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ToggleRepórter-fotográfico e editor de fotografia da agência Amazônia Real, Alberto César Araújo, conta a experiência de ter realizado uma oficina de fotografia na aldeia Baú, a pedido dos próprios indígenas, durante a produção da reportagem Cercados pelo Ferrogrão (Colagem digital com desenhos de grafismo feitos por Ngreituktí Kayapó sobre as fotos de Alberto César Araújo).
Manaus (AM) – Em questão de minutos, a “Casa dos Homens” da Aldeia Baú é tomada por mulheres, crianças e jovens. Todos haviam topado participar de uma atividade criativa. O editor de Fotografia da Amazônia Real, Alberto César Araújo, propõe que eles desenhem livremente. Com folhas de papel e pinceis, os traços não demoram a ganhar forma. Primeiro com a arte Kayapó e seus belos grafismos. Mas logo surgem imagens de invasões de garimpeiros, madeireiros e grileiros, uma realidade vizinha e cada vez mais ameaçadora ao território. O disparador do experiente fotógrafo não para de registrar tudo, até que um jovem indígena diz: “Queremos aprender a fotografar”.
O interesse é mais do que justificado. “A gente quer muito [a realização] de oficinas de fotografia para poder ensinar os jovens como fotografar, como mexer nas câmeras”, afirma o comunicador Takakrua Kayapó, que nasceu e cresceu na aldeia Baú. “Quando estamos na aldeia a gente faz as fotos. Mas quando estamos fora, cobrindo outras aldeias, aí fica sem ninguém para fazer isso. A gente quer ensinar sobre a fotografia para que eles mesmo possam fazer suas imagens.”
Comunicadores indígenas como Takakrua estão transformando a forma como se contam histórias dentro dos territórios. Ele, em particular, atua como comunicador no Instituto Kabu, que representa 18 aldeias: 2 na Terra Indígena (TI) Baú (que é a aldeia Baú, uma espécie de aldeia-mãe, e Kamure); 14 na TI Menkragnoti e 2 na TI Panará [que pertence ao povo Panará, mas que também têm indígenas Kayapó que casaram na aldeia]. O jovem sabe da necessidade para que essa realidade fique registrada e também das ameaças que sofrem. “É isso que a gente quer: ensinar como se fazem as fotos”, explica.
O editor Alberto César Araújo não hesita em aceitar o convite dos Kayapó. Em 2017, ele já havia oferecido uma oficina de fotografia no Parque das Tribos, comunidade localizada no bairro Tarumã-Açu, na Zona Oeste de Manaus. Nos anos de 2018 e 2019, a Amazônia Real realizou oficinas para jovens indígenas, que deu origem ao projeto Blog Jovens Cidadãos da Amazônia.
Quando a noite cai na TI, naquela quinta-feira de 4 de setembro, o cenário da oficina é montado na “Casa dos Homens”, uma moradia que fica bem no centro da Aldeia Baú, local onde ocorrem as reuniões. De manhã, a maioria dos homens adultos está em outras atividades, como caça, pesca, agricultura ou vigilância do local. Mas de noite estão presentes na oficina de fotografia.
Um projetor é instalado para que as imagens possam ser vistas por todos. Alberto conta um pouco da sua história, do surgimento da Amazônia Real, as principais coberturas já realizadas pelas equipes de reportagem. São exibidas obras fotográficas e cinematográficas produzidas pela agência ao longo dos 11 anos de existência. Os indígenas recebem ainda imagens impressas produzidas durante a própria oficina de fotografia, com o uso de uma mini-impressora.
Com mais de 30 anos de experiência, o premiado repórter-fotográfico faz questão de trilhar um caminho de troca de experiências com os personagens com quem a Amazônia Real costuma interagir e ouvir. É o que aconteceu durante a apuração da reportagem Cercados pelo Ferrogrão, na TI Baú, localizada entre os municípios de Altamira e Novo Progresso, no Pará. Cercada pelo desmatamento e agronegócio, pela grilagem de terras e pelo garimpo, a aldeia enfrenta agora uma das maiores ameaças, o projeto da estrada de ferro EF-170, a Ferrogrão.
