Em 2025, o Brasil completará 30 anos de regime democrático. Nesse período, teve oito presidentes da república, três dos quais conseguiram se reeleger. Nos 21 anos de ditadura, cinco generais do exército ocuparam o cargo. Nesse período, não era possível concorrer a um segundo mandato, instituição inédita na história republicana brasileira, introduzida pelo “príncipe” dos sociólogos, o tucano Fernando Henrique Cardoso. Desde então, apenas o ex-capitão (também do exército) Jair Bolsonaro não conseguiu a reeleição.
Na conturbada transição do general João Figueiredo para o então vice-presidente José Sarney, que ascendeu ao cargo porque o titular eleito (pelo Congresso e não pelo voto popular), Tancredo Neves, que adoeceu no dia da posse e morreu sem sair do hospital, houve um elemento de continuidade da ditadura na democracia: a vigência da doutrina de segurança nacional na Amazônia.
Essa concepção geopolítica de matriz castrense foi renovada pelo primeiro ato de Sarney no comando da nação: a renovação do Projeto Calha Norte, concebido pelos militares para a guarda e ocupação da faixa de fronteiras da Amazônia continental, com o dobro da extensão da fronteira entre a China e a Rússia.
Por coincidência, a jurisdição sobre essa vasta área, só inferior ao total da Rússia e da China, no próximo ano passará da jurisdição do Ministério da Defesa, chefiado por um político civil, José Múcio, e não por um militar, para o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, o também político Waldez Góes. Todos os recursos financeiros do Calha Norte se originam de emendas parlamentares federais.
Tantas mudanças nessas quase três décadas de predomínio civil não interferiram na diretriz estabelecida pelos militares. Lula, o maior líder político de oposição aos governos militares, nada mudou da herança da doutrina de segurança nacional na Amazônia. Reagiu a cobranças por mudanças efetivas e profundas à maneira dos próprios militares, como durante a intensa discussão sobre o licenciamento ambiental para a construção de duas grandes hidrelétricas no rio Madeira, em Rondônia.
Em abril de 2007, durante reunião do Conselho Econômico, Lula reagiu irritado às cobranças dos ambientalistas, preocupados com os efeitos do represamento do rio: “Agora não pode [construir as hidrelétricas] por causa do bagre. Jogaram o bagre no colo do presidente. O que eu tenho com isso?” Apesar de imitar Poncios Pilatos no julgamento de Jesus, lavando as mãos, Lula reclamava do atraso da licença ambiental às usinas, contestando o parecer do Ibama do mês anterior.
Em sua delação aos integrantes da Operação Lava-Jato, o empresário Emílio Odebrecht declarou: “Em ao menos uma ocasião, encontrei-me com o então presidente Lula para solicitar que não houvesse atraso na contratação e no desembolso no financiamento de Santo Antônio junto ao BNDES, o que poderia comprometer seriamente o cronograma do empreendimento e sua viabilidade econômico-financeira para o consórcio investidor. Da mesma forma, pedi especial apoio para que não houvesse atraso na concessão de licenças ambientais, que também poderiam acarretar no atraso do apertado cronograma. Lula chegou, inclusive, a verbalizar parte da nossa insatisfação com a famosa frase: ‘ Agora não pode por causa do bagre, jogaram o bagre no colo do presidente. O que eu tenho com isso?’”
Esse mesmo Lula esteve nesta semana às margens do mesmo rio Madeira, o mais importante afluente do Amazonas. Prometeu na ocasião retomar a construção da BR-319, estrada que liga Manaus a Porto Velho, que ganhou importância diante do cenário de seca nos rios da Amazônia.
“Nós temos consciência que quando rio estava navegável e cheio, que podia ter barco grande, a rodovia não tinha importância que tem [comparado a] quando o rio Madeira estava vivo. Não podemos deixar duas capitais isoladas”, afirmou o presidente em ato do governo em Manaquiri, segundo relato da Folha de S. Paulo.
Garantiu que a obra de conclusão da estrada será realizada “com a maior responsabilidade” e disse que vai atuar em parceria com os Estados para não permitir desmatamento e grilagem de terra próximo à rodovia. Também negou que a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, seja contrária à construção da estrada.
“É preciso parar com essa história de achar que a companheira Marina não quer construir a BR-319. Essa BR foi construída nos anos 1970, foi abandonada por desleixo não sei de quem. São 400 km inutilizados”, disse o presidente.
Ainda no local, ele assinou uma ordem de serviço para a pavimentação em 20 quilômetros da rodovia. Garantiu que nos próximos dias será lançado edital para licitar as obras de mais 32 km, totalizando 52 km de asfaltamento.
Registra a matéria da Folha:
“A pavimentação deste trecho possui licença ambiental e antecede o chamado trecho do meio, área considerada mais sensível por ficar em uma região mais densa da floresta amazônica. Mais tarde, em reunião com prefeitos em Manaus, Lula disse vai fazer reuniões, ouvir cientistas e garantir que a “parte mais nobre da floresta amazônica” não seja destruída por grileiros. Na sequência, prometeu iniciar a obra até o fim do seu mandato, em dezembro de 2026”.
Prossegue a notícia:
A construção da rodovia BR-319 foi iniciada no período da ditadura militar e posteriormente abandonada. A obra é alvo de críticas de ambientalistas e comunidades indígenas por facilitar o acesso de grileiros, garimpeiros e madeireiros ilegais a uma região que fica no coração da Amazônia.
Em julho, a Justiça Federal suspendeu a licença prévia para a obra dada pelo governo de Jair Bolsonaro (PL). A decisão, de caráter liminar, atendeu a um pedido feito pela ONG Observatório do Clima. A entidade alegou falta de medidas para evitar a destruição da Amazônia.
A licença prévia para a reconstrução do trecho do meio da rodovia foi emitida em 2022 pelo Ibama (Instituto Brasileiro dos Recursos Naturais Renováveis), a pedido do Dnit (Departamento Nacional de Infraestrutura e Trânsito).
A BR-319, que foi concluída em 1976, tem 885 quilômetros de extensão, acompanhando sempre o rio Madeira. Para poder construí-la, a Andrade Gutierrez teve que estender lonas de seis quilômetros de comprimento para proteger o asfalto das chuvas que desabam sobre a região durante metade do ano e das cheias do Madeira. Assim conseguiu completar a estrada. Pedra para usar tinha que ser transportada de avião (um DC-3), que a obtinha a 600 quilômetros de distância.
O abandono de vários anos tornou de difícil tráfego metade do seu leito, que perdeu a cobertura asfáltica. Lula empenhou recursos (não informou o valor) para 20 quilômetros e para “logo mais” outros 32 quilômetros, o que representa 10% do trecho necessitado de novas obras. Os outros 436 km (o valor correto do trecho de difícil tráfego é de 488 km), ficará para 2026, quando, provavelmente, a matemática estiver mais certa e os bagres não perturbarem a retórica desengonçada do presidente.
A imagem que abre este artigo mostra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fazendo um gesto com a mão apontada para cima. A foto foi registrada em Brasília, durante a cerimônia Nova Indústria Brasil, no Palácio do Planalto (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil).
As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
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