A situação é pior do que se pensava
Neste mês de fevereiro de 2025 saíram três trabalhos científicos mostrando que a situação climática é bem pior que a comunidade científica pensava, muito menos o que pensa ainda as pessoas a quem o Presidente Lula realmente escuta – o seu Ministro de Minas e Energia e a Presidente de Petrobrás. O primeiro trabalho, publicado na revista Environment: Science and Policy for Sustainable Development em 03 de fevereiro, é liderado pelo cientista climático James Hansen [1]. Isto mostra que o efeito de aerossóis e outras formas de poluição atmosférica tem mascarado a potência real dos gases de efeito estufa já presentes na atmosfera, e que a velocidade de aquecimento nos próximos anos seria bem maior do que pensava. Isto significa que o clima avança vertiginosamente para um ponto de não retorno, onde o aquecimento global escaparia a possibilidade de controle humano.
Hansen, que é famoso por ser o cientista de NASA que desafiou o negacionismo climático do então presidente americano George W. Bush, fez uma declaração à imprensa na ocasião do lançamento do atual trabalho de que a meta de manter a temperatura média global abaixo de 2°C acima da média pré-industrial é “morta” [2]. Se for verdade, é gravíssimo, sendo que mesmo o atual limite no acordo de Paris de 1,5 °C implica em risco substancial do aquecimento escapar de controle [3, 4], assim como para a floresta amazônica entrar e colapso (e.g., [5]). Mas não devemos ser fatalistas, o que apenas torna uma catástrofe global autorrealizado.
Os outros dois trabalhos deste mês foram publicados na revista Nature Climate Change em 10 de fevereiro. Dois grupos independentes, usando métodos diferentes, mostraram que a temperatura recorde de 2024, com todos os meses mais de 1,5°C acima da média pré-industrial. Tem alta probabilidade de continuar, e não é um pico temporário devido ao ciclo de El Niño, manchas solares etc. [6, 7]. Assim como o trabalho de Hansen e colegas, estes trabalhos são de acesso aberto. O Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC) tem sustentado que precisaria de uma série de dados de 20 anos para poder afirmar que a temperatura média havia passado de um limiar de 1,5°C ou de 2°C, mas os dois trabalhos que saíram agora mostram que isto não é o caso. É claro que não temos 20 anos para dar conta da passagem desses limiares e tomar as medidas necessárias, pois até lá a mudança climática estaria fora de controle.
O que aconteceria no Brasil se o aquecimento escapar de controle?
O Brasil seria um dos maiores vítimas se o aquecimento escapar de controle. A floresta amazônica, que já está muito perto de entrar em colapso [8], seria perdida [9-11]. Junto com isso, perderia o transporte de vapor d’água pelos “rios voadores” que é essencial para manter a cidade de São Paulo [12, 13], além da produção agrícola tanto familiar como do agronegócio [14]. O Brasil já está prestes a perder seu grande trunfo de ganhar duas safras de soja por ano (e.g., [15-17]), e a irrigação por pivôs alimentados de aquíferas subterrâneas não poderia salvar a situação, como mostrado pela descoberta recente de que a região Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí, Bahia) já está esgotando esta reserva rapidamente [18]. A frequência de grandes secas no Brasil ia aumentar para ser mais de dez vezes a frequência histórica [19]. A região nordeste ia se tornar um deserto, com as áreas hoje consideradas “semiáridas” se tornando “áridas”. Este processo já está em curso [20, 21]. A grande população brasileira que vive ao longo do literal do país seria exposta ao aumento do nível do mar (e.g., [23]) junto com o aumento de grandes tufões [24]. “Surpresas” climáticas não previstas pelos modelos de clima, como a inundação em Rio Grande do Sul em 2024 [25] e a inundação no rio Madeira em 2014 [26], iam ser mais frequentes, como foi previsto pelo grande cientista climático Steven Schneider [27].