Fonte de inspiração
Alberto César afirma que a sua inspiração vem da fotógrafa Cláudia Andujar, hoje com 93 anos. Na década de 1970, ela já fazia esse tipo de interação junto ao povo Yanomami. “Cláudia Andujar fazia essas trocas, tanto é que muitos desenhos feitos pelos Yanomami estão nas coleções dos museus, hoje, no Masp [Museu de Arte de São Paulo], no Instituto Moreira Salles”, conta. A fotógrafa tem um vasto e reconhecido trabalho ativista em defesa da causa indígena, especialmente os Yanomami.
Mas esse tipo de experiência, lembra Alberto, remonta ao século 19, com o trabalho do etnógrafo alemão Theodor Koch-Grünberg (1872-1924), que tem a história contada no filme Abraço da Serpente (2015), de Ciro Guerra. “Ele [Koch-Grünberg] já fazia isso, oficinas de desenho, fotografava e trocava os objetos dele por desenhos”, explica, ressaltando que o alemão teve um papel fundamental na visualidade da Amazônia. Esse trabalho é digno de registro por valorizar a narrativa indígena, ao contrário do olhar sempre estrangeiro, dos navegadores, do europeu, explica o fotojornalista.
Alberto lembra que seu primeiro contato com o povo Kayapó foi em 2019, quando ele cobria o Acampamento Terra Livre, em Brasília. “Ver de perto o canto das mulheres Kayapó, as danças, foi algo emocionante. Naquele mesmo ano conheci pessoalmente Raoni Metuktire. Aí foi outra viagem, porque a energia que ele emana é algo sobrenatural. Ele é um cara muito diferente, muito iluminado”, descreve.
Registros pessoais
Ao fim da oficina de fotografia na TI Baú, Alberto César é um profissional visivelmente emocionado. “Foi uma experiência única. Aprendi muito e sempre aprendo quando vou fazer essa interação com os indígenas. Apesar da limitação do tempo, o interesse foi despertado”, conta ele. Na manhã seguinte, os indígenas aprendem noções básicas da parte técnica de manejo da máquina fotográfica e alguns fazem registros da pesca durante os jogos na aldeia.
O repórter-fotográfico sugere ainda que práticas como essa passem a fazer parte dos protocolos de interação da agência com as comunidades tradicionais e povos indígenas. “Tudo sempre de uma forma respeitosa, para que eles se sintam representados, trabalhando a questão da autoestima deles e trazendo a fotografia como uma ferramenta de comunicação do movimento indígena em busca de seus direitos. Hoje em dia já temos muitos comunicadores indígenas, muitos fotógrafos e cineastas indígenas”, ressalta.
Sobre o resultado final do trabalho que mistura fotografia e a arte indígena, usando a técnica de colagem digital [que ilustra esta reportagem], Alberto César aponta que a fotografia contemporânea apropria-se de diversas técnicas, estéticas e estratégias para apresentar os seus trabalhos.
A colagem fotográfica, ou a dupla exposição, descreve Alberto, já foi utilizada nos primórdios da fotografia técnica e, particularmente, as primeiras imagens dos indígenas em seus territórios foram feitas pelo fotógrafo alemão Albert Frisch (1840-1918), no ano de 1865, entre as cidades de Letícia, na Colômbia, e Manaus, utilizando a dupla exposição para compor quadros que pudessem colocar no mesmo “espaço”, o indígena e a selva.
“Era por um motivo, claro de limitação técnica, pois precisava de minutos para fixar as imagens nas chapas de vidros. Mas este motivo não pode ser tirado do contexto da fabulação da construção de uma narrativa, quer seja hoje muito controversa, mas enfim, são estratégias que se aproximam da fotografia contemporânea feita hoje”, completa.
Para o fotojornalista, os patrocinadores deveriam voltar sua atenção ao financiamento de projetos de formação de comunicadores indígenas, uma área ainda muito incipiente. “Poderia ter mais incentivos das organizações por meio de parcerias e patrocínios que pudessem inclusive fornecer material, equipamento para os povos indígenas”, diz. As imagens, sendo fotos, vídeos e até imagens captadas por drones, hoje, são armas que os próprios povos indígenas usam em favor de sua defesa e da defesa de seus territórios, explica Alberto César.
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