Enquanto nosso vizinho Pará se prepara para receber lideranças de diversos países para discutir políticas e estratégias de combate à crise climática, o Amazonas “pulmão do mundo” segue sob a sombra do sufocamento de outra crise, ainda mais difícil de se contornar: a violência da guerra às drogas.
Em reportagem publicada no portal Amazonas Atual em 29/10, o repórter Thiago Gonçalves ouviu autoridades policiais que manifestaram opiniões sobre possíveis impactos que o Amazonas poderia enfrentar a partir da crise de segurança pública instalada no Rio de Janeiro da última semana, pela “Megaoperação” policial que resultou na morte de mais de 120 pessoas.
Falas sobre a expansão da ação de facções nas disputas por territórios, do controle de rotas de escoamento, das redes de conexão interestaduais que fomentam intercâmbios de homens e mulheres envolvidos no comércio ilegal de drogas, e tantas outras questões, refletem um problema que à primeira vista pode parecer recente, até uma consequência óbvia do crescimento da operação criminosa, mas que de fato descortinam uma história longa e com raízes profundas no abandono e na desigualdade que atravessam a própria construção do nosso espaço e sociedade.
Erguido historicamente sobre escombros, sobre corpos de povos indígenas dizimados no processo colonial, de pessoas escravizadas e trabalhadores pobres submetidos a condições insalubres para gerar riqueza econômica, desde os seringais do século 19 aos chãos das fábricas do Polo Industrial, o Amazonas segue perpetuando uma estrutura de exclusão que dificulta a desconstrução da noção de que somos a “periferia do país”, alimentando a ideia que nos coloca ora como espaço a ser ocupado, ora como reserva de recursos a serem explorados, e raramente como sociedade a ser protegida.
As relações e conexões diversas entre o Amazonas e o Rio de Janeiro não são recentes. Assim como, por exemplo, o processo de urbanização promovido no auge da expansão da economia da borracha demonstrou dedicação do poder público e das elites em produzir uma cidade aos moldes do que era a capital na época, não é novidade, também, que as aproximações e disputas das ações de Estado já foram estratégias importantes para o enfrentamento da violência pública em ambos os locais.
Diversas pesquisas históricas apontam que após as Revoltas da Vacina e da Chibata, que movimentaram o Rio de Janeiro em 1904 e 1910, a solução adotada pelo Governo Federal foi enviar, sob pena de banimento, todos os revoltosos presos ao fim dos conflitos para “as regiões do Amazonas e do Acre”, decisão que na ocasião mobilizou o poder público amazonense a reagir intensificando a ação policial, principalmente na capital, aumentando efetivo e o volume de verbas direcionadas a impedir e reprimir possíveis “atos criminosos” que pudessem ser causados, promovendo inclusive uma atmosfera de medo que considerava a dimensão do território, a dificuldade de fiscalização das fronteiras e de controle do raio de alcance dessas pessoas.
Esses e tantos outros cenários do último século, com os espaços deixados pelo Estado que explora e extrai, mas não protege, contribuíram para que a região amazônica venha se tornando cada vez mais importante nas estratégias de expansão, transporte e comércio de drogas, trazendo consigo todas as suas consequências.
O narcotráfico ocupa cada vez mais, aqui como em qualquer outro lugar, os vazios que o Estado permite. Nas ruas das periferias oferece renda, pertencimento, cria identidades sociais e estabelece uma “ordem” extraoficial que se choca com a ação dos aparelhos repressores do poder público, por natureza racistas, elitistas e punitivistas, gerando um ciclo de violência, repressão e estigmatização direcionados à população pobre, periférica e, especialmente, negra, fazendo com que o nosso Estado seja presença frequente nos índices que apontam os lugares mais violentos do país.
O que pouco se fala, porém, é que a mesma necropolítica que criminaliza, encarcera, violenta e mata a população periférica, blinda quem de fato movimenta a economia bilionária do tráfico. As grandes operações policiais de “combate” raramente chegam aos grandes financiadores, que a cada dia, seguros da impunidade, aumentam seus raios de ação se entrelaçando nas mais diversas áreas, de redes de postos de combustível e fintechs estabelecidas em grandes centros financeiros do país, ao garimpo e extração de madeira ilegal na floresta Amazônica, passando pelo tráfico internacional de armas, munições e pessoas, pelo agronegócio e, obviamente, pela política partidária.
O assassinato de mais de 120 pessoas, a prisão de “líderes” de facções e a apreensão de armas no Rio de Janeiro coíbe tanto o tráfico de drogas quanto a ação policial que interrompe, na periferia de Manaus, “homenagem” aos amazonenses mortos no conflito. Enquanto isso acontece, a violência urbana que antes era restrita aos grandes centros avança a cada dia pelos interiores do Amazonas, colocando comunidades indígenas e ribeirinhas sob ameaça direta do velho e conhecido processo de exploração da Amazônia e do seu povo.
É preciso romper esse ciclo, direcionar a ação do poder público para algo muito maior do que discursos e operações policiais vazios de sentido e propósito. Enquanto o Estado seguir aplicando os mesmos métodos e acreditando que cortar uma cabeça basta para matar a Hidra, os resultados seguirão sendo os mesmos. A guerra às drogas é, e seguirá sendo, o mais rentável projeto de segregação social promovido por setores das elites brasileiras nas últimas décadas. Enquanto o dinheiro fica no asfalto, por trás de muros, portões e offshores, o sangue escorre nos becos, vielas, campinhos de futebol e colos de mães pobres e pretas.
Em tempos de COP30 nunca é o bastante lembrar que a proteção ambiental da Amazônia não está, em absoluto, descolada da necessidade de proteção social de seus povos contra a desigualdade e a violência. Para que resista e sobreviva a Amazônia da vida, morada dos deuses, das aves em bando, que siga vindo dos rios, a cura da terra, à luz da ciência, esperança futura a iluminar, é preciso que todo camburão deixe de ter qualquer coisa de navio negreiro.
Este texto foi escrito com exclusividade para a Amazônia Real.
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