Os picos de calor atualmente abalando o Rio de Janeiro chamam atenção, com temperatura de 44°C e sensação de calor de 50°C devido à alta umidade [28]. Caso o aquecimento global escapar de controle, os picos de temperatura seriam muitíssimo maiores. Os picos de calor já estão aumentando a mortalidade no Rio de Janeiro, como demostrou uma pesquisa liberado em 14 de fevereiro [29, 30]. O corpo humano tem uma temperatura de 37°C, mas podemos aguentar calor alguns graus amais durante algum tempo graças ao efeito de resfriamento pela evaporação do suor. Quando a umidade do ar é alta, este mecanismo de resfriamento é menos eficaz. Idosos e crianças pequenas são mais vulneráveis aos efeitos de excesso de calor, mas mesmo as temperaturas nas ondas de calor atuais no Rio de Janeiro trazem riscos para faixas etárias mais resistentes, como demostrada quando, em um dia com sensação de calor de 60°C, uma jovem fã morreu no Rio esperando um show de Taylor Swift, que cancelou o show [28]. Projeções de temperatura e umidade indicam grandes áreas no país se tornando inabitáveis, com temperaturas em condições secas acima de 35°C inclusive a Amazônia, São Paulo e Rio de Janeiro [31-33]. Mortalidade em massa seria uma consequência previsível [34]. Deve ser óbvio que é irresponsável para qualquer presidente do Brasil promover políticas que aumentam o risco deste tipo de consequência.
A imagem que abre este artigo mostra uma imagem do segundo mandato do presidente Lula com as mãos sujas de petróleo, em gesto feito primeiro por Vargas em 1952 e repetido pelo atual presidente (Foto: Ricardo Stuckert/PR).
Notas
[1] Hansen, J.E., P. Kharecha, M. Sato, G. Tselioudis, J. Kelly, S.E. Bauer, R. Ruedy, E. Jeong, Q. Jin, E. Rignot, I. Velicogna, M.R. Schoeberl, K. von Schuckmann, J. Amponsem, J. Cao, A. Keskinen, J. Li & A. Pokela 2025. Global Warming Has Accelerated: Are the United Nations and the Public Well-Informed? Environment: Science and Policy for Sustainable Development 67(1): 6-44.
[2] Salim, L. 2025. Aquecimento está acelerado e meta de 2ºC, “morta”, diz cientista pioneiro. Observatório do Clima, 08 de fevereiro de 2025.
[3] IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change) 2019. Global Warming of 1.5°C. An IPCC Special Report on the impacts of global warming of 1.5°C above pre-industrial levels and related global greenhouse gas emission pathways, in the context of strengthening the global response to the threat of climate change, sustainable development, and efforts to eradicate poverty. Masson-Delmotte V et al. (eds.). Genebra, Suiça, IPCC. 616 pp.
[4] McKay, D.I.A., A. Staal, J.F. Abrams, R. Winkelmann, B. Sakschewski, S. Loriani, I. Fetzer, S.E. Cornell, J. Rockström & T.M. Lenton. 2022. Exceeding 1.5°C global warming could trigger multiple climate tipping points. Science 377: art. eabn7950.
[5] Trisos, C.H., C. Merow & A.L. Pigot 2020. The projected timing of abrupt ecological disruption from climate change. Nature 580:496–501.
[6] Cannon, A.J. 2025. Twelve months at 1.5 °C signals earlier than expected breach of Paris Agreement threshold. Nature Climate Change.
[7] Bevacqua, E., C.F. Schleussner & J. Zscheischler. 2025. A year above 1.5 °C signals that Earth is most probably within the 20-year period that will reach the Paris Agreement limit. Nature Climate Change.
[8] Flores, B.M., E. Montoya, B. Sakschewski, N. Nascimento, A. Staal, R.A. Betts, C. Levis, D.M. Lapola, A. Esquível-Muelbert, C. Jakovac, C.A. Nobre, R.S. Oliveira, L.S. Borma, D. Nian, N. Boers, S.B. Hecht, H. ter Steege, J. Arieira, I.L. Lucas, E. Berenguer, J.A. Marengo, L.V. Gatti, C.R.C. Mattos & M. Hirota. 2024. Critical transitions in the Amazon forest system. Nature 626: 555–564.
[9] Fearnside, P.M. 2024. Ameaças aos serviços ambientais da Amazônia: 4 – mudança climática. Amazônia Real, 11 de dezembro de 2024.
[10] Fearnside, P.M. 2025. Última chance para a floresta amazônica brasileira? Amazônia Real.
[11] Sampaio, G., L.S. Borma, M. Cardoso, L.M. Alves, C. von Randow, D.A. Rodriguez, C.A. Nobre & F.F. Alexandre. 2019. Assessing the Possible Impacts of a 4 °C or Higher Warming in Amazonia. In: C.A. Nobre et al. (eds.). Climate Change Risks in Brazil. Springer, Amsterdam. pp. 201-218.
[12] Fearnside, P.M. 2015. Rios voadores e a água de São Paulo. Amazônia Real.
[13] Fearnside, P.M. 2021. As lições dos eventos climáticos extremos de 2021 no Brasil. Amazônia Real.
