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ToggleRépteis formam um grupo antigo, diverso e fascinante onde não faltam famílias muito especiais. Uma delas é formada pelos Dragões-de-contas e pelo bem mais famoso monstro-de-gila, ou Helodermatidae para os herpetólogos.
Este grupo de cinco espécies de lagartos, hoje restritos a parte da Guatemala, México e sudoeste dos Estados Unidos, existe desde uns 166 milhões de anos atrás, como mostram os achados dos ossinhos arredondados como miçangas (as contas) que os membros da família têm espalhados pela pele e lhes dão uma aparência própria.
Embora a pele com armadura embutida e um físico compacto com cabeça grande estilo pitbull torne estes lagartos diferentes em comparação ao calango, teiú ou lagartixa habitual, o que realmente os distingue é serem peçonhentos.
Entre os répteis que vivem hoje no planeta, apenas um grupo formado pelas serpentes mais avançadas e por alguns de lagartos desenvolveu um sistema de administrar peçonha em suas presas. Embora o sistema de produção e injeção de veneno dos lagartos seja diferente do das serpentes, uma das hipóteses aceitas atualmente é de que todos estes répteis peçonhentos compartilham um ancestral comum, formando um grupo único.
Enquanto a produção de peçonhas (no caso, substâncias derivadas de componentes da saliva) e do equipamento para injetá-las (dentes especiais!) evoluiu diversas vezes entre as serpentes, há três grupos de lagartos que foram agraciados pela seleção natural com este poder. Um deles é o dos dragões-barbados, o outro é o dos lagartos-monitores, que tem no dragão-de-komodo seu representante mais famoso e inclui mais de 80 espécies.
O outro, não por coincidência evolutivamente irmão dos monitores, são os Helodermatidae.
Enquanto o dragão-de-komodo e seus primos são conhecidos por sua inteligência (superior a muitos cães e pessoas que conhecemos), curiosidade e alto nível de atividade, o monstro-de-gila e seus primos portadores de miçangas adotaram um estilo de vida muito mais lento.
Basicamente, estes lagartos passam 90% de suas vidas em tocas subterrâneas, emergindo durante as manhãs e noites quentes da primavera e início do verão para procurar comida. Que para estes predadores de até 60 cm e 2,5 kg são esquilos, ratos, outros lagartos, serpentes, aves e seus ovos localizados pelo odor. Nestas caçadas, os Monstros mostram uma insuspeita resistência na perseguição às suas presas.
Durante este período, os Monstros mudam de toca a cada 4–5 meses, acumulando reservas de gordura na cauda, que fica grossa e roliça no processo. Um metabolismo baixo para o tamanho da criatura ajuda nesta poupança e os Monstros percorrem distâncias curtas (200 m a, raramente, 1 km) e são efetivamente ativos por apenas 10 dias durante os 90 da estação em que saem da toca.
Os monstros-de-gila têm dentes grandes com ranhuras que ajudam a conduzir a peçonha que produzem em suas glândulas salivares modificadas. Este cuspe tóxico é um coquetel de substâncias bioativas que causa uma sensação de “lava quente correndo nas veias” e considerada uma das mordidas mais dolorosas de qualquer vertebrado. A tendência destes lagartos de morder e não soltar aumenta a quantidade de peçonha injetada, mas há muitos poucos casos de humanos morrendo disso. Alguns merecedores de um prêmio Darwin por zoarem com o bicho depois de uma bebedeira.
Como todo bom cuspe transformado em peçonha, o do monstro-de-gila é um coquetel que inclui substâncias com ações diversas, incluindo causar edema e dor, hemorragia, paralisia, etc. Uma destas substâncias, a helodermina, pode ter aplicações no tratamento de câncer e demência.
Mas o mais interessante foi a descoberta da Exendin-4, molécula que pertence ao grupo dos antagonistas de GLP-1, que retardam o esvaziamento do estômago, reduzem o apetite, inibem a produção do glucagon e estimulam a da insulina. Reduzem assim o risco de hiperglicemia e produzem um balanço energético negativo, levando ao emagrecimento – palavra-chave nesta história.
