejamento ambiental e de conservação da natureza.

Fabio de Oliveira Roque possui Graduação em Ciências Biológicas e Mestrado e Doutorado em Ecologia e Recursos Naturais pela Universidade Federal de São Carlos-UFSCAR. Atualmente é Professor Associado da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e membro do Center for Tropical Environmental and Sustainability Science (TESS), James Cook University, Cairns, Austrália. É co-coordenador do Freshwater BON-Latin America e membro da coordenação do Programa Brasileiro de Pesquisa em Biodiversidade (PPBio).

Geraldo Wilson Fernandes é professor na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em Belo Horizonte, MG e integrante do Centro de Conhecimento sobre Biodiversidade-Brasil. Ele possui graduação em ciências biológicas pela UFMG e mestrado e doutorado em ecologia pela Northern Arizona University, E.U.A. Foi professor visitante na Stanford University, a University of Alberta e a Universidad de Sevilla. É pesquisador 1A do CNPq e membro da Academia Brasileira de Ciências. Investiga o desaparecimento de abelhas e seu reflexo na polinização, produção de mel e própolis, e ele trabalha sobre vários temas na área de ecologia e meio ambiente.

Cássio Cardoso Pereira é doutorando em ecologia, conservação e manejo da vida silvestre na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É mestre em ecologia pela Universidade Federal de São João del-Rei e graduado em Ciências Biológicas (Ênfase em Conservação da Biodiversidade) pela Universidade Federal de Viçosa. Atualmente é editor de área das revistas científicas Biotropica, Nature Conservation, e Neotropical Biology and Conservation. Para mais informações, acesse: https://cassiocardosopereira.com

Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências e pesquisador 1A de CNPq. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 800 publicações científicas e mais de 750 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis aqui.

As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
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