[14] Assad, E.D., R.R.R. Ribeiro & A.M. Nakai. 2019. Assessments and how an increase in temperature may have an impact on agriculture in Brazil and mapping of the current and future situation. In: C. Nobre, J. Marengo & W. Soares, (eds.) Climate Change Risks in Brazil. Springer, Cham, Suiça. p. 31–65.
[15] Costa, M.H. & G.F. Pires 2010. Effects of Amazon and central Brazil deforestation scenarios on the duration of the dry season in the arc of deforestation. International Journal of Climatology 30: 1970–1979.
[16] Costa, M.H., L.C. Fleck, A.S. Cohn, G.M. Abrahão, P.M. Brando et al. 2019. Climate risks to Amazon agriculture suggest a rationale to conserve local ecosystems. Frontiers in Ecology and Environment 17: 584-590. https://doi.org/10.1002/fee.2124
[17] Fearnside, P.M. 2020. Changing climate in Brazil’s “breadbasket”. Frontiers in Ecology and the Environment 18: 486-488.
[18] Arantes, J.T. 2025. Superexploração das águas subterrâneas está comprometendo a vazão dos rios no Brasil. Folha de São Paulo, 07 de fevereiro de 2025.
[19] Price, J., R. Warren, N. Forstenhäusler, C. Wallace, R. Jenkins, T.J. Osborn & D.P. Van Vuuren. 2022. Quantification of meteorological drought risks between 1.5 °C and 4 °C of global warming in six countries. Climatic Change 174: art. 12.
[20] Barbosa, H.A. 2024. Understanding the rapid increase in drought stress and its connections with climate desertification since the early 1990s over the Brazilian semi-arid region. Journal of Arid Environments 222: art. 105142.
[21] ClimaInfo. 2024. Clima árido atinge no Brasil área maior que a do estado de São Paulo. ClimaInfo, 18 de abril de 2024.
[23] Montanari, F., M. Polette, S.M.P. Queiroz & M.B. Kolicheski. 2020. Estimating economic impacts of sea level rise in Florianópolis (Brazil) for the year2100. International Journal of Environment and Climate Change 10(1): 37-48.
[24] Gramcianinov, C.B. 2018. Changes in South Atlantic cyclones due climate change. Tese de doutorado em ciências atmosféricas, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP. 222 p.
[25] Fearnside, P.M. & R.A. Silva. 2024. Surpresas climáticas: A Amazônia e as lições da enchente catastrófica no Rio Grande do Sul. Amazônia Real, 03 de julho de 2024.
[26] Fearnside, P.M. 2015. As barragens do rio Madeira como espada de Dâmocles. Amazônia Real
[27] Schneider, S.H., B. Turner & H. Garriga 1998. Imaginable surprise in global change science. Journal of Risk Research 1(2): 165-185.
[28] Sousa, A. 2025. Rio atinge nível 4 de calor pela primeira vez em dia mais quente do verão. Folha de São Paulo, 17 de fevereiro de 2025.
[29] Morais, J.H.A., D.M. de Oliveira e Cruz, V. Saraceni, C.D. Ferreira, G.M.O. Aguilar & O.G. Cruz. 2025. Quantifying heat exposure and its related mortality in Rio de Janeiro City: evidence to support Rio’s recent heat protocol. MedRxiv.
[30] Souza, B. 2025. Pesquisa relaciona calor extremo à mortalidade no Rio de Janeiro. Agência Fiocruz de Notícias, 14 de fevereiro de 2025.
[31] Raymond, C., T. Matthews & R.M. Horton. 2020. The emergence of heat and humidity too severe for human tolerance. Science Advances 6: eaaw1838.
[32] León, L.P. 2024. Entenda estudo da Nasa sobre ‘Brasil inabitável’ em 50 anos. Agência Brasil, 24 de julho de 2024.
[33] Sherwood, S.C. & E.E. Ramsay 2023. Closer limits to human tolerance of global heat. Proceedings of the National Academy of Science USA 120(43): art. e2316003120.
[34] Matthews, T., E.E. Ramsay, F. Saeed, S. Sherwood, O. Jay, C. Raymond, N. Abram, J.K.W. Lee, S. Barley, S. Perkins-Kirkpatrick, M.S. Khan, K.J. Meissner, C. Roberts, D. Mavalankar, K.G.C. Smith, A. Ullah, A. Sadad, V. Turner & A. Forrest 2025. Humid heat exceeds human tolerance limits and causes mass mortality. Nature Climate Change 15: 4–6.
As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
Ver post do Autor