Humanos fofos demais
Humanos modernos são primatas felizes em comer porcarias e ter como única atividade física cutucar telinhas e o apertar de botões. Como resultado, há uma epidemia global de obesidade e sua parceira, a diabetes tipo 2, condições que surgem da falta de match entre o estilo de vida moderno e uma fisiologia que evoluiu acompanhada de menos carboidratos e gordura trans e saturadas.
A tendências engordativas da humanidade desde muito alimentam variadas indústrias que oferecem soluções mais ou menos (ou nada) baseadas em ciência. Uma das mais recentes e lucrativas é o uso de medicamentos como o Ozempic, Wegovy e Rybelsus, que em 2024 representavam um mercado estimado em USD 28,43 bilhões (neste ano o PIB do agro brasileiro foi de uns USD 154 bilhões), com projeção de USD 93,6 bilhões por 2035. O Brasil, como se sabe, é um bom mercado, gastando bilhões.
Desarrendodando silhuetas e eventualmente salvando vidas (ou pelo menos partes da anatomia) aqueles medicamentos e seus similares baseiam-se na semaglutida, molécula derivada da famosa Exendin-4.
Ícones culturais, patrulheiros do peso e heróis dos acionistas
Os monstros-de-gila sempre foram conhecidos e queridos pelos amantes dos animais. Como não amar um lagarto fofíssimo, colorido, predador e venenoso? Como esperado, suas características especiais também os tornaram tema de filme de ficção científica e de músicas. Deixo a você decidir se gostou ou não.
Além disso, o monstro-de-gila foi descrito pelo famoso paleontólogo e zoólogo-cowboy Edward Drinker Cope, um dos personagens mais peculiares da história natural, e protagonista da Guerra dos Ossos ou Grande Corrida dos Dinossauros, uma das disputas científicas mais exóticas-bizarras-doidas da história (não confundir com a atual campanha eleitoral).
Mas foi a descoberta da Exendin-4, exclusiva do monstro-de-gila (perdón, lagarto enchaquirado), que mudou como o mundo vê, ou deveria ver, os monstrinhos.
O endocrinologista Daniel Drucker, então na Universidade de Toronto, buscava um antagonista de GLP-1 que não fosse rapidamente degradado e tivesse efeitos mais duradouros. Um trabalho científico sobre a composição do veneno do monstro-de-gila deu a pista para a pesquisa que levou, em 2005, à aprovação pela Food and Drug Authority norte-americana do primeiro antagonista de GLP-1 sintético para o tratamento da diabetes tipo 2, a exenatida.
O resto é história. E bilhões de dólares.



Visitando os monstrinhos
Erika já teve o prazer de ganhar, de presente de aniversário, o avistamento de três destes lindos lagartos nos Estados Unidos, perto de Tucson, Arizona. Fábio nunca visitou o hábitat natural dos monstros-de-gila e viagens ao México e Guatemala não renderam encontros com seus primos.
Mas é possível visitar um casal dos monstrinhos muito mais perto de casa. O Museu Biológico do Instituto Butantan é uma alegria para crianças de todas as idades que tenham um lado Calvin e sejam fascinadas por bichos maravilhosos. Além de cumprir a função de ser um centro de pesquisas e conservação, inclusive participando de projetos de reprodução em cativeiro de espécies ameaçadas, o Museu também recebe animais vítimas do tráfico que não têm possibilidade de serem libertados na natureza.
Entre estes está um casal de simpáticos, fofos e preguiçosos monstros-de-gila que foram apreendidos no Aeroporto Internacional de Guarulhos, chegando da Espanha. O cidadão que os transportava, turista brasileiro assíduo na Europa e autodeclarado motorista de aplicativo, trazia junto mais de 20 outros répteis, quase todos serpentes, que foram detectadas pelo Raio X da alfândega ao chegar.
Uma surpresa saber que na Europa existem pessoas que mantêm e reproduzem animais ameaçados de outros continentes, uma atividade nem sempre legal e certamente não muito recomendada, considerando a possibilidade de acidentes com picadas e mordidas.
Mas fato é que agora o casal habita o Museu, para a alegria do público. No inverno são levados para um local escuro e frio, onde os técnicos procuram manter as condições naturais para que entrem em brumação e em seguida, role um clima para que possam copular e colocar ovos. Até agora, depois de quase dez anos, não tiveram pequenos monstrinhos, apesar de colocarem seus ovos.
Sendo répteis de vida longa (décadas), que vivem sem pressa, as coisas com os Monstros devem acontecer no seu próprio tempo. Enquanto isso aguardamos o nascimento dos primeiros monstrinhos paulistanos.
A cura pode estar no veneno
O Instituto Butantan tem uma longa tradição de pesquisar os venenos e peçonhas, e vem mostrando que a natureza brasileira é uma verdadeira farmácia natural, cheia de possibilidades. Como substâncias cicatrizantes derivadas de um fungo da Caatinga, um dos biomas brasileiros mais impactados pelas atividades humanas.
Os pesquisadores dessa instituição centenária descobriram que o veneno da cascavel contém uma proteína que pode ajudar no tratamento da esclerose múltipla – nos testes com animais, conseguiu evitar a doença em 40% dos casos. Eles também estão estudando substâncias de sapos que podem proteger o cérebro contra o Alzheimer, de jararacas que combatem o câncer e compostos de escorpiões que ajudam a regenerar células nervosas. Essas descobertas mostram como substâncias que os bichos usam para se defender podem, quando estudadas cientificamente, virar remédios que mexem com hormônios e outras funções importantes do nosso corpo.
Mas tem um lado perigoso nessa história toda. Algumas pessoas andam usando veneno de sapo de forma irresponsável, pagando milhares de dólares para consumir a substância bruta em “rituais” que prometem curar depressão. O problema é que esse uso sem controle médico pode causar alucinações, problemas no coração e até convulsões.
A diferença é que no Butantan os cientistas isolam apenas os compostos úteis, testam a segurança e estudam por anos antes de pensar em algum tratamento – igual aconteceu com remédios como o Ozempic, que também age nos hormônios do corpo, mas passou por todo esse processo rigoroso de desenvolvimento. A natureza tem muito a oferecer, mas só a ciência séria consegue transformar isso em medicina segura.
Uma questão de justiça
Monstros-de-gila são considerados “Quase Ameaçados”, enquanto um de seus parentes, morador de Chiapas, é listado como “Vulnerável” à extinção. Independente disso, todos os Heloderma são considerados ameaçados pela destruição de seu hábitat – inclusive pela expansão urbana – e um clima mais quente e instável certamente não ajudará lagartos com capacidade limitada de auto relocação.
A indústria de bilhões de dólares gerados pelos Monstros não é um caso isolado: dezenas de substâncias valiosas para o mercado e para as vidas que salvaram são derivadas de coquetéis bioquímicos produzidos por esponjas, serpentes, sapos, tunicados, fungos, escorpiões e outras criaturas “impuras” que a maioria das pessoas nem sabe que existem, ou atropelaria ou pisaria sem pensar duas vezes.
Ao longo da história da bioprospecção muito se falou sobre royalties devidos a comunidades que seriam detentoras de conhecimentos úteis para a indústria farmacêutica que fossem além do que já é de conhecimento público. Deixo para outros analisarem se as regulações estimularam ou não tanto a Ciência como os negócios.
Mas não podemos deixar de pensar na injustiça sofrida pelos bichos que desenvolveram substâncias de valor bilionário através do longo processo de seleção natural: são responsáveis por empregos, renda e impostos arrecadados, mas não são beneficiados com um centavo para a compra e, principalmente, para a proteção de seus habitats, dos quais nós também dependemos.
Quem fala pelos invisíveis, que geram fortunas, mas não têm voz?
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